Sempre serei como um menino para muitas
coisas, mas um desses meninos que, desde o começo, carregam em si o adulto, de
maneira que, quando o monstrinho chega verdadeiramente a adulto ocorre que, por
sua vez, carrega consigo o menino e nel mezzo del cammin dá-se
uma coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas para o
mundo.
Julio
Cortázar in ‘Valise de Cronópio’
Quatro mundos. Quatro
gerações. Quatro mulheres. Os mesmos olhos.
Par de olhos castanho-avelã.
Pequenos. Expressivos. Argutos.
‘Estranhos’.
Transmitidos em linha
direta de mãe para filha, de avó para neta, de bisavó para bisneta.
Pequenininha, Khadija,
Elisete, Danielli.
Toda uma dinastia de olhos
de pomba, como diria meu avô, se ainda fosse vivo.
Os mesmos olhos no espelho,
olhares diferentes na vida.
Genética e metafísica.
A verdade é que em alguns
dias me sinto o velho no barco, de ‘A Terceira Margem do Rio’. Ao contrário dele,
porém, vivo e visito os meus, participo. Depois embarco e sigo em mais idas e
vindas, infinitamente. Como Cortázar, eu
estou lá, mas não de todo. Parte de mim segue mata virgem intocada, outra parte
vive de intercâmbios, outra parte eu dou de graça, sem receber pagamento e sem
afetos gratos, apenas doo, como mandato, vocação, minha parte do trabalho.
Segundo meu contista
predileto, essa justaposição que se manifesta no sentimento peculiar de não
pertencer de todo em qualquer das teias que a vida nos arma, verdadeiras
arapucas em que somos ao mesmo tempo caça e caçador, é característica de um
temperamento que não renuncia à visão pueril como preço da vida adulta. Em seu
ensaio, homônimo deste texto, comenta que muitas vezes era maior que o cavalo
que montava, mas que era feliz em seu inferno e escrevia, sempre um pouco para
lá ou para cá de onde devia estar.
“Desde muito pequeno
assumi, com os dentes cerrados, essa condição que me separava de meus amigos e
por outro lado os atraía para o raro, o diferente, o que metia o dedo no
ventilador.”
Para o escritor argentino,
esse homem gigantesco e universal, se escreve justamente por não se ‘estar lá’
ou por se ‘estar a meias’. A escrita seria uma espécie de aceitação do desafio
do ‘estranhamento’, de cada vez em que esse ‘não pertencimento’ se revela de
forma aguda. O texto ou poema seria uma espécie de petrificação deste ‘estranhamento’
– uma materialização do que ‘o poeta vê ou sente em lugar de, ou ao lado de, ou
por debaixo de, ou ao contrário de’, esse de evocando aquilo que os demais veem tal como acreditam que algo de
fato seja, sem crítica e sem deslocamentos de perspectiva. Daí o fato de não
ser sempre compreendido, aceito, acolhido: O louco.
Cortázar escreve esse
ensaio quase que numa defesa do insólito contido em suas obras: “Há como um
acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstantes: tu não me tiras
de meus costumes e eu não te ando esgravatando com um palito.” “Para que voltar
ao fato sabido de que quanto mais se assemelha um livro a um cachimbo de ópio
mais satisfeito fica o chinês que o fuma, disposto no máximo a discutir a
qualidade do ópio mas não seus efeitos letárgicos.”
Mudam-se as causas e as
razões, ficam os ‘estranhamentos’. Ao
considerar o homem de seu tempo um ‘ingênuo realista’ ao invés de um ‘realista
ingênuo’, atribui a uma crença cega na informação filosófica e histórica a
culpa por uma vida ‘vê lá se crê’, uma inabilidade para discussão metafísica
que o aprisionava a uma visão tolerável, mas incompleta do mundo.
Para o autor de contos
como ‘Casa Tomada’, ‘Las babas del diablo’, ‘Continuidad de los parques’, ‘Carta
a una señorita en Paris’ e ‘El outro cielo’, numa discussão que faz questão de
considerar menos da lógica que da semântica, os egoístas, ou os que optam por
manter a lucidez, não se obrigando à responsabilidade ante o desafio do
‘estranhamento’, não servem para escrever poesia, prosa ou filosofia.
Falecido no já emblemático
ano de ‘1984’, Cortázar não conheceu o insólito do mundo virtual, ou da era
globalizada, ou da geração politicamente correta. Independentemente de suas
aspirações ou crenças políticas, frutos de uma América Latina sempre filha do
fantástico com o barroco e mãe do maravilhoso, logo repleta de ‘entre-mundos’ a
se considerar, talvez o maior de todos os ‘estranhamentos’ a que precisaria dar
conta, seria o da ‘falta de estranhamento’ da maioria, ou talvez de um
acovardamento, diante de uma realidade repleta de fissuras aparentes.
Este ano houve de tudo.
Tragédias, comédias,
dramas: pessoais e universais.
Morreram muitos seres
humanos relevantes, entre eles meu caro Dr.Shedd, cuja inteligência e exemplo
de santidade são insubstituíveis. Alguns deixaram obras de adeus pungentes,
como David Bowie e seu belíssimo ‘Black Star’.
Por aqui, roubou-se a Petrobrás
e a dignidade do povo brasileiro, a pouca que ainda existia, guardada a sete
chaves no cofre de uma confiança juvenil na tal da ‘nossa democracia’. Foram-se
as aposentadorias, ficaram-se os dedos, magros. A pseudo-educação agoniza em
toadas marxistas de araque, na voz de professores acometidos da lepra do
funcionalismo público e de alunos semi-analfabetos, ou na incompetência de
ministros que nunca pisaram numa sala de aula de escola básica. Sofremos o
golpe do golpe do golpe e quem tinha tanta certeza ao ir para as ruas, de
vermelho ou de verde-amarelo, agora não sabe mais de nada e ouve rádio tentando
entender as votações feitas na calada da noite, enquanto se chora corpos jovens
esmagados em destroços.
Nas conversas da vida,
descubro entre surpresa e enternecida que ainda existem monarquistas no Brasil,
esperanças políticas de qualquer ordem sempre me soam sonho de criança. Desconfio.
De tudo e de todos. Dos mestres e dos messias anunciados. Sou rebelde por
natureza. Não vejo bondade em quem luta por poder. Vejo e ouço denúncias de
conspirações por todo lado. O colapso declarado que se aproxima talvez de fato
exista, com ou sem ele precisamos continuar vivendo.
De forma discreta sou
aliciada por seitas judaicas, cristãs e pagãs, algumas políticas, outra religiosas.
Não me sinto política, eventualmente me sinto religiosa. O paradoxo se encontra
no fato de que a seita separa e a religião religa. Tudo que nos afasta do amor
e da vida não pode provir da luz divina. Deus é amor! Os que me acusam de
simplismo, loucura ou de falta de lógica me elogiam. Jesus era simples, louco e
ilógico. Que amor é esse que torna alguém capaz de dar a própria vida por seus
amigos? E morte de cruz...
No ‘entre-lugar’ em que
vivo, aceito que homens podem ser tão obcecados quanto mulheres podem ser
histéricas e que homens podem ser tão histéricos quanto mulheres podem ser obcecadas. No
‘entre-lugar’ sempre se enxerga mais e melhor. Revejo mil vezes minhas
concepções de amor. Ainda estou mais para a esquerda ou mais para a direita,
mais para cima ou mais para baixo. Problema de cardápio? Talvez o ingrediente
errado no prato seja eu, sempre eu, talvez não. Talvez para ingredientes
exóticos exijam-se pratos sofisticados, talvez não, ‘Ratatouille’ é feito
basicamente de berinjela e abobrinha e rima perfeitamente com ervas de
Provence. Guardo o pouco romance que ainda me resta, protegido num relicário
branco, feito de diamantes, tule e açafrão, escondo no mais profundo do peito e
teimo na minha característica e resoluta altivez em “trazer à memória o que me
pode dar esperança.”
Perco amigos, ganho
amigos. Descubro que não tolero invasões e me defendo. Descubro que às vezes a
maior prova de lealdade é abandonar e deixar a pessoa aprender a existir. Paro
de culpar minha infância nômade por minha opção pelo rio. Não existem culpados,
existe como eu vivo: o barco no rio sou eu, sou eu no barco do rio, eu sou o
rio.
Cuido do meu pai doente, eu
o vejo frágil, menorzinho e com medo da solidão. As esperanças de uma vida
titubeiam, mas a fé resiste. “Estou indo orar por vocês, pecadoras...” e ri
antes de sair. A menina em mim se encolhe, enquanto a mulher se expande, na
proporção em que as manchas da velhice se multiplicam em suas mãos brancas,
aquelas mãos grandes que eu segurava até dormir em noite de pesadelo. “Pai,
fica mais um pouco.” E ele fica.
Estudar Virgínia Woolf me
encanta e me enfurece. É tanta coisa importante e linda para se aprender no
tempo tão curto de uma vida humana, já vivi metade e os anos passam sem pausa
para sábados.
Existe tanta beleza na
Arte, na natureza, na Literatura e na vida. Existe tanta feiura.
Extenuada dessas
discussões de gênero vazias e improdutivas.
Mulheres escrevem. Mulheres
criam: filhos e obras de arte. Mulheres vão para guerra. Mulheres lideram e
governam. Mulheres pensam, amam e fazem sexo. Mulheres nascem, crescem e
morrem. Mulheres formam famílias. Mulheres cozinham e cuidam da casa. Mulheres
bordam e fiam. Mulheres fazem sermões. Mulheres existem. Homens também. Mulheres são boas e más. Mulheres são
inteligentes ou não. Mulheres agridem ou são agredidas. Mulheres erram e
acertam. Homens também. Importa é proteger o mais fraco do mais forte insano
que o assedia. Inclui-se fetos. Isso não tem a ver com sexo, tem a ver com
justiça e com honra. Essa palavra quase datada.
Oro menos nesses dias.
Não por falta de fé ou
crise espiritual, mas porque finalmente aprendi a pedir menos e a ser mais
grata. Existe tanto a agradecer e existem tão poucos corações agradecidos.
Sabemos tão pouco sobre Deus e a nossa vaidade nos impede de aprender mais. Deus
não está em caixas. Deus não é homem. Como diria Leibniz, o conceito de bondade
divina não é o conceito de bondade humana. Deus conhece todas as ideias
possíveis e suas relações, sabe de cada causa e consequência, sabe de todas as
Daniellis possíveis e, sendo otimista como o filósofo alemão, considerado o
homem do barroco, o que vivemos é, dentre todas as possibilidades e amálgamas
diretos dessas possibilidades, o ‘melhor mundo possível’. Borges desenvolve
esse conceito em ‘O jardim das veredas que se bifurcam’ e problematiza ao
incluir nessas ideias possíveis a variável da escolha humana. Talvez sejamos
todas as possibilidades. Talvez existamos nessas versões infinitas de nós
mesmos, pelo menos na mente de Deus.
O Natal deste ano chega triste.
Ninguém tem conseguido muito se obrigar a pensar na benção do nascimento do
menino Jesus e o que ele representa. O cristianismo segue dormente nos países
livres do ocidente, mas ferve nos países perseguidos. Acostumados ao consumismo
do período, a multidão de desempregados amplifica a sensação de impotência diante
do caos instalado no Brasil e em nossas vidas pequenas. Foram tantas as lutas,
dores e privações deste ano. Calejados, muitos substituíram a esperança do Ano
Novo por um medo do que está por vir.
Alepo com seus mortos, a
Síria que se espalha pelos quatro cantos do mundo, levando novas de
desesperança. Igrejas vazias. Igrejas cheias e queimadas. Meninas sendo
vendidas como escravas sexuais pelo Estado Islâmico, leiloadas pela internet, crianças...
O que já foi meu maior
desejo virou pó de cometa diante da força do tempo e das circunstâncias. O que
antes me entristecia, hoje é alívio. Sou quase um Brás Cubas, aliviado por não
transmitir à geração seguinte a miséria humana. Quantos ‘nãos’ de Deus acabam
por ser razão de gratos louvores? Hoje quando brinco com bebês, olho bem fundo
em seus olhos e lamento sua sorte, oro por dentro pedindo misericórdia, pelo
menos por aquele. Sim, muitas vezes acabo achando que o purgatório é aqui.
Ainda assim, acordo animada todo dia, brinco com meus gatos, cuido das plantas,
leio, ouço música, faço tricô e agora croché, cozinho, converso, abraço, beijo,
tiro fotos, estudo, trabalho, vou à feira e ao cinema, gosto do meu cabelo e do
meu perfume, compro enfeites de Natal, escrevo, escrevo cada vez mais.
Precisamos continuar vivendo e cumprir nossa jornada com galhardia, cuidando da
nossa família ou daqueles que nos foi dado proteger.
Se é para falar do
assunto:
A palavra ‘família’ é
derivada do latim famulus, que
significa escravo doméstico. Conceito derivado da Roma antiga, para designar um
novo grupo social que surgiu entre tribos latinas, quando se introduziu a
agricultura e a escravidão legalizada. Milênios depois, família transformou-se
em sinônimo de laços consanguíneos ou vínculos parentais. Se na infância, viver
em família é sinônimo de sobrevivência, na vida adulta passa a ser escolha
pessoal. Numa transposição conceitual, eu diria que o que define família é uma
inclinação específica, involuntária e mais do âmbito do afeto, que por razões
nem sempre racionais, embora sempre da ordem da honra, nos leva a uma entrega
consciente. Família são as pessoas que você elege para servir em completa e
sagrada vassalagem. Família é o único lugar em que um ser humano é rei e
escravo simultaneamente. Não gerei família, mas fui gerada por uma. Talvez um
dos meus maiores fatores de ‘estranhamento’ seja esse complexo de vira-lata que
nos torna mais íntimos de estranhos e mais orgulhosos de ancestralidades das mais
remotas do que daqueles que limparam nossas bundas e nos permitiram crescer.
Não, amigo não é família que a gente escolhe. Amigo é amigo (essa coisa ímpar,
rara, sofrida e maravilhosa). Família é família (essa coisa ímpar, rara,
sofrida e maravilhosa). Amor é amor (essa coisa ímpar, rara, sofrida e
maravilhosa).
Olho para os ocos do mundo
e tento ainda destacar o que de belo existe.
Não porque eu seja alguma
força da natureza, excepcional, admirável ou virtuosa. Apenas porque preciso
limpar o ar que enche meus pulmões, tirar dele esse metal pesado que nos polui a
mente e emporcalha a alma. Encontrar a beleza é a única possibilidade de
sobreviver nessa nossa jornada cada vez mais árida, para a qual temos cada vez
menos recursos.
É muito provável que eu
chegue às portas do Reino, nua, faminta, ferida e esgotada, mas pela fé,
chegarei. Sei que nada me prepara para o que lá verei, porque nem olhos viram,
nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano, o que Deus tem
preparado para os que O amam, mas eu creio no Senhor dessa promessa com todas
as forças do meu coração inconstante.
Encerro esse texto
‘estranho’, me despedindo desse ano ‘estranho’, com um poema ‘estranho’,
escrito em um dos meus processos de ‘estranhamento’. A você, leitor ‘estranho’,
desejo um Natal de Luz verdadeira e alívio de dores e um 2017 mais ameno.
As
Asas de Sabrina
Se
no silêncio houvesse espaço
Poderia
armazenar as lágrimas,
Os
grãos de areia e os vagalumes...
Haveria
então alguma esperança viva
Para
os cavaleiros de além-mar.
São
brancas as saias e as aias das damas
Que
se perdem nas fogueiras santas,
Como
borboletas negras atordoadas:
Ophelias,
Judiths, Marias,
Todas
sem par.
No
coração da Manuela velha
Existia
um cofre e um tesouro putrefato
Que
cheirava a Circe, Nêmesis e Lorelai.
Existe
uma leveza naquele sussurro.
Um
apreço de folha solta pululante.
Uma
escolha, uma possibilidade.
Aleia
florida ao sol.
E
se em vez de algemas fossem asas?
Sabrina
canta e voa
Em
aventura sorridente.
Seu
beijo é de prata derretida, incandescente.
Sua
travessura é perene.
Segue
curando, emendando as falas.
Canta-se
uma vida inteira sem saber a melodia
Ou
voa-se com asas de fadas abertas,
Rápidas
como as de um beija-flor carnívoro
Que
não suga néctar, arranca pétalas.
Morre-se
no frio de um abandono febril.
Impensado.
Saudade
que segue o esquartejamento.
Voa,
bela Sabrina.
Voa
enquanto o mel não lhe cola as asas.
Livra-te
de morrer na cera derretida
Das
velas da comunhão.
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