Não
existe paralelo possível para falarmos de testemunho cristão, ainda mais
reformado, utilizando o radicalismo judaico ou qualquer outro radicalismo, seja
ele de ordem religiosa ou política. O radicalismo se traduz em prática
restritiva da percepção e da reflexão e caracteriza o comportamento sectário nocivo
que temos visto por todo lado, em especial nos dias de hoje.
Se nos
consideramos cristãos verdadeiros, sabemos que a verdade liberta, não
aprisiona. Se sua versão de cristianismo o torna mais insensível e menos
crítico da realidade em que vive a humanidade, sua versão não é a de Cristo,
extremamente crítico diante do que observava, como bem se vê nos
Evangelhos.
Atenção!
Para compreender a argumentação abaixo é necessário que você de fato tenha
assistido a série inteira e conheça os fatos da narrativa plenamente! Então, se
ainda não viu, pare de ler, assista e depois volte. Deixe seu comentário abaixo,
se quiser, comentando o que achou de tudo. (tentarei dar poucos spoilers)
A série relata
a história real de Deborah Feldman, que foi criada numa comunidade ortodoxa judaica
em Nova York. A história se desenvolve, principalmente, a partir do momento em
que ela é considerada apta para o casamento, no caso dela, antes dos 20 anos.
Todos os
arranjos são feitos e o casamento é compreendido e acontece da forma mais
tradicional possível, dentro das concepções dessa comunidade. Vemos uma
cerimônia cujos ritos e símbolos, TODOS, demonstram a servidão feminina diante
do homem e da comunidade.
Deborah
precisa se banhar na sinagoga para se tornar kosher. Descobre que por 14 dias a partir da menstruação será
considerada impura para dormir na mesma cama do marido e em cena icônica, seus
cabelos são raspados, em obediência a lei judaica, na qual para uma mulher
casada, exibir os cabelos em público é indecente, exatamente como na cultura
mulçumana, muito embora nesta, ao menos, a mulher tenha o consolo de poder
manter seu cabelo, ainda que sobre o véu.
Como bem
destaca Camille Paglia, em seu livro
brilhante “Personas Sexuais”, o hábito de raspar os cabelos da mulher para o
casamento, remonta à cultura espartana, que não só raspava os cabelos das
mulheres no dia das núpcias, mas também as vestia de soldado, na tentativa
óbvia de reproduzir a aparência de um homem espartano, já que nas culturas
gregas de antigamente, o homossexualismo e o homoerotismo prevalecia. Também
são raspados os cabelos das freiras no ato da entrega ao hábito, como prova de
renúncia a qualquer vaidade posterior. Raspados também foram os cabelos das
mulheres acusadas de bruxaria pela Inquisição, das vítimas dos campos de
concentração, das mulheres francesas que serviram de prostitutas para os
alemães durante a SGM. Raspar os cabelos das mulheres à força é, de forma
global, um ritual de humilhação, em várias culturas, talvez menor, apenas, que
a circuncisão feminina, ainda praticada em países mulçumanos na África.
Durante o
casamento, Deborah também tem seus braços algemados numa fita que é controlada,
primeiro pelo rabino, depois por seu pai e ao final pelo marido. A cena fica
particularmente pesada quando seu pai, bêbado, cai no chão, demonstrando-se que
para aquela comunidade, mesmo um homem incapaz tinha, por direito, a liderança
sobre uma mulher.
O marido de
Deborah é um menino bom, mas ironicamente dominado pela mãe e sem voz diante do
peso das tradições que lhe impõe ações referentes ao papel que ocupa. Sendo
ambos totalmente ignorantes (TOTALMENTE MESMO) a respeito do que se trata a
vida sexual de um casal, acabam por ter problemas seríssimos nessa área. Não
existe em nenhum momento a possibilidade de uma consulta médica que pudesse ajudá-los,
não podem recorrer a nenhum tipo de ajuda de fora da comunidade. Deborah vê sua
intimidade exposta e o casamento fracassando – toda a razão de sua existência
sendo colocada a deriva. A gota d’água acontece quando o marido, influenciado
pela família, decide pedir o divórcio porque eles não conseguem resolver a
questão sexual entre eles e, portanto, ela não engravida.
Qualquer
tentativa de justificar o que acontece nessa história pelo viés dos hábitos
culturais é desmascarada pelo fato de que, qualquer ser humano inteligente tem
a capacidade de julgar se um hábito cultural (político e/ou religioso) é
saudável ou não para a existência de um indivíduo ou de uma comunidade. Como
bem argumenta C.S.Lewis em várias de
suas obras, tudo aqui é efêmero e temporário; hábitos culturais não são
eternos, mas nós somos eternos e devemos viver segundo padrões eternos. Onde os
padrões eternos que temos aprendido, dentro do cristianismo, apregoam a
manutenção da ignorância e a opressão do próximo?
Justificar um
ato equivocado por ser rito cultural significaria dizer que tais ritos são
sagrados e não são. Coisas como sacrificar crianças deficientes, escravizar
pessoas de outras raças e culturas, abortar o segundo filho, invadir a
propriedade alheia visando o aumento de nossos territórios, assassinar ou
aprisionar homossexuais por conta de sua escolha de vida, apedrejar mulheres
adúlteras até a morte em praças públicas, tudo isso são hábitos culturais que
tem sido revistos e considerados imorais. Só para dar alguns exemplos. Nenhum
hábito cultural ou religioso justifica o abuso. NENHUM.
Deborah se vê,
então, inútil, abandonada e sem esperança. Nessa comunidade, que tomou para si
a função de impedir outra manifestação da ira divina, através da obediência ao
Talmude (cuja leitura é proibida para mulheres, como a série mostra) e de
substituir, através de sua prole, todas as almas perdidas no holocausto judeu
da SGM, uma mulher que não tem filhos não serve para absolutamente nada. Sem
formação ou profissão com a qual se sustentar, a jovem recorre à única coisa
que sabe que tem, embora para isso seja obrigada a subverter-se, já que esse
talento era considerado indecente para uma mulher: a música.
Tendo recebido
de sua mãe, já conhecedora das agruras que a filha poderia enfrentar se as
coisas não dessem rigorosamente certo (e tudo nessa comunidade é de um rigor
obsessivo), documentação para sua imigração para a Alemanha, Deborah vai
embora, não porque queria viver uma vida dissoluta, nem mesmo por um grande
sonho de ser musicista, mas porque se vê prestes a ser repudiada pelo marido e
porque considera (algo que ela diz em outra cena importante) que Deus exige
algo dela que ela não tem capacidade para ofertar, ou seja, a total anulação de
si mesma, a negação de sua capacidade de pensar, de questionar, de refletir e
todas as suas habilidades pessoais, inclusive seu dom para a música.
Aqui cabe mais
um questionamento específico: Se acreditamos que é Deus quem nos faz, célula a
célula, característica a característica, obviamente é dEle quem recebemos
nossos dons e talentos. Qual seria a lógica desse Deus, que deu a Moisés as tábuas
da Lei (onde não existem muitas das regulamentações rabínicas posteriores),
conceder o dom da música (ou qualquer outro) a uma mulher, se isso não seria
apropriado ou se Ele consideraria até indecente? Deus errou quando deu esse dom
a uma fêmea? Ele estava distraído? Outro questionamento: Por que existiria a
possibilidade do prazer durante a relação sexual se isso não é decente ou
apropriado? E aqui me lembro de uma cena do filme “Como água para Chocolate”,
inspirado em romance homônimo, da Laura Esquivel, onde o marido católico
fundamentalista, antes de se deitar com a mulher, devidamente vestida com
fatídico camisolão aberto na frente, ajoelha e reza pedindo a Deus que não
tenha prazer durante aquele ato. Ah, os fundamentalismos e suas consequências
na vida íntima das pessoas!
Outro
ponto da história que prova que o fundamentalismo religioso e sectário não é
portador de uma experiência de fé verdadeira se traduz pelo fato de que a crença
de seus adeptos não sobrevive ao mínimo questionamento. Basta ao crente
questionar um ponto daquilo que lhe é ensinado e tudo desaba, como um castelo
de cartas. Isso é nítido no comportamento do primo que vai com o marido
procurar por Deborah na Alemanha e na opção de vida de própria Débora, ou de
sua mãe, que ao se desvencilharem das amarras da comunidade optam por estilos
de vida muito diferentes do que aquilo que o judaísmo ortodoxo radical
apregoava (Como culpá-las?). A fé verdadeira não se abala porque o crente observa
comportamentos e hábitos equivocados em sua comunidade, antes a essência real
desta fé se fortalece e o crente se empenha por fazer as correções necessárias
no intuito de se voltar para aquilo que é Eterno. A maior demonstração dessa
verdade na História é a Reforma Protestante e está em nosso moto estabelecido. Uma
igreja que não é capaz de criticar a si mesma, à luz da Verdade do Evangelho, não
é Igreja de Cristo. Uma religião que não é capaz de corrigir seus equívocos em
prol de valores Eternos, não é a Religião Verdadeira.
A série também
nos faz refletir sobre a necessidade der sermos autênticos e verdadeiros em
nossa relação com Deus e com as outras pessoas, sobretudo as que amamos. Lembro
que quando mais jovem, em meio às típicas crises existenciais da adolescência e
da primeira juventude, tentando descobrir quem eu era e o que Deus queria de
mim, ouvi de minha psicoterapeuta, uma mulher de Deus em todos os aspectos, com
excelente formação, inclusive teológica, Roseli Künrich, a seguinte frase: -
Deus quer que você seja a melhor Danielli possível! Não existe a possibilidade
de uma verdadeira comunhão com Deus quando insistimos em apresentar a Deus as
máscaras que nossas formas religiosas consideram aceitáveis, por mais que
possam ficar bonitas em público ou facilitem nossas vidas em comunidade. Deus
deseja homens e mulheres que O adorem em Espírito e em Verdade. #ficaadica