A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Deformação ou a morte do desejo


 
Conta-se por aí uma história antiga, veiculada de muitas formas, em muitas culturas, sobre uma garota órfã, adotada por uma velha rica que a mantinha presa sempre aos seus pés. Ao receber a menina, a primeira coisa que fez foi dar um fim num certo par de sapatos de pano vermelho, costurados à mão, única lembrança que a menina tinha de sua mãe e de sua vida pregressa. Chateada, a menina escolhe na loja outro par de sapatos vermelhos, dessa vez, lindos e lustrosos, em desobediência expressa ao desejo da velha cega que a empurrava um casto par de sapatos pretos básicos, com ares de estudante de liceu.

Os sapatos, enrolados pelo vendedor cúmplice e dados para a menina de presente, acabam por mostrar-se uma grande armadilha. Mágicos, ao serem calçados provocam uma dança eterna que acaba por matar sua dona. História macabra? História muito simbólica.

Ao observar a ausência de motivos e excesso de experimentação de nossa geração de púberes, adolescentes e jovens é nítido o quanto de manipulação e desrespeito ao desenvolvimento individual tem sido despejado na cabeça e mesmo no corpo dos pobres-coitados. Simplesmente não há tempo para ouvir-se, sequer para que o desejo de fato surja em sua característica espontânea e peculiar. Na nova onda a liberalidade torna-se sinônimo de prisão: o cativeiro do consumo, do desejar antes do desejo, da necessidade pré-fabricada. Alienação de si mesmo, unanimidade deformadora do privado.

É irônico como a pseudo-liberdade acaba por nos silenciar, diante de todas as portas abertas não se sabe onde se quer entrar. O PODER ser tudo deu lugar ao DEVER ser tudo e nesse novo totalitarismo não encontramos espaço para sequer delinear em rascunho quem de fato pensamos ou sentimos SER. O excesso de experiências vividas porque se TEM que viver e não porque se QUER viver acaba por nos padronizar, somos todos livres, leves e soltos e não somos NADA. A ausência de fronteiras nos uniformiza, mata o indivíduo, exclui o desejo!

A história citada de início nos conta a gênese do consumismo - a saber - a falta do afeto primordial, da base familiar segura, de amores primitivos que funcionem, de relações especulares que nos mostrem mesmo que em incompletude o que expressamos ao mundo. Tamanha cratera emocional cria seres humanos eternamente sedentos, facilmente ludibriados pelas águas turvas de um sistema cada vez mais interessado em criar CONSUMIDORES e menos SERES QUE SÃO.

A figura da velha rica que alimenta, veste e acolhe com austeridade desde que a menina se adeque ao que ela espera, ilustra bem o SISTEMA no qual estamos inseridos, que ao nos educar para o consumo e nos empregar, apenas visa gerar para si mais compradores-consumidores-insatisfeitos, assim mantendo o regime no qual a ignorância, a massificação e o entorpecimento são peças-chaves de sua retro-alimentação. A prova cabal disso é a falência do sistema estudantil, a decadência dos pensadores, o cala-boca para questões existenciais, o empobrecimento da capacidade criativa, a medíocre e viciada produção artística, o pseudo-indivíduo copiado. A velha rica sustenta, mas escraviza, ela paga suas contas, mas decide quem você jamais será!

O vendedor aliciante não passa de outra armadilha do mesmo fenômeno, ele se utiliza de nosso tédio, de nossas dores de existência caladas com quilos de comida, drogas, sexo e toda ordem de bobagens viciantes, incluindo-se nisso a internet com suas redes sociais “drive-thru” afetivas, e a infame TV. Despreparados pela falta inicial, assustados diante das exigências de um sistema que nos forma unicamente para mantê-lo, sedentos por algo que nos preencha, que nos contorne, que nos signifique, somos presas fáceis dos entorpecentes oferecidos, queremos dançar com nossos sapatinhos vermelhos, por um instante esquecer que não somos nada e ninguém além de cópias em série de uma mesma coisa – consumidores.

A dança dos sapatinhos vermelhos, cativa, inebria, consola e vicia. Logo não há nada mais que nos faça parar, já nos perdemos no ritmo avassalador, seguimos a corrente do não desejo, do não indivíduo, do não sentimento. Tudo misturado, não somos mais capazes de diferenciar afeto de sexo e por isso beijamos e transamos com todos os nossos amigos (não conseguimos mais amar sem comer – consumir tudo e todos), não sabemos mais sequer de fato o que é preferência sexual e vinculação afetiva e somos não heteros ou homos, somos bi, tri, pansexuais o que no fundo só revela uma assexualidade neurótica com a qual lidamos em formação reativa...Quem não existe não deseja e não transa! Sexo plástico com gosto metálico. Amores estéreis e sem graça, duram pouco, passam como nuvem sem deixar rastro. Amizades de ocasião, relações utilitárias, nada toca, nada entra, nada fica!

 Profissionalmente vendemos trabalho e com ele muitas horas da vida, muitos presos em tarefas odiosas e fúteis, contando os segundos de um dia cancerígeno apenas para voltar para casa e descobrir que não sabemos o que fazer com o tempo de folga. Aprisionados nos braços de polvo da poltrona, em frente a programas educativos do SISTEMA os quais juramos tratar-se de mero entretenimento, ou diante dos “amigos internéticos” que sequer conhecemos de fato e para quem vendemos a imagem que escolhemos, ou seja, a imagem que o SISTEMA nos dá pra vender, talvez lendo livros que nos mandaram ler, ouvindo músicas que devemos ouvir para não sair do esquema, músicas cujas letras fazem cada vez mais apologia ao TER, TER, TER. Adolescentes pálidos dia e noite matando zumbis em jogos de vídeo-game em detrimento das tarefas escolares, tidas como obsoletas para mentes que supostamente absorvem mais estímulos enquanto na verdade não são mais capazes é de foco e de profundidade.

 A realidade é que não SE SABE mais como seres existentes e pensantes, e se NÃO SE SABE SER, como ou para quê distinguir o que SE DESEJA?

Ironia das ironias – o hedonista da pós-modernidade não passa de um frígido. Toda sua devassidão jaz na imaturidade psíquica. A dama da noite é criança pequena frágil lançada aos lobos abusivos da inconsciência coletiva.

É urgente uma retomada do indivíduo, não no sentido do individualismo que se revelou uma estratégia torpe para a criação de uma horda estúpida de bocas famintas prontas para sustentar um Sistema capitalista cada vez mais descarado, mas no sentido existencial da questão. Nunca fomos tão platônicos no sentido de dissociar corpo e espírito, a única observação tangível é que no caso de nossa geração o espírito está morto e com ele, consequentemente, o desejo.

A simplicidade tornou-se a conquista dos sábios.  Para chegar a ela, e no redescobrir da alma e do si mesmo, faz-se necessária toda uma gama de percepções e estratégias dificílimas, verdadeiras batalhas éticas, emocionais e intelectuais, no sentido de limpar-se dessas camadas de lixo tóxico que nos tem sido depositadas desde o momento em que nossos pais escolhem nossos nomes, muitos inspirados no galã de novela, até a velhice, quando nos dizem que não somos mais o que na verdade nunca conseguimos ser – INDIVÍDUOS.

Afinal, o que é a humanidade do pós-moderno?

Muitos enchem a boca para falar de uma pluralidade que não existe, exceto em telas mal-ajambradas de aparelhos cada vez menores, pequenos talvez para representar nossa redução mental. Nunca na história do mundo vivemos mais fictícios. Nunca nos lançamos com mais coragem ao que de fato nunca desejamos. Nunca nos procuramos mais onde nunca estaremos. Nunca fomos mais cegos e surdos. Nunca fomos mais falantes de NADA.

Saudades do tempo em que havia mais controvérsias e menos concordâncias, mais discussões e menos tolerâncias. O homem de hoje não compra briga porque bebe , fuma e transa demais – não porque deseja, mas para que jamais deseje! Enchemos nossa juventude cada vez mais cedo de pseudo-prazeres cada vez mais fáceis e mais múltiplos, os instamos a regalar-se com eles, criticamos e estigmatizamos os que se recusam, os obrigamos a encherem-se para que jamais tenham tempo e espaço para de fato desejar. O desejo é perigoso porque nasce de um indivíduo e ao existir o inaugura, indivíduos existem e pensam por si mesmos, livres pensadores questionam e percebem, questionamentos e percepções abrem brechas no sistema, e o sistema cada vez mais um ser em si mesmo, não DESEJA deixar de existir.