A pele que habito

A pele que habito

segunda-feira, 21 de março de 2011

Família, segredos e guarda-chuvas...







Anos atrás eu e um amigo de faculdade estávamos parados na soleira da porta da biblioteca, rindo um do outro e tentando decidir se enfrentaríamos a chuva forte para ir para casa depois de um dia inteiro e extenuante de aulas ou se esperaríamos mais um pouco, tomaríamos um café, assim deixando os nossos respectivos namorados (no caso dele namorada...rs...) esperando em casa.

Nenhum dos dois tinha sequer um guarda-chuva e eu ainda estava me recuperando de um resfriado, além disso, éramos grandes amigos e adorávamos estar na companhia um do outro, optamos então pelo café e foi lá na Rua Maria Antonia, após uma aula de Teoria Familiar Sistêmica, no meio de um aguaceiro e sem guarda-chuvas, que nasceu a mais simples e divertida definição de família que já ouvi até hoje, saída assim sem pretensão, de uma boca grande, cheia de um sorriso largo que eu gostava tanto.

- Dani, família é como guarda-chuva, ninguém gosta de carregar, mas todo mundo acaba precisando!

O tempo passou, perdi contato com esse meu amigo e com muitos mais, mas a idéia ficou e a reflexão por trás dela. De início a compreensão é um tanto óbvia e simplista: família seria algo que por vezes ocupa o lugar de outras coisas em nossa vida (coisas até mais divertidas, mais interessantes), algo que durante um bom espaço de tempo parece até um peso morto em nossa rotina e atividades, tem horas que é meio cafona e não combina com nosso estilo de vida, tem vezes em que é grande demais e inconveniente se a chuva é pouca, ou pequena demais em um temporal, mas inevitavelmente, em momentos cruciais e até mesmo depois de morta, todo mundo acaba precisando.

Nesse meu sempre renovado interesse por símbolos, combinado aos atendimentos “em massa” que venho realizando, o assunto FAMÍLIA começou a ganhar um novo contorno, mais profundo e mais denso e, para minha surpresa, a definição tão singela do meu amigo mostrou-se ainda verdadeira e com um sentido intrínseco muito mais peculiar.

A chuva por si só, apresenta no estudo dos símbolos um significado bastante rico, intrincado e por vezes ambivalente. Em várias culturas, nós encontramos a chuva relacionada a tudo que torna fecundo, que faz germinar, que possibilita a vida, símbolo inclusive de esperma, do líquido que fertiliza a terra para que essa produza flores, frutas e folhas. A água que vem da chuva abençoa, traz vida, crescimento, mantém o ciclo vital ou, em excesso, destrói, desnaturaliza, muda a paisagem, desfaz.

Do ponto de vista psíquico a chuva (sobretudo em sonhos) pode ter um sentido de compreensão, de INSIGHT, daquilo que nos faz entender a vida e nos libertar dos tabus neuróticos que nos tornam cativos de ciclos de morte, de pacotes sinistros feitos com nossas gerações anteriores que nos condenam a repetir seus erros e suas dores.

Nesse sentido o guarda-chuva seria aquilo que nos impede de receber a fecundidade, a possibilidade de crescer e viver por aquilo que somos, sem ele seríamos lavados de nossas heranças traumáticas, dos presentes de grego que os pais legam aos filhos inconscientemente.

Virei eu alguma ativista anti-família?

Não, muito pelo contrário, estou escrevendo isso em prol da salvação das famílias! Apenas saindo na chuva sem guarda-chuva psíquico poderemos abrir mão dos trilhos já traçados pelas dificuldades de nossos progenitores, apenas conhecendo e reconhecendo suas angústias e as nossas poderemos nos libertar do pacto de morte psíquica que por vezes estabelecemos com eles sem querer.

Toda criança saudável e inteligente percebe desde cedo o que seus pais querem dela, todas as crianças inocentes e sensíveis se adequarão a esse papel na busca incessante de serem amadas, e ainda que esse amor se dê muito raramente e em meio a ciclos constantes de violência e desprezo, a criança permanecerá em seu papel ansiando por aquela esmola de atenção. Tem gente até hoje, adultos e com pais mortos que se manterão em seu papel na aliança sinistra da manutenção da maluquice dos pais pelo sonho de ter o amor dos mesmos (lembrando que para o inconsciente não existe morte como a compreendemos), para isso abrirão mão de qualquer possibilidade de felicidade, de autenticidade do seu self, de qualquer saída que o possibilite ser ele mesmo e não uma projeção do desejo dos pais, perpetuando um ciclo neurótico.

Dia desses recebi uma menininha de pouco mais de 6 anos, ela sempre me despertava um enternecimento diferente, tinha um quê elegante de princesa, falando baixinho e usando tiaras enfeitadas e sapatos-boneca, tinha sempre uma atitude um tanto quanto pensada, pouco espontânea, meio ensaiada, isso me dava muita pena, sempre me constranjo com crianças que não agem como criança, talvez porque sempre fui muito cobrada nesse aspecto. O fato é que naquele dia havia algo diferente no ar, não estava tão simples para ela manter a compostura, levou quase vinte minutos para montar uma casinha que costumava montar em cinco, pela primeira vez me pediu ajuda, eu ia separando as peças, mas desacostumada como era em ter ajuda se atrapalhava ainda mais comigo no meio de tudo.

- Não adianta, dessa vez não vou conseguir...nem mesmo com você ajudando!

Parou um pouco e suspirou, ficou um tempo alisando a barra do casaco cor-de-rosa, talvez refletindo se devia ou não falar daquilo, esperei seu tempo, não devia apressar as coisas para não perder o momento. Por fim ela olhou para mim com seus enormes e belos olhos castanhos, sempre admirei as pequenas sardas em torno deles, continuou mantendo o olhar assim firme e em direção aos meus olhos.

- Sabe nunca tinha reparado, mas seus olhos são da cor dos meus...Meu pai diz que tem cor-de-avelã, porque é castanho avermelhado...Faz tempo que venho aqui e só agora vi!

Sorri para ela, a pequena princesa sentou mais perto, ela queria sussurrar algo importante em meus ouvidos.

- Eu só queria ter uma família feliz, todo mundo tem uma família feliz!


Detalhes mórbidos da história a parte, o que vem ao caso é que sobrou para mim a responsabilidade de dizer a ela que nem todo mundo tem uma família feliz, que muitos tem problemas também e que faz parte da vida lidarmos com nossos problemas. Após minha “brilhante” atuação explicando que seus pais também eram humanos e cometiam erros, embora fossem adultos e de dizer a ela que um dia ela cresceria, amaria uma pessoa e teria sua própria família, onde poderia fazer escolhas melhores e acertar mais, saí do consultório e fui tomar um café para me consolar do fato de ter sido mais uma vez a portadora das más notícias, em meu sentimento era como se eu tivesse contado para todas as crianças do mundo que Papai Noel não existe, nem tão pouco as fadas, duendes ou Coelhinho da Páscoa e que os contos de fadas são na atualidade apenas histórias editadas com o objetivo de vender produtos.

Por que crianças de 6 anos (ou de qualquer idade) precisam descobrir que não terão uma família feliz??????? Por que pessoas egoístas, narcisistas, totalmente imaturas e despreparadas saem parindo bebês por aí enquanto pessoas saudáveis, que são capazes de amar, de se comprometer, de desejar ardentemente ter um filho e uma família continuam sofrendo diante da solidão, da infertilidade, da incompreensão dos fóruns de adoção????????????????????????

Perguntas sem resposta nesta vida.

O que posso responder nesse texto é como podemos nos livrar do fardo das famílias infelizes nos tornando pessoas capazes de gerarem e criarem filhos sadios e felizes, essa possibilidade existe, tenha vindo você de onde e de quem for. VOCÊ PODE SER FELIZ, TER UM RELACIONAMENTO SAUDÁVEL E UMA FAMÍLIA AMOROSA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

O primeiro passo está em ENTENDER que seus pais ou os adultos responsáveis por você fizeram o que podiam mediante as escolhas feitas por eles e o que eles próprios receberam, ou seja, NÃO FOI CULPA SUA, você era uma criança linda e esperta que MERECIA TER TIDO UM FAMÍLIA FELIZ, senão teve a responsabilidade recai sobre aqueles que tinham por obrigação cuidar de você.

O segundo passo está em CHORAR essa dor, pegue toda sua frustração, sua mágoa, suaS histórias tristes, toda agressão e desamor recebidos, coloque tudo num caixão imaginário, chore pela criança que teve que passar por tudo isso sozinha e sem proteção, chore uma semana se for necessário, depois faça uma cremação psíquica, queime tudo até a última cinza, deixe o vento ou o mar levar tudo embora.

O terceiro passo é DESISTIR de esperar que esse passado se altere, que seus pais mudem, que te amem e sejam tudo o que não foram...Just let go, ou você continuará preso nessa teia e desperdiçará sua vida numa maldição do tipo “não fomos felizes, logo você não pode ser também...”, isso é muito comum em crianças cujos pais não se separam “por causa dos filhos”, após uma vida de hostilidade e infelicidade tornam os filhos cativos de sua própria dor, como uma espécie de compensação por terem mantido a família “unida” às custas de seus sonhos e realização. Vale salientar que sair fugindo da realidade familiar, abandonar tudo e todos achando que com isso o problema se resolve magicamente é uma bobagem, você pode ir até o Alasca e nem perceber que toda sua infância e seus dramas familiares estão bem ali, enfiados na sua mochila, vão contigo aonde for. Não dá pra pular de fase, tem que atravessar esse vale!

Bom, após dar-se conta que VOCÊ NÃO TEVE CULPA, após CHORAR e fazer o luto da família feliz que você não teve e depois de DESISTIR de lutar em vão para mudar seu passado, chegou a hora de DESCOBRIR QUEM VOCÊ RELMENTE É, longe das projeções de seus pais e adultos responsáveis, longe do papel que eles te atribuíram nessas redes inconscientes, para isso tem vários caminhos: psicoterapia, busca pelo sagrado, expressão artística, esportes, tudo isso junto, enfim, qualquer coisa que te coloque em sintonia com seu self, seu verdadeiro eu, com aquilo de mais autêntico e peculiar que existe em você...Chega de repetir as besteiras do papai e da mamãe, chega de refazer as escolhas erradas das pessoas que não puderam te dar o suporte necessário, chega de ser infeliz só para se vingar de tudo isso...SE ACHE, SEJA VOCÊ MESMO E ENCONTRE O SEU CAMINHO em meio a chuva!!!!!!!

Só aí, quando estiver de posse de você mesmo, do seu verdadeiro eu, seguro de quem você é e daquilo que realmente te pertence nesse mundo psíquico, você poderá cumprir a última etapa do processo e CONSTRUIR UMA VIDA FELIZ, QUEM SABE ATÉ MESMO UMA FAMÍLIA FELIZ SE ESTE FOR SEU CAMINHO...A última etapa é o PERDÃO, no sentido de não mais atribuir culpa, liberar aqueles que erraram com você do peso do mal que eles lhe fizeram, deixar que eles se vão, guardar apenas aquilo que faz bem levar na jornada...SER LIVRE!!!!!!!!!!!!!!! Andar na chuva sem guarda-chuva, não por rebeldia ou rancor, mas porque você está pronto para ser fertilizado, fecundado, emancipado.

Sou árdua defensora da família como instrumento de comunhão, aprendizagem, vínculos e trocas afetivas, compartilhamento de valores e conhecimento, mas a família só pode ser tudo isso se os indivíduos que a compõem, sobretudo se os adultos que a lideram forem conscientes de sua importância e de seu papel na formação das próximas gerações de indivíduos, se conseguirem olhar para seus filhos como pessoas e não como objetos ou apêndices de si mesmos, pessoas pequenas mas repletas de sonhos, necessidades, potencialidades e segredos a serem descobertos e valorizados...Cada ser humano é único e valioso em sua peculiaridade!

Aos que crêem: Deus nos dá os filhos como herança e ele há de nos cobrar a forma como administramos essa dádiva sobremaneira preciosa que ele nos oferece.

Aos que não crêem: se o homem é bom em si mesmo e solitário na tarefa da vida, torna-se maior ainda sua responsabilidade para com os que gera.

Para ilustrar tudo isso não deixem de assistir “Um segredo entre nós”, belo filme exatamente sobre tudo o que vim dizendo no ENORME TEXTO acima...