A pele que habito

A pele que habito

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

A Gravidade do Luto



INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO
Na mesma pedra que se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-nos a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!”
Mario Quintana



“É mesmo ampla a tristeza
E tênue a melancolia?”
Pablo Neruda


“A alma escolhe sua companhia
E fecha a porta, depois.
Em sua augusta suficiência,
Cessam as intromissões...
Sei que, dentre uma vasta multidão,
Ela escolheu um ser apenas;
Depois, cerrou as aldravas de sua atenção,
Feito pedra.”
Emily Dickinson



“Ó Capitão! Meu Capitão! Nossa terrível viagem se cumpriu,
O navio cruzou tormentas, é nosso o prêmio pio,
O porto vê-se ao perto – os sinos dobram, o povo espera...
Meu Capitão já não responde, a boca sem vigor e viço,
Meu capitão já não se move, cessa o pulso, o corpo rijo,
Sã e salva a nave ancora – o périplo se encerra e tudo finda,
Da viagem vil a nau retorna – o grande prêmio, a glória finda;
Ó clamor das praias, Ó dobrar dos sinos!
Só me resta andar sombrio,
No convés onde ele dorme,
Deitado morto e frio.”
Walt Whitman



     Há um mutismo agudo na perda, uma sensação de flutuação, de estar caindo sem nunca chegar, um torpor, uma letargia, uma lentidão estranha que nos torna insensíveis por completo. O espaço se torna tão mais extenso ao nosso redor, tão mais desconhecido e tão mais silencioso – de um silêncio doloroso, pesado, cansativo. O corpo inteiro se ressente dessa tristeza que torna o ar mais condensado, cada respiração nos fere e a sensação de falência dos órgãos é constante - tudo é cansaço, um eterno deitar-se. Destituídos das sensações táteis, tudo é frio ou quente demais. As dores no peito, no pescoço e nas costas são frequentes e insanas. O tempo todo se vê a beira do abismo, abandonados a uma orfandade sem precedentes esperamos algo acontecer, revertendo o caos que nos atingiu. O pensamento se torna inibido e completamente improdutivo, de uma crueldade crônica que visa apenas nos dilacerar com suas lembranças macabras a nos ligar ao que nos fere. Os sentimentos são pequenos ventos caóticos, nos açoitando e confundindo. Sem corpo, nos sobra uma alma penada. A perda nos faz fantasmas dos nossos próprios fantasmas.

Cientificamente, o luto é um processo considerado normal- apesar de seus múltiplos desdobramentos psíquicos e comportamentais- que é produzido em resposta à perda de alguém amado ou a algo que remeta a alguém ou algo amado.

 Dentro do que é considerado ok, esse processo ou trabalho de luto deve ser superado dentro de algum espaço de tempo, período este que é muito relativo e pessoal e que pode se reduzir a meses ou se estender a anos ou mesmo a uma vida inteira. Dizem por exemplo que a Rainha Vitória, tendo ficado viúva relativamente jovem, permaneceu escolhendo e separando as roupas para o marido diariamente até o final de sua própria vida, num ritual meio fofo, meio macabro que devia causar estranhamentos na tão fleumática corte inglesa da época.

De acordo com Freud, este trabalho de luto seria uma espécie de construção para aceitação da perda, uma vez que ao perceber que o objeto amado já não existe e que a libido investida nele precisaria ser recolhida e investida em outro objeto para o bem da saúde mental do vivo, o psiquismo parece reagir a esta realidade, optando por permanecer ligado a esse objeto como meio de não permitir sua partida. Essa oposição poderia ser tão intensa que daria lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto através de uma espécie de psicose alucinatória carregada de desejo, que atuaria no sentido de continuar ligado ao objeto amado (Quem nunca?). Num ciclo normal, para o enlutado vai prevalecendo a realidade, embora não consiga adotar suas ordens de imediato, mas apenas pouco a pouco, com grande dor e dispêndio de energia, mantendo durante esse tempo, psiquicamente, o objeto amado vivo. Cada uma das lembranças e expectativas para com o objeto é re-vivenciada e o desligamento da libido se dá em relação a cada uma delas. Apenas após esse doloroso e demorado trabalho é que o ego ficaria livre para seguir sua vida.

No que tange a melancolia (hoje em dia mais conhecida como Depressão)- já considerada como patológica – podemos dizer que embora em muito se assemelhe ao luto, inclusive podendo iniciar-se a partir de uma perda real, cogita-se que para não perder o objeto amado, parte do ego se identifique com ele e o absorva, mantendo em si uma parte do mesmo. Isso explicaria, por exemplo, o fato do melancólico, ao contrário do enlutado, enfrentar uma grave queda de autoestima, já que mantem em si aquilo que o magoa e o ataca severamente. Sendo assim, depressivos que se recusam a melhorar e insistem em maltratar-se podem estar, dentro de seu quadro patológico, agredindo não a si mesmo, mas a quem o magoou. Fica de semelhante com o luto, a lentidão e severidade do trabalho de descatexização, aqui ainda mais agravado pelo prazer causado pela autoflagelação emocional.

O filme “Gravidade”, de Alfonso Cuarón (“Paris, te amo”, “Grandes esperanças”, “Labirinto do Fauno”, entre outros...), com Sandra Bullock e George Clooney, conta a história de dois astronautas que em meio a uma missão, são surpreendidos pelos destroços de algum desastre com satélites e acabam perdidos no espaço infinito, com poucas chances de sobrevivência e momentos de muita tensão. Ao nos deparar, no meio de todo aquele silêncio e abandono galáctico, com a história da morte da filha da personagem de Sandra e seu dilema interno quanto a morrer ou sobreviver (ceninha bacana com um George Clooney a la “Descendentes”) impossível não associar toda a agonia da falta de Gravidade à experiência do processo de Luto.

Chama a atenção em todo o filme essa questão da ausência da Gravidade. Definida por Isaac Newton como a força de atração que existe entre todas as partículas com massa do universo, protagonista da manutenção dos objetos à superfície dos planetas e dos objetos em órbita em torno uns dos outros, sugere uma metáfora perfeita para o amor – sentimento que regula a distância entre cada um de nós e o outro. O trabalho do luto sendo exatamente esse período de se estar fora da ação dessa força: suspenso, alheio, a deriva, infinitamente sozinho, inalcançável, incompreensível, intocável e irredimível.

Todos aqueles que já amaram o suficiente para sofrer de verdade a perda de alguém ou de algo, sabem o que é aquele silêncio interno que se cristaliza dentro de nós no momento em que - passado o tempo do enlouquecimento quando pensávamos poder manter vivo nosso objeto amado - nos damos conta de que ele não existe mais. Conhecemos a sensação de vazio e de falta de sentido que se apropria de nós a partir de então e que certamente nos conduzirá ao exato instante em que a pergunta crucial será feita: Vai partir ou vai ficar? Apenas desligar as máquinas, colocar uma música lúgubre e dissolver? Ou vai abrir os olhos, se lembrar do que foi aprendido em algum momento, em algum lugar e que é exatamente o que é preciso para voltar a existir?

O instinto de vida é algo muito, muito forte!

Após a decisão ser tomada, para aqueles em que a vida prevalece haverá um duplo batismo, um de fogo para cauterização das feridas e purificação, outro de água para revitalização. Sai-se do segundo nu e caminhando, geralmente num lugar desconhecido e natural. A vida se amplia numa dimensão nunca antes imaginada e tudo ganha novo significado. Olhos são abertos, os corações transformados. Acima de tudo existe um novo olhar para o si mesmo, uma nova capacidade de auto-sustentação, medos são superados, questões não resolvidas são encaradas, aumentamos nosso amor por nós mesmos e com isso nos abrimos mais aos outros, superamos falsas expectativas e desmistificamos falsas necessidades. Embora sejam necessários inúmeros pequenos recomeços para que seja possível uma solução completa do luto, a cada recaída volta-se mais forte como numa espiral de superação.

Do mesmo modo que o luto nos ensina a experimentar a dor, a deixá-la nos atravessar até que possa enfim partir, a superação dele nos ensina a experimentar novamente a alegria, que dessa vez é sentida como se fosse a primeira vez, ela vem devagar e inesperadamente e num susto nos pegamos sorrindo, como uma margaridinha inesperada, num canto de cimento rachado.

A verdade é que ao contrário do que crescemos ouvindo, nem tudo tem sentido na vida, principalmente no que tange as coisas e pessoas amadas que perdemos pelo caminho.

O trabalho do luto - dessa ferida afetiva, dessa espécie de amputação essencial – é afinal, um trabalho de aceitação, de reconciliação. É um trabalho de afastamento progressivo não do objeto do amor, mas em direção à possibilidade de amar de novo, outra pessoa, outra coisa, de outro jeito, para que haja novamente um caminho para a alegria. O processo de luto, na verdade, é uma jornada em direção à admissão de uma verdade indesejada, para que através deste reconhecimento a vida se torne outra vez viável. Como diz o evangelho de João:

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará...”

Desse modo poderíamos dizer que o luto, sendo um horizonte do amor, seria um caminho para a sabedoria. Heidegger defende essa ideia, considerando que a partir do momento que se toma consciência da morte e da possibilidade da perda, isso traria uma maior reflexão sobre a vida, nos fazendo repensar sobre a existência e sobre o estar no mundo. A grande verdade a ser absorvida e que é comum a cada um de nós é o fato de que a experiência humana é de uma fluidez constante, completamente mutável, livre e sem segurança alguma. Tudo isso não nasce de alguma deficiência do homem, mas da condição de seres da Natureza que carregamos em nós.


“Em relação a todas as outras coisas é possível dar-se segurança, mas, por causa da morte, nós, homens, habitamos todos uma cidade sem muralhas.”
Epicuro






quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Inveja nossa de cada dia...



“O belo é sempre espantoso...”
Baudelaire


“O Amor não inveja”
I Coríntios 13


“...a Criatividade é a causa mais profunda da Inveja”
Melanie Klein



“...o Talento é imperdoável”
Diderot


A inveja habita no fundo de um
vale onde jamais se vê o sol.
  Nenhum vento o atravessa;
  Ali reinam a tristeza e o frio
  Jamais se acende o fogo,
  Há sempre trevas espessas
 ...A palidez cobre seu rosto,
  Seu corpo é descarnado,
o olhar não se fixa em parte alguma.
  Tem os dentes manchados de tártaro,
  O seio esverdeado pela bile,
  A língua úmida de veneno.
  Ela ignora o sorriso,
  Salvo aquele que é excitado pela visão da dor
 ...Assiste com despeito aos sucessos dos homens,
  E este espetáculo a corrói;
  Ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma,
E este é o seu suplício.”
Ovídio




     No Paraíso Perdido de Milton, vemos recontado o drama do Éden, no qual Satã com inveja do Deus Criador e na tentativa de estragar o gozo da vida celestial declara guerra e cai, construindo com outros caídos o inferno como rival do céu e tornando-se a força destrutiva que visa destruir o que Deus cria. Desde Santo Agostinho a vida vem sendo descrita como uma força criativa em oposição à inveja, tida como força destrutiva. Desta forma reconhece-se a inveja - expressão da maldade, como uma das emoções primárias no ser humano, desde o pecado original, quando o homem escolhe dar ouvidos à serpente.

     De lá para cá seguimos acompanhando sua manifestação como força motriz de diversos dramas e personagens, sejam eles reais ou fruto do imaginário: Caim matando Abel, a madrasta da Branca de Neve pedindo seu coração para comê-lo, Yago enganando Otelo, Caifás pedindo a pena máxima para Cristo, Mussolini aprisionando Gramsci por toda a vida por discursar melhor que ele no parlamento italiano. Inveja e destruição, o casal infernal, unido e atuante, desde que o mundo é mundo.

     Do mesmo modo que sua manifestação, o conceito de que a inveja é um sentimento negativo também é universal, nos circuitos psicológicos e psicanalíticos atribui-se a ela inclusive, dependendo da intensidade, o caráter de sintoma patológico.

     O invejoso é, em geral, alguém que não é capaz de tolerar o prazer do outro, sua fruição, assim não consegue suportar também que algo de bom lhe seja dado por esse outro. Não pode usufruir esse outro, não reconhece ou admite de má vontade as qualidades alheias, o valor de outra pessoa e se mostra incapaz de experimentar e de expressar gratidão. O invejoso não reconhece que o outro tenha algo de bom a lhe oferecer e não é capaz de receber informações ou ajuda, pois tem grandes dificuldades com o saber do outro, saber que o faz sentir-se sempre humilhado – não tolera ver, ouvir ou vivenciar coisas novas e prazerosas, experiências positivas e pensamentos interessantes que venham de outra pessoa. Não é capaz de aguentar e assimilar a ideia da felicidade alheia.

     Nesse sentido, o indivíduo que empalidece frente a felicidade alheia pode atuar de forma destrutiva, chegando ao ponto de fazer o outro de fato entristecer-se. (Mezan, 1987)

     Nessa compreensão, podemos dizer que a inveja sempre se apresenta como um sentimento que esteriliza a curiosidade e, portanto, acaba por determinar uma espécie de indigência psíquica.

     Se para Melanie Klein a inveja é uma manifestação primitiva do psiquismo ligada à agressividade e a um desenvolvimento capenga do narcisismo para a plena percepção do outro - falha essa que gera no sujeito a sensação de que nada pode ser por ele apropriado, nada lhe pertence por direito, tornando-se o invejoso vítima perene de um sentimento de falta arrasador, diante da qual tudo que é seu se mostra inadequado e insuficiente, enquanto que tudo que é alheio surge como melhor –para Nietzsche, em sua tipologia, quando fala do “fraco”, do “escravo” ou do “doente”, os caracteriza antes de qualquer outra coisa como ressentidos e invejosos. Na concepção do filosofo, o “fraco” não se apresenta apenas como uma antítese do “forte”, mas como alguém que tem uma ferida aberta no peito, algo que o sangra dia e noite: a inveja. O invejoso não aparece, ele se esconde, se resguarda em seu nome como numa capa, ninguém sabe quem ele é, pois nunca fez de fato nada, como um inseto que muda de cor para se parecer com a paisagem. Segundo Nietzsche, a inveja e a covardia são irmãs.

  Diderot foi o primeiro a qualificar a inveja pelo que mais a incomoda – o talento. O invejoso não inveja o outro por ter dinheiro ou bens materiais, inveja pelo talento que ele mesmo não possui. Vemos muito isso ilustrado no mundo cultural e acadêmico: um livro não publicado, uma ideia censurada, uma crítica ácida descabida, um não injustificado, uma proibição sem sentido.

     O invejoso nunca debate, nunca discute ou se abre para comparar opiniões, em geral agride e se esconde evitando o confronto aberto num terreno de disputa justa, pois tem medo do confronto, mesmo sabendo que não perderá nada, já que nada tem a perder – afinal é ciente que o talento do invejado é o algo que ele não tem. Esse nada que habita o cerne do invejoso é o que alimenta e perpetua sua inveja.

     A verdade é que seja o sujeito invejoso vítima de um desenvolvimento psíquico falho, ou de uma fraqueza de caráter, leva uma vida dolorosa de constante e abjeta comparação com o outro – cativo de um sentimento perene de insuficiência, o invejoso nunca é feliz. Em geral se trata de alguém de difícil convívio social e com seus entes queridos, cuja presença é marcada por comportamentos agressivos e por um olhar de constante crítica, assim como também é constante sua recusa em revelar e vivenciar afeto. O ódio inconsciente costuma ser tão violento que o leva a atacar o outro o tempo todo, visando destruir aquilo que neste outro existe e que ele não encontra em si mesmo. O invejoso é espoliador, não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. (Joseph, 1992)

Nossa sociedade contemporânea, caracterizada pela ética de mercado, parece ter encontrado numa neurose o combustível para sua existência e manutenção. Ao nos tornarmos seres de comparação, assinamos nosso contrato com o descontentamento e angústia perpétuos.

A política consumista se nutre das imensas e irreais expectativas daqueles que se sentem vazios de si mesmos e perpetua um estado invejoso tanto nas escolhas de estilo de vida, quanto nos relacionamentos. A tragédia habita no fato de que se a inveja – que diferente da voracidade não visa incorporação, mas destruição – se tornar um aspecto dominante em nossa maneira de viver no e de ver o mundo, colecionaremos relações disfuncionais, recheadas de afastamentos e intrigas e isso em todas as dimensões relacionais. A inveja materializa o vazio do cotidiano, intensifica o sentimento de desilusão, torna o criar, um destruir, unindo de forma bizarra dois conceitos excludentes e nos condenando ao nada existencial.

Muito se tem falado a respeito da nossa Era do Vazio, tempo de imediatismo, tempo de individualismo hedonista, tempo de apatia, tempo de sedução generalizada sem eros nenhum, tempo de legitimação de todas as formas de vida sem que haja de fato um sentimento de viver em nenhuma delas, tempo de banalização da violência social, da co-existência fake de contrários, tempo de inversão de ideais e de analgesia emocional completa, de uma mente gravemente alterada, incapaz de conter coisa alguma – tempo de um sujeito incapaz de aprender seus próprios sentimentos na relação com o outro porque não tolera que o outro exista. Em toda parte reina uma solidão doentia e uma dificuldade de ser transportado para fora de si mesmo. NÃO HÁ PONTES.  
 
Na era do vazio, a ilusão predomina sobre o fato, não apenas mascarando o fato, mas o substituindo. O consumismo é performático, fetichista, se torna um ser poderoso que ao ser colocado sobre o indivíduo o transforma, o preenche, pelo menos até o próximo “sonho de consumo”.

A própria produção artística de nossos dias denota uma incrível redução da vida interior (Kristeva, 1993). Quem hoje ainda tem alma? As patologias do vazio revelam a perda progressiva da capacidade de simbolizar, seu sintoma na arte se expressa no foco temático contemporâneo na relação primordial do homem com tudo que nega a existência, no transitório, na precariedade e parcialidade de todas as perspectivas.

Tanto nas salas de aula quanto nas clínicas psicológicas e psiquiátricas constata-se a inibição da curiosidade por tudo aquilo que vem do outro em indivíduos marcadamente invejosos, cujo mundo mental é empobrecido. Essa falta de interesse pelo que os cerca reflete-se numa indiferença com relação ao funcionamento de suas próprias mentes, de seus pensamentos e estados emocionais, o que os leva sempre a um saber abstrato e a uma racionalidade estéril e onipotente. A falta de curiosidade pode ser entendida como uma defesa contra a inveja, evitando o impacto com experiências novas e com elas as dores da inveja, da sensação de vazio e do rancor.

Sem curiosidade e abertura para o mundo não há possibilidade de criação. Espoliar o ser da possibilidade de criar é retirar dele a própria vida. Sendo assim, a inveja é um sentimento que ao não suportar a diferença e a criação, ataca as fontes da vida. Logo, como manifestação psíquica da maldade, a inveja não tolera a alteridade, pois o outro exige de nós uma atitude criativa que nos possibilite a experiência. (Merleau-Ponty, 1971)

Encerro essa reflexão desafiando os que ainda seguem despertos a jamais dormirem e a buscarem maneiras de semear no deserto para um resgate do homem no homem.


“Sim, o seu olhar é sem inveja: e é por isso que o honrais?
Preocupa-se pouco com as vossas honras;
Tem o olho da águia, olha para o que está longe,
Não vos vê!... Apenas vê os astros e as estrelas!”
                                     Nietzsche



quinta-feira, 25 de julho de 2013

Manifesto Femino

A mulher é o único receptáculo que ainda nos resta, onde vazar o nosso idealismo.” Goethe

            Já há alguns meses sou brindada todos os dias com notícias grotescas sobre a condição da mulher. Ou é uma garota apanhando por querer aprender em países árabes, ou meninas sendo estupradas por grupos de homens na Índia, ou esposas tendo seus rostos queimados por ácido ou qualquer barbaridade do gênero ocorrendo em lugares que, verdade seja dita, nós ocidentais consideramos praticamente selvagens. Hoje cedo li sobre uma mãe que passou por todo tipo de abusos na China (a fantástica China comunista de alguns), sendo inclusive aprisionada e enviada para “Reeducação” por querer justiça para a filha de 11 anos que foi estuprada, sequestrada e prostituída. Todos sabem das meninas do leste Europeu que são aliciadas e enviadas para países estranhos e escravizadas sexualmente, meninas cuja própria ONU já deixou de ajudar. Diante de tudo isso – escreverei um pouquinho (porque o assunto exige livros, muitos, até...) sobre a suposta emancipação da mulher no século XXI.
            É verdade, no mundo “civilizado” somos: engenheiras, astronautas, escritoras e tudo mais. Podemos dormir com quem quisermos (e já dizia a Celine em “Antes do Amanhecer” que o feminismo foi criado por homens para terem sexo fácil....rsrs...) e até fingir que adoramos o Henry Miller – que ironicamente na vida pessoal era quase uma moça, no bom sentido da expressão - se isso nos render uns dias na cama de algum conquistador bonitão burro o suficiente para achar que queremos dele mais do que alguma aventura. Algumas decidem nem se casar, podemos não ser mães e eventualmente até abortar, ou ser mães solteiras se assim quisermos. Muitas se divorciam sem serem chamadas de putas e algumas decidem livremente inclusive viver com e amar mulheres. Trabalhamos e estudamos o mesmo tanto ou mais que os homens, já que muitas ainda terão que assumir todas as tarefas domésticas sozinhas (afinal segundo a lenda, lavar a louça e trocar fraldas fazem cair o pênis...rsrs..) - isso embora ganhemos sempre menos que eles, sendo ainda preteridas em processos seletivos caso ainda estejamos em idade reprodutiva, e muito embora nossas vaginas continuem sendo disputadas como despojos por nossos chefes e companheiros de trabalho (algumas inclusive ainda se fazendo valer delas para galgar promoções e conquistar um lugar ao sol). Somos tão sedutoras e independentes quantos as garotas do Sex and the City, apesar de ainda sentirmos os olhos marejados quando pensamos em onde andarão os Mr.Darcys da vida.
            Emancipação à parte, estes dias tive que disfarçar meu mal estar ao ouvir meu namorado falando, enquanto víamos um filme, que para o que foi feito com a mulher não existe perdão. Afinal, o que foi feito com a mulher? E que melhorias de fato conquistamos além de ficar parecidas com homens para galgar algum lugar de respeito?
            Sabemos o que nos foi contado, o que lemos em livros, o que ouvimos de nossas avós e bisavós. Sabemos das antigas religiões pagãs que cultuavam deusas, a fertilidade e a capacidade feminina de gerar filhos. Sabemos de épocas em que o saber próprio da mulher era valorizado e respeitado. Sabemos também que os homens em geral tem sede de poder, que nunca conseguiram compreender de fato os mistérios femininos, nunca foram capazes de absorver o conhecimento e a intuição embutidos em cada menina, moça, mulher e velha e isso simplesmente porque não são e nem nunca serão mulheres. Sabemos também que são mais fortes que as mulheres fisicamente.
          Foram gerações de abusos, estupros, desrespeito e dominação. Fomos dominadas, hostilizadas, abusadas, brutalizadas, caladas, humilhadas, vendidas, compradas, desculturalizadas e condenadas à ignorância, desprezadas, ignoradas, queimadas, estripadas, mutiladas, torturadas, espancadas, FOMOS CALADAS...E verdade seja dita: em algumas épocas e culturas, se tivessem se tornado capazes de gerar seus próprios filhos sozinhos, talvez os homens tivessem nos aniquilado por completo. Estudando mais sobre a natureza da violência só se pode concluir que tudo isso foi gerado por uma única razão: MEDO. E quanto mais inseguro em sua própria masculinidade, maior o medo e maior a agressividade contra a mulher – o grande OUTRO do homem.
            Eva, Pandora, Medéia, Lilith e isso só para mencionar a antiguidade. Todas grandes ilustrações da grande paranóia masculina frente ao desconhecido. Paranóia essa que culminou nas fogueiras da inquisição e em milênios de injustiça. Tantas mulheres sem alma, sem essência, sem nome!
            A mulher lidou e lida com isso com a mesma gana de sobrevivente. Toma posse de sua resiliência (característica intrínseca ao gênero, afinal somos 9 vezes mais resistente a dor que o mais forte dos homens)  e faz o que é preciso: aceita emburrecer, transforma o corpo em oferenda e depois em mercadoria, aprende a mentir, enganar e fofocar, cede a todos os tipos de mesquinharias e intrigas - e como os felinos - aprende a competir e destruir suas semelhantes se isso significar sobreviver. Abre mão de sua individualidade, muda a cara, muda o corpo, muda o cabelo, muda até de preferência sexual se isso garantir que não será destruída, abandonada, preterida. Sua capacidade criativa virou cativa da necessidade e ela interpreta o tempo todo desde que isso lhe garanta algum afeto, algum alento, algum amor. A mulher se mascarou para não morrer, pagou com a não existência a possibilidade de existir. Até no mais liberal dos países a mulher é obrigada a seduzir primeiro, se quiser mostrar de fato seus reais méritos – bonecas consumíveis, quando não sexualmente, prestando outros serviços. Pergunta-se muito (e estupidamente) porque existe tão pouca obra artística de qualidade no mundo feminino e a resposta é óbvia: a mulher vem usando sua capacidade criativa para sobreviver desde que o mundo é mundo. Graças aos céus, com ela sobrevive também a humanidade, porque se não fosse pela teimosia da mulher em continuar por aqui, já estaríamos extintos há séculos.
            Nossa maior capacidade foi transformada em fragilidade: a empatia. Somos condenadas por amar demais, por nos importar demais, por sentir demais. No ocidente do século XXI mulher de sucesso é aquela que sente pouco, não pensa e se o fizer - faz como homem, dá para todo mundo e finge que gosta disso, aceita relação aberta ou para roubar marido de outra ou para não ficar sozinha (o grande pavor da mulher moderna), não é mãe, mas se for, finge que não curte muito para que não achem que perdeu o sex appeal  e, acima de qualquer coisa, sabe se vender bem – e isso em qualquer âmbito.
            Naturalmente houve e ainda há lugares, homens, momentos e mulheres exceção. Para cada exceção, zilhões do mesmo fenômeno. Para cada mulher que não cede frente às pressões do sistema, existe sua própria quota de desprezo, desvalorização, desamor, maus tratos, ameaças e rechaços.  O preço é altíssimo! Experimente acordar todo dia de manhã sabendo que não poderá dar um passo em falso ou saberão que você é APENAS mulher.
            Encerro essa breve reflexão com uma pergunta de mulher para mulher (e nem gosto da Marisa...rs...): - Até quando, meninas?
           




terça-feira, 25 de junho de 2013

Poema sem Nome

Ouço a voz do vento
Que bipartido canta duas canções
Uma é louca como os marfins,
Outra vem do branco profundo
De um porvir vaporoso
Sina dos querubins.
Não sei qual delas me chega mais alto
E apenas escuto em pé na ribalta
Chorando lágrimas de louça
Com frio, sem roupas.
O que virá depois do carnaval?
O rosto ou o vendaval?
Sem trabalho se cria um mundo
Preciso só de um átimo e de um vagabundo.
Sinto saudades da noite que me brinda linda
No sono insepulto,
Nacos de um pano ardente
Banhados em tinta silente
No alerta do vulcão sorumbático – surdo.
 
Existe corpo físico na fantasia curta?
O sussurro irrita meus lóbulos úmidos
De cada verdade manifesta
Pelo ar agitado, tartamudo
Que insiste em me revelar.
No canto uma pá de coveiro
 
Constante liberta um monstro, um anjo e uma lua,
Determinada sacoleja
No lombo de um cavalo insone
Que ousado teima em voar.
No psiu o vento me chama
Reclamando sem inibição
Em sorrisos de doce diluídos em reza
Na melodia uma hora sacra, outra profana.
 
Tem pés de bode e bigodes de gato –
Nas mãos leva com fé um archote,
Surge nas sombras em pequenos sapatos de prata
E tem a pele quente e o sangue corrente
Fluindo em meias de nylon.
A pressa sequestrada
Arrasta em algemas de nuvem
O coração que tolhido se descobre em plumas.
Nunca houve flor como aquela
De alvura espontânea e pétalas de chuva.
Se o Oriente é rico em receios
Nós nos refazemos
Em brinquedos e folguedos
Nas festas multicores das noites de São João.
 
Marcamos encontros com a vida,
Ela nos busca com seu pão fornido
Inocentes abandonamos todas as ressalvas:
- Se ela é vida onde mora a falta?
No perfil recortado no ar
Que nos acompanha a pestanejar
Nos cobre de vergonha com seu tom ausente
Leva-nos tudo
Dedos anéis e saias
Mais tolo o que ganha que o ludibriado,
Sua máscara envelhece
Sua voz embrutece
Os falsos sorrisos de anos e de paz
Se revelam na curva contrária
De bocas a mais.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Conservar, Proteger, Preservar



Eliot - Quatro Quartetos - trad: Ivan Junqueira


O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é eternamente passado
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma distração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.

                Johann Wolfgang Goethe dizia que aquele que sabe guardar, proteger e conservar terá sempre, no fim, e que bom é adquirir, mas melhor é conservar.


De tudo de belo e interessante que vi e conheci em minha visita à Alemanha em 2003, algo que sempre me volta com certa doçura é aquela máquina antiga de Coca-Cola que seguia funcionando perfeitamente no hall de entrada do prédio onde me hospedei – tinha cara de anos 40/50, era imensa, branca e fazia barulhos engraçados quando de lá saltavam maravilhosas garrafinhas de vidro retornáveis cujo líquido escuro descia por minha garganta com um toque a mais de sabor e originalidade. Por toda parte na Europa se viam coisas assim, velhas (ou antigas) funcionando e harmonicamente integradas com a rotina dos dias mais modernos.

De acordo com nosso “bom e velho” dicionário Aurélio, conservador é aquele que conserva, que se opõem a reformas radicais, que defende princípios, o também chamado tradicionalista, conservar se relaciona a idéia de continuar a ter, resguardar do dano, amparar, defender, preservar, proteger.

Antes de continuar faço questão de salientar que em termos de humanidade (com isso quero dizer aspectos sociais, psicológicos e políticos do convívio entre pessoas), ser conservador não é sinônimo de pertencer a classes dominantes em oposição aos oprimidos, ou ser homofóbico, racista, sexista ou qualquer gênero de câncer social existente, mas sim uma postura pautada em princípios e valores construídos no tempo e espaço – historicamente- conceitos estes que sobreviveram ao teste das gerações e devem ser conservados e mantidos como base para outros.

Sendo práticos, se observarmos e analisarmos da forma mais imparcial possível todas as grandes revoluções e instituições humanas geradas com base na racionalidade pura e em interesses imediatos, concluiremos que nenhuma delas sobreviveu à pressão do tempo ou conquistou resultados satisfatórios duradouros. Sendo assim, a idéia de que supostas transformações eficazes e longevas seriam CONSTRUÍDAS em longos processos de desenvolvimento e evolução, pautadas em princípios de base, parece ser comprovadamente mais plausível.

Falando apenas de nossa geração, podemos afirmar com notoriedade que somos avessos à aceitação de nossas limitações temporais e um tanto surdos ao que nos foi legado por nossos ancestrais, negamos a realidade de nossos propostos 80/90 anos (com sorte) e ignorando nosso alcance de pouca monta insistimos em investir no macro o que só poderia alcançar algum êxito no micro.

O imediatismo e a ansiedade prementes que definem nossas atitudes, planos e perspectivas – facilmente ilustrados em nossa determinação de bunda-moles e na infância eterna que cultivamos com ardor – desfocalizam nosso entendimento, nos condenando à uma pseudo-inocência constrangedora que nos torna abertos a tudo e conservadores de nada, nem de nós mesmos.

A começar de nossas escolhas profissionais, tão frouxas quanto nosso comprometimento, que pautadas pelo desejo por prêmios imediatos e vida plena instantânea (louros que nossos pais e avós levavam décadas de suor para ostentar) matam nosso potencial criativo no momento em que o direcionamos para profissões áridas (do ponto de vista do significado pessoal), mas que garantam retorno financeiro imediato. Tanto pior os casos em que acovardados, nos conformamos a sugar os frutos do esforço alheio, permanecendo dependentes dos pais até a fase pré-aposentadoria (nossa, não deles...rs..) em total falta de brios ou mesmo de vergonha na cara.

Em nossos “ensaios” de busca cultural vivemos no “a priori”,  superficializando nosso contato com o conhecimento, transformando nossa tela mental no bolo indiferenciado da mediocridade útil, incapazes de interpretar nem as mensagens subliminares do mundo, nem os sinais da vida, cativos do pão-e-circo, da des-cidadania e da des-individuação. Somos pobres, cegos e nus...mas somos legais!

Na espiritualidade somos tudo e somos nada, desesperados em pedidos ao cosmos, vazios de envolvimento genuíno, maus crentes e péssimos ateus. O NADA nos norteia, exceto o estômago e todas as demais demandas primitivas, incluindo o sexo, cada vez mais indefinido, mais imagético, menos vivencial. Abrimos mão de todas as receitas, credos e mitos e não sobrou nada que nos fundasse enquanto homens e então viramos poeira cósmica e rimos de tudo, palhaços pirados!

As relações seguem o trem do vampirismo pós-moderno, buscamos satisfação imediata e entretenimento, grande quimera das múltiplas relações sucessivas ou concomitantes – ninguém penetra ninguém, não se deixa marcas no outro, não há reconhecimentos profundos, NADA SE CONSTRÓI COM O OUTRO, nada dura, nada amadurece, nada respeita o processo de existência e troca entre os seres, nada cria raízes e NADA FICA.

Nossa produção artística é descartável, não existe originalidade ou gatilhos de reflexão – feitas para consumo fácil e higiene, não emociona, não instiga, não ilumina – Pura paralisia, emburrecimento e confusão. O artista só existe como conservador do líquen que o inspira, se não há líquen não há obra, sem preservação não há líquen. Só se acessa o líquen na integridade do si mesmo e, a existência do si mesmo pressupõem valores e princípios sólidos.

- O homem não é igual! Nem mesmo igual a si próprio. Hoje é bom, amanhã nem tanto, suas intenções são tão voláteis quanto o ar que respira.

De modo geral, as motivações humanas são muito rasas e nosso efeito sobre o mundo é fogo-fátuo, somos hoje mais fluidos do que nunca, se vivemos sem bússolas ou raízes, voamos em bolhas de sabão virtuais e passamos a ser mais reais nas telas dos computadores alheios que em nossos próprios espelhos.

Como bons “idealistas” que nos pretendemos ser, custa-nos admitir o óbvio – O homem não é bom! De modo geral não assume suas responsabilidades sempre voluntariamente, não age sempre com justiça por instinto, não se considera igual aos seus pares (ou ímpares...rs..), não se move desinteressadamente e ao contrário – Até nossos discursos de tolerância só nascem em proveito próprio e com segundas intenções. A partir daí não há projeto utópico que se mantenha, o que não nos exime do dever de lutar para criar em nosso campo de ação (que chamo de “o micro”) condições de vida o mais dignas e salutares possível.

Nossa real condição é a de egoísmo e imaturidade, somos cegos por nossos desejos e demandas emocionais primitivas, inexperientes em tudo e inconseqüentes no mínimo, mas ainda assim resistimos ao aprendizado do passado. A violência nascida da cuia vazia só não é maior que a cultivada na mente vazia. 

Não há esperança para o homem que não significa sua existência. O quanto de aprendizagem cabe dentro de uma vida humana? Seria o homem, ao fim, avesso à aprendizagem?

Se após milênios de condição humana ainda não conseguimos descobrir como e o quê precisa e merece ser protegido e preservado, o que de confiável e eficiente poderíamos esperar da raça humana? A ambivalência procrastinadora do homem habita na desvalorização do conhecimento transgeracional (acumulado pela experiência do homem) e na supervalorização do tempo presente (ainda assim experiência do homem). 

Oras, se o presente foi construído em um passado, recente ou remoto, não há futuro possível sem que a linha se fixe em pontos de solidez – Princípios, conceitos, valores.

Sim, eu sou uma mulher conservadora!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na Escola Pública...


           Sendo bem honesta, a última vez em que estive numa sala de aula de escola pública foi para dormir. Isso aconteceu em janeiro e fevereiro de 1996, quando estive em Maturéia/PB, fazendo uma espécie de projeto assistencial. Na época, a cidade dispunha de mais ou menos 80% de analfabetos e era sabido que entre os professores que ali lecionavam poucos haviam concluído o 1º.grau.

Antes disso fui aluna em três escolas públicas. Na primeira – EEPG “Leopoldo Gentil Jr” - fiz a primeira série com a professora Irene, a pessoa mais amorosa que já conheci em um ambiente escolar. Na segunda – EEPG “Adalgiza Moreira Pires”- fiz a segunda e parte da terceira série e foi onde a professora Maria Luiza recomendou aos meus pais que me colocassem numa escola particular, pois considerava uma “judiação” uma aluna como eu ser educada em escola pública. Na terceira – EEPSG “Maria Masiero”- fiz o terceiro ano médio após ter sido reprovada por faltas no Colégio Mackenzie que não compreendeu como razões atenuantes o fato de eu ter sido submetida a uma cirurgia por sinusite grave ou a morte de minha avó materna a quem éramos todos muito apegados.

Do período inicial, quando ainda pequena e sob o regime da ditadura militar, recordo de longas filas na entrada de todo dia, feitas diante de professoras elegantes e muito sérias, muito organizadas para entoarmos o hino nacional brasileiro e eventualmente outros hinos do Brasil de acordo com as datas festivas. Lembro também dos uniformes e depois do avental, da cartilha Caminho Suave, dos cadernos encapados de plástico xadrez  azul e branco, e da democrática fotinho na mesa e ao lado do globo terrestre de plástico que minha mãe ainda guarda, revelando ao mundo minha franja lisa e curta demais. Da segunda estada, só me lembro das agruras do período noturno, das muitas aulas vagas, do conteúdo esparso, pouca lição e dos muitos adolescentes em situação de risco que conviviam com outros que trabalhavam muito para ajudar em casa ou sustentar filhos gerados precocemente.

Esse ano enfim retornei para a escola pública, desta vez como professora eventual e aspirante à professora na cadeira de Letras (Português e Inglês). Minha primeira lembrança dessa aventura recente foi olfativa, quando entrei no pátio aspirei com alguma emoção o mesmo cheiro de quando era uma pequena de 6 anos: aquele mix de bolacha Maria e salsicha. Quando entrei nas salas de aula encontrei o mesmo quadro negro feito na parede com molduras de madeira, as mesmas carteiras antigas, o mesmo chão de cimento batido e nas janelas a mesmíssima cortina pesada cor de “burro quanto foge”. Não se tratava de nenhuma das escolas que eu havia frequentado, era outra, mas também era a mesma!

Quem me conhece sabe o que penso de regimes totalitários de qualquer tipo, mas sejamos óbvios e admitamos: A escola pública não evoluiu em absolutamente nenhum aspecto desde o começo de nossa jornada democrática, intuo que deliberadamente mantivemos o que já era péssimo – a saber, o espaço físico digno de um ambiente carcerário – e barbarizamos o resto.

A chamada “progressão continuada”, diabolice educacional que já dura bem mais de uma década e sem esperança de exorcismo, foi o golpe de misericórdia num sistema já agonizante pela ação (ou falta de) de uma classe de professores com salários humilhantes, completamente desinteressados, desesperados e mal preparados e pela presença constante e determinada das “famílias do tráfico”. Num olhar passageiro o que se nota é um depósito de crianças cada vez mais ignorantes e adoecidas onde cada parte assume seu papel num espetáculo circense, jurando haver uma escola.

Outra cicuta que vem exterminando o ensino público com grande competência é a estabilidade do funcionalismo. Professores e funcionários cujas licenças lendárias já são absorvidas pelo sistema com total naturalidade, classes que permanecem meses sem um ensino sistemático e sem nenhum conteúdo de matéria, substitutos que são instados a assumir classes e s depois são destituídos, isso no exato momento em que perdem o direito às férias e ao décimo terceiro. A ausência de monitoração e avaliação plena do trabalho contribui para o comodismo e total desinteresse em atualizações e melhorias, condenando a escola ao vazio de conhecimento e do orgulho em todos os níveis.

A falta de autoestima do docente se revela em total clareza num espírito de escravidão que paira na aceitação muda de políticas de ensino absurdas e em procedimentos ineficazes das delegacias de ensino, que se não são corruptas constituem-se nas entidades mais estúpidas do globo terrestre, realizando atribuições de aula que mais parecem sessões de bingo, sem a menor objetividade e com critérios irracionais de classificação. O desrespeito ao professor, à escola e ao aluno é nítido e viral!

A sorte me sorriu ao ser contratada por uma das melhores escolas públicas dessa região, unidade onde o dinheiro enviado pelo governo surpreendentemente tem sido suficiente para manter a escola, realizar melhorias e implantar projetos pioneiros, projetos esses que nenhuma outra nesta Delegacia de Ensino consegue realizar e tudo isso sem pedir ajuda para a comunidade. Talvez alguma mágica?

Sou a chamada “professora eventual” ou a já consagrada substituta (e pasmem, acabamos ganhando mais do que os professores efetivos, tamanha a demanda por nosso trabalho). Sem a menor paciência para jogar dominó ou conversa fora, decidi trabalhar com Produção Textual, que além de ser minha área favorita no ensino da língua ainda poderia ser útil como suporte ao trabalho das professoras de Português (elas que por enquanto ficaram felicíssimas com minha intenção) e oferecida sem prejuízo em aulas esporádicas. Através das redações e demais atividades sigo confirmando todo dia o já esperado – Crianças completamente analfabetas na quinta série (ou sexto ano, nessa nova nomenclatura despropositada que nos impuseram),  alunos de primeiro ano médio incapazes de formular uma frase inteira, textos redigidos inteiros sem nenhuma pontuação por alunos do nono ano (antiga oitava série),  gente que não sabe que o Chico Buarque não é personagem do Maurício de Souza, nunca ouviu falar de Monteiro Lobato e jamais ouvirá falar do Arcadismo uma vez que ele foi excluído do programa de Literatura.  Gente que passa tarde no “feicebuque” aprendendo novas piadas de “memes” – Claro, claro, a Era Digital! Da falta de sentido de se estudar versos decassílabos...

Meu primeiro acerto como professora não nasceu de alguma incrível estratégia didática (essas que ainda não aprendi, mas que provavelmente me serão ensinadas em Didática por uma professora do Mackenzie que é perfeita para ensinar isso, simplesmente porque adora o que faz), mas pela sorte e pela ingenuidade que me fizeram optar por algo já meio em desuso – Respeito.

Na primeira vez em que substitui um professor, cheguei na sala, me apresentei, expliquei que estava ali para que eles não ficassem sem aula e que o professor titular se ausentara por algum motivo importante. Expliquei que eu desejava aproveitar esse tempo fazendo algo que de fato pudesse ajuda-los. Expliquei o que era Produção de Textos, como isso poderia melhorar a capacidade de expressão deles, tanto escrita quanto falada, expliquei o que era expressão e porque era importante ser capaz de fazer isso bem, propus que sempre trabalhássemos nisso quando eu aparecesse e que isso seria legal, já que minha aula sempre viria de surpresa e perguntei se eles concordavam.

Naturalmente a adesão nem sempre foi imediata e unânime, isso não costuma acontecer assim nem mesmo em filmes de sessão da tarde (talvez para manter o suspense), mas acabei sendo procurada por uma das coordenadoras com algumas folhinhas nas mãos, veio dizendo que certos alunos tinham pedido a ela que entregassem aquela atividade para a “minha professora de produção textual” e que queria saber, com um sorriso algo engraçado no rosto, o que eu estava fazendo com eles.

Tem de tudo nesses primeiros textos, desde “hoje conheci uma moça que parece um anjo e se chama Danielli” até um “e para você um beijo, professora”. Alguns textos de surpreendente potencial e listas de palavras de alunos que ainda não sabem formular frases. O que ficou muito claro é que existe muito trabalho a ser feito, pouco contingente e tempo mais escasso ainda!

Desse início de trabalho, que para mim tem sabor de recomeço, fica a certeza de que lecionar é o complemento profissional certo que eu procurava para meu trabalho na clínica. Mais do que nunca no ambiente escolar o foco é terapêutico. O “paciente escola” sofre de um transtorno gravíssimo, destrutivo, demencial e galopante, mas tenho em mim que uma vez feito o diagnóstico e iniciada a ministração do medicamento certo a cura seria rápida e eficaz.

Tantas perguntas que não querem calar:

- Por que os professores se submetem a ser tratados como gado?

- Por que vendemos a alma da escola e com ela qualquer possibilidade de um trabalho excelente?

- Por que os alunos aceitam entrar e sair da escola sem aprender nada?

- Por que os pais aceitam que a escola seja apenas um depositário?

- Por que os professores, os alunos e as famílias aceitam que os políticos permaneçam destruindo um bem que lhes é garantido por lei – o acesso à educação?

O que mais se ouve é a inexistência de uma saída para o cancro que nasceu e cresce impiedoso no peito da Escola Pública, outros comentam que a crise na Educação é mundial, seja como for, ainda nutro esperança. Talvez o início possa se dar através de um pequeno, mas constante sopro de autoestima. O ser humano que se percebe sujeito não aceita menos do que lhe é devido. Tantos anos depois da abolição a escravatura parece reinar absoluta no espírito do brasileiro: escravo não reivindica, não reclama, não questiona, não desafia, não levanta, só se aquieta e oferece o lombo...também samba!

  

 

 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Deformação ou a morte do desejo


 
Conta-se por aí uma história antiga, veiculada de muitas formas, em muitas culturas, sobre uma garota órfã, adotada por uma velha rica que a mantinha presa sempre aos seus pés. Ao receber a menina, a primeira coisa que fez foi dar um fim num certo par de sapatos de pano vermelho, costurados à mão, única lembrança que a menina tinha de sua mãe e de sua vida pregressa. Chateada, a menina escolhe na loja outro par de sapatos vermelhos, dessa vez, lindos e lustrosos, em desobediência expressa ao desejo da velha cega que a empurrava um casto par de sapatos pretos básicos, com ares de estudante de liceu.

Os sapatos, enrolados pelo vendedor cúmplice e dados para a menina de presente, acabam por mostrar-se uma grande armadilha. Mágicos, ao serem calçados provocam uma dança eterna que acaba por matar sua dona. História macabra? História muito simbólica.

Ao observar a ausência de motivos e excesso de experimentação de nossa geração de púberes, adolescentes e jovens é nítido o quanto de manipulação e desrespeito ao desenvolvimento individual tem sido despejado na cabeça e mesmo no corpo dos pobres-coitados. Simplesmente não há tempo para ouvir-se, sequer para que o desejo de fato surja em sua característica espontânea e peculiar. Na nova onda a liberalidade torna-se sinônimo de prisão: o cativeiro do consumo, do desejar antes do desejo, da necessidade pré-fabricada. Alienação de si mesmo, unanimidade deformadora do privado.

É irônico como a pseudo-liberdade acaba por nos silenciar, diante de todas as portas abertas não se sabe onde se quer entrar. O PODER ser tudo deu lugar ao DEVER ser tudo e nesse novo totalitarismo não encontramos espaço para sequer delinear em rascunho quem de fato pensamos ou sentimos SER. O excesso de experiências vividas porque se TEM que viver e não porque se QUER viver acaba por nos padronizar, somos todos livres, leves e soltos e não somos NADA. A ausência de fronteiras nos uniformiza, mata o indivíduo, exclui o desejo!

A história citada de início nos conta a gênese do consumismo - a saber - a falta do afeto primordial, da base familiar segura, de amores primitivos que funcionem, de relações especulares que nos mostrem mesmo que em incompletude o que expressamos ao mundo. Tamanha cratera emocional cria seres humanos eternamente sedentos, facilmente ludibriados pelas águas turvas de um sistema cada vez mais interessado em criar CONSUMIDORES e menos SERES QUE SÃO.

A figura da velha rica que alimenta, veste e acolhe com austeridade desde que a menina se adeque ao que ela espera, ilustra bem o SISTEMA no qual estamos inseridos, que ao nos educar para o consumo e nos empregar, apenas visa gerar para si mais compradores-consumidores-insatisfeitos, assim mantendo o regime no qual a ignorância, a massificação e o entorpecimento são peças-chaves de sua retro-alimentação. A prova cabal disso é a falência do sistema estudantil, a decadência dos pensadores, o cala-boca para questões existenciais, o empobrecimento da capacidade criativa, a medíocre e viciada produção artística, o pseudo-indivíduo copiado. A velha rica sustenta, mas escraviza, ela paga suas contas, mas decide quem você jamais será!

O vendedor aliciante não passa de outra armadilha do mesmo fenômeno, ele se utiliza de nosso tédio, de nossas dores de existência caladas com quilos de comida, drogas, sexo e toda ordem de bobagens viciantes, incluindo-se nisso a internet com suas redes sociais “drive-thru” afetivas, e a infame TV. Despreparados pela falta inicial, assustados diante das exigências de um sistema que nos forma unicamente para mantê-lo, sedentos por algo que nos preencha, que nos contorne, que nos signifique, somos presas fáceis dos entorpecentes oferecidos, queremos dançar com nossos sapatinhos vermelhos, por um instante esquecer que não somos nada e ninguém além de cópias em série de uma mesma coisa – consumidores.

A dança dos sapatinhos vermelhos, cativa, inebria, consola e vicia. Logo não há nada mais que nos faça parar, já nos perdemos no ritmo avassalador, seguimos a corrente do não desejo, do não indivíduo, do não sentimento. Tudo misturado, não somos mais capazes de diferenciar afeto de sexo e por isso beijamos e transamos com todos os nossos amigos (não conseguimos mais amar sem comer – consumir tudo e todos), não sabemos mais sequer de fato o que é preferência sexual e vinculação afetiva e somos não heteros ou homos, somos bi, tri, pansexuais o que no fundo só revela uma assexualidade neurótica com a qual lidamos em formação reativa...Quem não existe não deseja e não transa! Sexo plástico com gosto metálico. Amores estéreis e sem graça, duram pouco, passam como nuvem sem deixar rastro. Amizades de ocasião, relações utilitárias, nada toca, nada entra, nada fica!

 Profissionalmente vendemos trabalho e com ele muitas horas da vida, muitos presos em tarefas odiosas e fúteis, contando os segundos de um dia cancerígeno apenas para voltar para casa e descobrir que não sabemos o que fazer com o tempo de folga. Aprisionados nos braços de polvo da poltrona, em frente a programas educativos do SISTEMA os quais juramos tratar-se de mero entretenimento, ou diante dos “amigos internéticos” que sequer conhecemos de fato e para quem vendemos a imagem que escolhemos, ou seja, a imagem que o SISTEMA nos dá pra vender, talvez lendo livros que nos mandaram ler, ouvindo músicas que devemos ouvir para não sair do esquema, músicas cujas letras fazem cada vez mais apologia ao TER, TER, TER. Adolescentes pálidos dia e noite matando zumbis em jogos de vídeo-game em detrimento das tarefas escolares, tidas como obsoletas para mentes que supostamente absorvem mais estímulos enquanto na verdade não são mais capazes é de foco e de profundidade.

 A realidade é que não SE SABE mais como seres existentes e pensantes, e se NÃO SE SABE SER, como ou para quê distinguir o que SE DESEJA?

Ironia das ironias – o hedonista da pós-modernidade não passa de um frígido. Toda sua devassidão jaz na imaturidade psíquica. A dama da noite é criança pequena frágil lançada aos lobos abusivos da inconsciência coletiva.

É urgente uma retomada do indivíduo, não no sentido do individualismo que se revelou uma estratégia torpe para a criação de uma horda estúpida de bocas famintas prontas para sustentar um Sistema capitalista cada vez mais descarado, mas no sentido existencial da questão. Nunca fomos tão platônicos no sentido de dissociar corpo e espírito, a única observação tangível é que no caso de nossa geração o espírito está morto e com ele, consequentemente, o desejo.

A simplicidade tornou-se a conquista dos sábios.  Para chegar a ela, e no redescobrir da alma e do si mesmo, faz-se necessária toda uma gama de percepções e estratégias dificílimas, verdadeiras batalhas éticas, emocionais e intelectuais, no sentido de limpar-se dessas camadas de lixo tóxico que nos tem sido depositadas desde o momento em que nossos pais escolhem nossos nomes, muitos inspirados no galã de novela, até a velhice, quando nos dizem que não somos mais o que na verdade nunca conseguimos ser – INDIVÍDUOS.

Afinal, o que é a humanidade do pós-moderno?

Muitos enchem a boca para falar de uma pluralidade que não existe, exceto em telas mal-ajambradas de aparelhos cada vez menores, pequenos talvez para representar nossa redução mental. Nunca na história do mundo vivemos mais fictícios. Nunca nos lançamos com mais coragem ao que de fato nunca desejamos. Nunca nos procuramos mais onde nunca estaremos. Nunca fomos mais cegos e surdos. Nunca fomos mais falantes de NADA.

Saudades do tempo em que havia mais controvérsias e menos concordâncias, mais discussões e menos tolerâncias. O homem de hoje não compra briga porque bebe , fuma e transa demais – não porque deseja, mas para que jamais deseje! Enchemos nossa juventude cada vez mais cedo de pseudo-prazeres cada vez mais fáceis e mais múltiplos, os instamos a regalar-se com eles, criticamos e estigmatizamos os que se recusam, os obrigamos a encherem-se para que jamais tenham tempo e espaço para de fato desejar. O desejo é perigoso porque nasce de um indivíduo e ao existir o inaugura, indivíduos existem e pensam por si mesmos, livres pensadores questionam e percebem, questionamentos e percepções abrem brechas no sistema, e o sistema cada vez mais um ser em si mesmo, não DESEJA deixar de existir.