A pele que habito

A pele que habito

sexta-feira, 5 de março de 2021

First Reformed

 


 

Mens sana in corpore sano[1]

O desespero é uma evolução tão grande do orgulho que escolhe a certeza, em vez de admitir que Deus é mais criativo do que nós.”

Thomas Merton[2]

 

 

A cena de abertura do filme First Reformed (2017) mostra uma igreja muito branca e antiga, construída em algum estilo reformado holandês, feita de madeira. O templo em si, para quem gosta de igrejas, desperta uma certa nostalgia, gera encanto, uma ideia de pureza, de transcendência que se perpetuaria, não fosse pelo impacto das portas fechadas, sempre um sinal de inacessibilidade, e de seu entorno, rodeado por um dia escuro de inverno e árvores ressequidas, pesado, angustiante e desolador. Tudo o que precisamos saber sobre a temática principal da narrativa se faz presente nessa cena: vazio, obsolescência, inacessibilidade, abandono, tristeza e desesperança, tudo isso em contraposição pela alvura das paredes do templo, cuja energia salta aos olhos, quase a explodir as paredes e as portas fechadas, desafiando a escuridão que a cerca.

Essa coexistência de contrastes, os jogos de luzes e sombras, a ideia da transcendência e da imanência convivendo e combatendo, sob o pano de fundo de um mundo tenebroso, está presente em todos os aspectos da obra de Paul Schrader. Desde sua fotografia, com seu tom barroco, digno de um Velásquez, até ao conteúdo das reflexões do protagonista, Rev.Toller, que carrega em si a transposição da forte crítica feita pelo diretor à essa igreja. Nas palavras do próprio pastor: “A sabedoria segura duas verdades contraditórias em nossa mente, simultaneamente: Esperança e desespero. Uma vida sem desespero, não tem esperança. A nossa própria vida mantém essas duas ideias em nossa cabeça.”

O filme de 2017, muito equivocadamente intitulado pelo Netflix como ‘Fé Corrompida’ (quem escolheu esse título ou não assistiu ou não entendeu o conteúdo do mesmo), escrito e dirigido por Paul Schrader (responsável pelo roteiro de obras-primas como Táxi-Driver, Touro Indomável e A Última Tentação de Cristo, entre outros), consegue fazer o que poucas obras artísticas foram capazes até hoje: Explicar o conceito de Graça, conforme prega a doutrina cristã reformada, e revelar aspectos da crise na qual essa mesma fé se vê inserida na atualidade. Isso, naturalmente, só poderia ser feito por alguém que viveu essa fé e a compreendeu, mantendo um dos maiores princípios da Reforma Protestante, que é manter um olhar crítico e honesto que não permita que a igreja se perca em seu caminho, “Igreja reformadasempre se reformando”.  Schrader cresceu numa comunidade ultracalvinista de tradição holandesa em Michigan (Calvinist Christian Reformed Church) e, independentemente de sua possível experiência religiosa posterior (eu não pesquisei), soube utilizar aqui pontos seminais da crença reformada para demonstrar as incoerências e debilidades da Igreja Cristã (aqui generalizo), na atualidade, com maestria. Acho a questão mais grave para nós, reformados, porque temos nos cegado para algo que já criticamos em outros.

               Talvez seja difícil para pessoas de outras crenças se apropriarem de tudo aquilo que Schrader consegue dizer nesse filme, para tanto é necessário, de início, compreender alguns conceitos básicos daquilo que a doutrina protestante chama de ‘Graça’.  De forma muito básica, o que se entende por Doutrina da Graça, na perspectiva calvinista, também conhecida como "graça eficaz" e "vocação eficaz", é que a influência salvífica do Espírito Santo de Deus é irresistível, superando toda e qualquer tentativa de resistência humana. Quando então, Deus soberanamente visa salvar alguém, o indivíduo não tem como resistir à ação do próprio Deus na intenção de redimi-lo. A prerrogativa é sempre divina.

               Partindo dessa compreensão, o filme nos apresenta um homem, um pastor, filho e neto de pastores, mergulhado numa crise aguda que envolve todos os aspectos de sua vida: Físico, Emocional, Relacional, Existencial e Espiritual. A dimensão dessa crise é cuidadosamente demonstrada pelos detalhes de um aspecto físico pálido, emagrecido e rígido; de sua casa escura, vazia, quase sem mobília e iluminada quase sempre pela luz bruxuleante de velas; também pela busca por uma disciplina monástica severa que, paradoxalmente, coexiste com o alcoolismo, a angústia e o questionamento constante. Aos poucos a narrativa vai revelando ao espectador seus lutos insuperáveis, a culpa não redimida, os descaminhos que o levam àquela realidade de solidão, aos percalços de um ministério irrelevante numa igreja-museu quase sem ovelhas, onde seu maior desafio é desentupir o banheiro masculino. Dorme mal, come mal, bebe muito. É resistente a qualquer tentativa de afeto, cuidado ou tratamento. Não ouve conselhos, não se abre com ninguém, se irrita com a preocupação das pessoas, se isola, não tem misericórdia de si mesmo, não consegue sequer orar. Decide escrever um diário, em busca de algum alívio existencial, mas não o obtém.

A despeito disso tudo, segue pastoreando. Tem o conhecimento bíblico e filosófico adequado, consegue compartilhar isso com destreza (haja visto sua conversa com Michael e com os jovens da igreja ‘Vida Abundante), cumpre suas obrigações com a First Reformed e, não fosse o diácono descobrir a quantidade de bebida que estava ingerindo, ou a derrocada mental precipitada pelo encontro com Mary e seu marido, talvez permanecesse por anos atuando ali e sem qualquer possibilidade real de redenção.

Aqui abro um parêntese: (Quantos líderes religiosos conhecemos ou sobre quem ouvimos falar vivem em situação semelhante? Que tipo de cuidado recebem - ou aceitam receber - os cuidadores? Quantos se escondem atrás de suas batinas e de uma pretensa comunhão com Deus para evitar aconselhamentos ou psicoterapias, perpetuando mazelas que irão, inclusive, influenciar seu ministério e prejudicar suas famílias, ovelhas e comunidades? Até quando vamos nos manter alheios à essa ignorância e suas consequências? Até quando veremos pastores e líderes adoecendo física e mentalmente por não compreenderem que a carga emocional e espiritual que carregam é gigantesca e precisam de suporte efetivo?)

Mary Mensana (e sim, é uma referência ao poema da epígrafe) surge na história de maneira oportuna, pede ao pastor que atenda seu marido, Michael e devolve ao ministério de Toller alguma relevância. No decorrer da narrativa vamos percebendo que Mary e seu bebê trazem ao contexto referências cristãs importantes, lembramos da mulher grávida do Apocalipse, cujo bebê é perseguido pelo dragão, tipificando a própria Maria. Em seu discurso e atitudes vamos percebendo a ação da Graça em prol do pastor. Mary compreende e apoia a causa ecológica de Michael, mas não o seu desespero; Mary deseja viver, ser mãe, aproveitar as coisas boas e saudáveis que a vida pode lhe oferecer, se apresenta como ‘ a espiritual’ e testemunha sua necessidade de buscar a presença de Deus desde pequena e em todos os lugares. Mary se entristece, mas não se desespera. Mary pede ajuda quando se assusta e quando não consegue orar. Mary aceita o apoio da família e de amigos em momentos difíceis. Mary tem uma mente sã num corpo são e tem coragem para enfrentar a vida e escolher um caminho de virtude. Mary salva o pastor de sua irrelevância ao pedir sua ajuda para o marido e para ela mesma, Mary salva o pastor de seu próprio desespero, ao lhe mostrar um contraste para a desgraça na qual Michael (e a realidade) o envolveram. Mary devolve ao pastor a capacidade de orar, Mary salva o pastor de realizar um ato de violência contra outras pessoas e contra ele mesmo. Mary representa a Graça de Deus no processo de redenção daquele homem até então irredimível. Toller não resiste a ela, porque a Graça é irresistível!

O tom de realismo fantástico que a história nos proporciona na cena da ‘Viagem Mágica’ e na cena final do filme, reforça exatamente essa dotação mística da personagem de Mary e o que mais gosto nela é o fato de trazer a ideia de que a Graça de Deus está presente nos detalhes do nosso dia-a-dia, nas pequenas coisas que nos cercam, no ‘presente de Deus’ que é uma simples volta de bicicleta, numa xícara de chá, em orar de mãos dadas com um amigo, em aguardar o nascimento de um bebê, em dividir a vida com alguém que se ama. A Graça de Deus se faz presente em nossas vidas na coragem para seguir vivendo, apesar do desespero de um mundo caído e de seus desdobramentos; na escolha por uma vida justa, mesmo em meio a um mundo injusto. O próprio Toller demonstra o equívoco de muitos que buscam encontrar a ação de Deus em coisas sobrenaturais ao comentar em seu diário: “O desejo de orar é um tipo de oração. Quantas vezes pedimos experiência, quando tudo o que queremos é emoção?” Mary é oportuna, despretensiosa, simples, luminosa, verdadeira, amorosa e EFETIVA, nela não existe um elemento sequer de artifício, mas ainda assim, sua ação é plena e profunda, transformadora. Mary com sua aparente fragilidade, candura e afetividade combate e sobrepuja as trevas que matam Michael e que quase fazem Toller sucumbir. Mary demonstra o poder da Graça de Deus presente na pessoa e na ação de Jesus Cristo e representa a grande verdade de que precisamos experimentar a ação desta Graça na integralidade do nosso ser, na forma como vivemos, sentimos e agimos. Não adianta o mais rico e profundo conhecimento teórico (ou teológico) sem uma experiência de vida plena. Deus não nos criou compartimentados!

Michael, por sua vez, cujo nome nos remete ao arcanjo guerreiro da Bíblia, que lidera as hostes celestiais contra as hostes demoníacas, traz à tona todo o quadro sinistro de um mundo tomado e regido pelo maligno, mundo sem luz e sem esperança, caminhando a passos largos para a destruição completa, destruição que a própria raça humana realizou e segue realizando. As informações que apresenta ao pastor são verdadeiras e desoladoras: “...o mundo está mudando rápido e bem na nossa frente. (...) Um terço da vida na Terra foi destruído durante a nossa era. (...) Em trinta anos, a temperatura na Terra será 3 graus Celsius mais alta, o limite para a existência de vida aqui é 4 graus. Haverão impactos severos, generalizados e irreversíveis. (...) Em 2050, o nível do mar será 60cm mais alto na Costa Leste, a África Central perderá 50% das plantações por causa das secas. Os reservatórios de água potável secarão. Teremos alterações climáticas irreversíveis. Refugiados. Epidemias. Climas extremos. (...) Os tempos difíceis virão e, a partir daí, tudo acontecerá muito rápido. Essa estrutura social não suportará o estresse de múltiplas crises. Doenças oportunistas, anarquia, lei marcial.” Tínhamos que ter feito mudanças até 2015, não fizemos. O filme é de 2017, em 2020/2021 estamos vivendo a pandemia de COVID 19, não será a única desgraça dos próximos tempos. Michael pergunta: “Deus pode nos perdoar? Pelo que fizemos com esse mundo?”

Embutida na angústia insolúvel de Michael, na escuridão que carrega em sua alma, na perspectiva apocalíptica que o faz querer abortar o filho de Mary, seu próprio filho e que o leva ao suicídio, está a maior crítica do filme às nossas igrejas – a perda da nossa relevância histórico-social em consequência da perda de um ideal de transcendência. Logo nas primeiras cenas a placa da First Reformed a apresenta como uma igreja de grande importância histórica, mais adiante no filme, durante a visita das crianças na igreja, descobrimos que aquele templo tinha sido rota de acolhimento de escravos em fuga, atuando ativamente no passado na luta pela Abolição da Escravatura. Foram tantas as contribuições positivas da Igreja Reformada na História da Humanidade, sempre como referência de luta contra a opressão, contra a tirania, contra a ignorância, contra as injustiças sociais...De acordo com a Palavra de Deus, muito embora aguardemos a nossa redenção final, compreendemos que temos um papel de mordomia nesse mundo e, portanto, seguimos lutando para que os valores do Reino de Deus sejam defendidos aqui na Terra, embora saibamos que essa luta só terá vitória no final dos tempos. Seguimos mesmo lutando? A causa ecológica é urgente, dramática, gravíssima e atual! Por que a igreja se cala???? Por que insistimos em aceitar dinheiro de poluidores? Por que nos mantemos priorizando conforto e ostentação ao invés de saúde e sobrevivência? Por que sujamos, destruímos e matamos a Natureza que, assim como nós mesmos, Deus criou? Por que livros como o “Poluição e Morte do Homem” de Francis Schaeffer seguem empoeirados nas bibliotecas de igrejas e seminários? Porque a igreja deixou de dialogar com a realidade do mundo, mas se acomodou a ela. Estamos gordos, ricos e fartos de toda a decadência do mundo e perdemos qualquer contato com a transcendência e com a verdade. E é isso que Schrader demonstra muito bem quando mostra a igreja-empresa “Vida Abundante”, com João 10:10 decorando as paredes do estacionamento, que vive de grandes eventos e de ofertas de milionários, servindo aos seus interesses. O preço que pagamos com essa acomodação ao mundo e sua sujeira são cadeiras vazias, vidas perdidas, portas fechadas, lideranças decadentes e empobrecimento espiritual. Em uma palavra, perdemos Deus. Ah, se não fosse a Graça!

O filme nos apresenta também, por meio da discussão entre os jovens e depois entre os dois pastores um excelente retrato do mundo atual sobre a perspectiva da juventude e a dificuldade da igreja de acolher e pastorear uma geração tão confusa, reativa e vazia, vivendo num mundo que as gerações mais velhas não reconhecem: mundo de aquecimento global, de pornografia, de videogames violentos e violência real extrema, tanto física quanto verbal; mundo onde não existe mais privacidade, onde todos vivem isolados, se comunicando artificial e superficialmente por redes sociais; mundo de relações doentes e insatisfatórias, “mundo sem esperança”. Toller comenta, inclusive, a confusão que a Teologia da Prosperidade tem causado na mente das pessoas, com suas promessas falsas de triunfalismo: “Há muitos cristãos, boas pessoas, que veem uma conexão, entre piedade e prosperidade. Mas isso não é o que Jesus ensina. Não é o que Jesus viveu. Não há um cifrão no púlpito dEle. Tampouco uma bandeira americana.” Geração que quer certezas a qualquer custo, que quer alguém que lhes diga o que fazer, mas não lhe peçam para pensar, geração presa fácil de extremismos de todo tipo, de manipulação ideológica de qualquer ordem, de anestesias de qualquer espécie para curar sua dor existencial.

O debate entre o Rev.Toller e Michael é um dos pontos altos do filme e reverbera por toda a narrativa. O pastor se sentiu como Jacó lutando a noite toda com o Anjo. Lutando no sufoco. “Cada frase, cada pergunta, cada resposta era uma luta mortal.” E era mesmo, a luta era pela alma do próprio pastor, pois a de Michael, como afirma Mary, já estava perdida: “Ele não queria viver. Ele não era um homem religioso. Ele não se importava com a igreja, só eu. Eu quem pedia para ele ir.” Michael faz referência aos mártires pelo Evangelho e o relaciona aos ativistas, mortos em prol da preservação da Natureza, 117 pessoas, só em 2016. O desespero do jovem, estampado na expressão de seu rosto, leva o pastor a compartilhar de seu próprio desespero. Relata a morte do filho e sua culpa. “Convenci meu filho a ir a uma guerra que não tinha justificativa." “Seja qual for o desespero que sinta por trazer uma criança a este mundo, não se iguala ao desespero de tirar uma criança dele.” Destaco aqui que Deus Pai enfrentou a ambos, enviando Seu único Filho para este mundo tenebroso e o vendo morrer na Cruz, lutando por uma causa que, talvez, aos olhos humanos, não se justifique.

Seguindo no intuito de abrir uma brecha nas densas trevas da mente de Michael, Toller segue falando para o jovem (e para si mesmo), defende a vida que cresce dentro de Mary, “...algo tão vivo quanto uma árvore, quanto uma espécie em extinção...algo repleto da beleza e do mistério da natureza...Isso não é sobre o bebê, ou sobre Mary, é sobre você e seu desespero. Sobre sua falta de esperança!” Toller afirma a realidade de nossas mentes científicas, nossa necessidade de respostas racionais para tudo, confirma a ansiedade de Michael ao dizer que se a humanidade não conseguisse superar seus interesses imediatos e reorganizar suas prioridades em prol do bem comum e de uma existência futura, então, sim, tudo estaria perdido e a única resposta racional seria mesmo o desespero. “Mas você acha que existe alguma existência além dessa?” “Coragem é a solução para o desespero. A razão não fornece respostas. Mesmo não sabendo o que o futuro trará, temos que escolher apesar da incerteza.” À grande questão de Michael, que não consegue esquecer, responde afirmando que ninguém pode conhecer a mente de Deus, mas que pode-se escolher levar uma vida justa. “A Crença, o Perdão e a Graça nos ajudam.”

Embora toda a fala e o raciocínio de Toller estejam corretos, não é suficiente para que ele mesmo alcance paz diante de suas próprias angústias. Ele não se sente perdoado, tem dificuldades em crer naquilo que prega (boa parte de seus questionamentos são sobre sua dificuldade de orar, em muitos momentos ele sequer sente que Deus está disposto a ouvi-lo) e não demonstra ter tido uma experiência profunda de Graça até o momento, embora possamos inferir que o simples fato de seguir tentando viver após tamanhas tragédias pessoais já seja a manifestação da Graça divina em sua realidade. É através dos curtos, singelos e significativos momentos com Mary que a couraça de Toller vai cedendo, ele ora convidando a Deus para seus corações e, mesmo enquanto vai flertando com a loucura, com o radicalismo, até com o terrorismo, numa busca frenética pelas tais certezas racionais que ele mesmo condena em seu discurso, vai soltando as garras do escudo de escuridão que vinha mantendo sua alma distante de Deus, da fé, do perdão e da Graça.

As cenas finais são muito impactantes.

Vemos um líder religioso, tomado pela calma perversa dos loucos, vestindo bombas para explodir junto consigo mesmo, todos que estivessem presentes no culto. Acredita-se uma ferramenta da ira de Deus. Em uma cena anterior, enquanto olha o colete e pesquisa sobre os homens-bomba na internet, lê Apocalipse 11:18: “ As nações ficaram enfurecidas, mas sua ira veio e o tempo para os mortos serem julgados e para recompensar seus servos, profetas e santos, e para aqueles que teme o Seu Nome, pequenos e grandes e para destruir os destruidores da Terra”, ao reformar o colete lê sobre a armadura de Deus, ao vesti-lo faz uma postura militar como se apropriando de sua suposta missão. Toller cria para si todo um delírio onde ele próprio é o agente redentor, tanto de si mesmo, como de toda a raça humana, ao destruir-se e a outros em prol de alertar o mundo para a causa ecológica; num nível mais profundo, através desse sacrifício, talvez acreditasse poder redimir-se da culpa por enviar o filho para morrer numa guerra vã.

Lutero descreve a natureza humana como incurvatus in se ou curvada sobre si mesma. Somos instintiva e profundamente narcisistas, até mesmo um homem cuja mente está saturada de verdades bíblicas sobre a condição do homem sem Deus e sobre a Graça redentora divina, um homem que dedicou uma vida inteira ao estudo e à pregação dessa mensagem, pode sucumbir diante dessa inclinação egoísta que o impede de abrir-se voluntariamente a Deus, essa que é a verdadeira fonte de sofrimento pessoal e de todos os males, os mais diversos, que imputamos aos outros, ao mundo e à natureza.

Timothy Keller[3], em seu interessante livro “Caminhando com Deus em meio à Dor e ao Sofrimento’ comenta a grande verdade de que, mesmo tendo hoje mais informações do que anteriormente, talvez mais do que nunca, isso significa apenas que temos um palco maior para encenar nossas fantasias. O livro de Gênesis já nos explicava que nas áreas mais cruciais da vida humana, o homem nada progrediu, nada mudou, o homem permanece lutando contra sua própria natureza. É esse conflito eterno que torna autores como Shakespeare, por exemplo, atemporais.

 A seguir, assistimos o completo desmoronamento de seu delírio ao ver Mary entrando na igreja. Toller entra em desespero, se envolve no arame farpado que tinha retirado do cemitério da igreja, onde havia morrido um coelho ou esquilo, preso nas garras do arame. O vislumbre do pastor ensanguentado, envolvido pelo arame, nos lança à coroa de espinhos de Cristo, lembramos de Cristo também no nome de seu filho, Joseph, um tipo de Cristo no Antigo Testamento, cuja humilhação e exaltação remetem à humilhação de Cristo na cruz e Sua exaltação na Ressurreição. Toller veste uma túnica branca sobre o sangue e toda simbologia cristã envolvendo o sacrifício de Cristo, Sua Pureza, Sua Morte, Sua Ressurreição, tudo que envolve a redenção do homem surge com maior força ainda diante do espectador estarrecido. Toller faz menção de beber algo tóxico, algum tipo de combustível, mas no momento em que vai concretizar o ato suicida, Mary entra pela porta e na única vez, em todo filme, o chama pelo nome. Ele se une a ela nem beijo apaixonado e o filme termina. Sem mortos.

Não fica claro no filme se o beijo é real ou imaginário, isso realmente não importa. O que importa é que a perspectiva da Graça representada por Mary é finalmente acolhida pelo pastor ardentemente e isso o resgata das trevas em que estava mergulhado. O que importa é que a Graça de Deus é irresistível e redime o homem de suas trevas mais absolutas, ela é nossa única fonte de esperança em meio a um mundo cada vez mais desesperado e desesperador. Albert Camus diz que ‘apenas o sacrifício de um Deus inocente justificaria a tortura infinita e universal da inocência’. Se existe algo capaz de dar sentido ao sofrimento humano é a vinda de Jesus Cristo e sua morte na Cruz. Nas palavras de Tim Keller: “O próprio Deus soberano desceu e viveu na escuridão do mundo. Ele mesmo bebeu do cálice do nosso sofrimento até a última gota. E não fez isso para sua justificação, mas para a nossa, ou seja, para suportar o sofrimento, a morte e a maldição dos pecados que nós cometemos. Ele toma para si o castigo de modo que, um dia, retorne para dar fim a todo mal sem ter de nos condenar e punir.” (p.138)

Deus experimentou em Jesus todos os maiores sofrimentos que o homem pode vivenciar em sua jornada, incluindo a perda de um relacionamento baseado no amor, não em qualquer amor, mas no amor perfeito de Deus Pai, que Jesus conhecia desde a eternidade. Sendo assim, podemos confiar e descansar nEle. Nós nos afastamos de Deus, mas Ele não nos abandona.

Precisamos continuar sendo Igreja, mas com relevância em todas as áreas, fazendo diferença ao viver e pregar os valores de Cristo (não o das denominações), com transcendência, com sabedoria, não importa o que aconteça com o mundo. Nosso dever é abrir mão de usos, costumes e cerimoniais sem sentido, optando sempre por uma vida justa, de coragem e de virtude, diante de Deus e dos homens. O resto é tudo o que nos afasta de Deus e de sua Graça. Nenhuma igreja bonita, tradição preservada, teologia acadêmica, hábito asseado pode nos dar Graça, só a experiência real com Deus pode e isso Ele é quem dá, como bem lhe apraz.

Vivemos num mundo de trevas. Existem muitas maneiras de conservar a escuridão longe de nós, mas não para sempre. Mais cedo ou mais tarde, as luzes da nossa vida – amor, saúde, lar, trabalho – vão se apagar. E, quando isso acontecer, precisaremos de algo que vá além daquilo que nosso entendimento, competência e força podem nos dar.”  (Ann Voskamp, 2010)

                                                                                            By Danielli e Marcos Botelho💓



[1] Mente seja sã num corpo são.

No contexto do poema, a frase é parte da resposta do autor à questão sobre o que as pessoas deveriam desejar na vida:

“Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são.

Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte,

que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza,

que suporte qualquer tipo de labores,

desconheça a ira, nada cobice e creia mais

nos labores selvagens de Hércules do que

nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental.

Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio;

Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.”

Poeta Romano Juvenal.

 

[2]  Escritor católico (sec. XX). Monge trapista da Abadia de Gethsemani (Kentucky). Poetaativista social e estudioso de religiões comparadas. A obra de Merton inclui mais de 70 livros, a maioria sobre espiritualidade, também inspirou várias biografias. Defensor convicto do pacifismo e do ecumenismo.

[3] Pastor presbiteriano americano, teólogo e apologista cristão. Ele é o presidente e co-fundador da Redeemer City to City, que treina pastores para o ministério em cidades globais. Ele também é o pastor fundador da Igreja Presbiteriana Redeemer na cidade de Nova York, e autor de livros best-sellers na área de Vida Cristã.