A ameaça não vem pelo ar, vem pelo
toque.
O mesmo toque que, feito com afeto,
produz em nós o hormônio do apego, conforta, acalenta, seduz. Basta um toque e
morremos sufocados ou matamos outras pessoas, involuntariamente, como tantas
desgraças acontecem.
Confesso que as coisas ainda
estavam meio nebulosas na minha mente. Trancada em casa, evitando sair, com
algumas fantasias hipocondríaco-paranoides: ‘estivemos no Mackenzie na semana
passada’, ‘pegamos avião com um bando de gente usando máscaras’, ‘caminhamos um
bom tempo dentro do aeroporto de Guarulhos’, ‘E essa tosse? E essa gripe? E
essas dores nas pernas e nas costas? E esses pés inchados? ’ O fato é que tudo isso
passou, já se vão 11 dias desde que estive em São Paulo e ainda estou vendendo
saúde. Talvez, por enquanto, só por enquanto, eu não tenha contraído o Corona.
Livrarias fechadas, cafés fechados,
perfumarias fechadas, cinemas fechados...As pessoas que eu gosto, todas
fechadas em casa ou 1000 Km distantes, também fechadas...No elevador não se
fala com o vizinho, só dois de cada vez, no máximo três...Nada de academia, até
quando poderei tomar um ar no parque? Comprar comida no mercado? Aulas online,
atendimentos online...Distância, muita distância, distâncias instransponíveis e
o medo da nuvem invisível que vem chegando do Oriente para nós...
Lembrei daquela cena da série
Chernobyl, quando as pessoas estão na ponte vendo o incêndio, admirando as
luzes, recebendo pelo ar gotículas brilhosas de pura radioatividade, sem ter a
menor ideia do que está acontecendo...
Olho para o meu marido e penso: -
Se ele for e eu ficar, estarei sozinha, em Goiás, no meio do Apocalipse! Digo a
ele para se cuidar, dou risada da minha própria estupidez, com um receio leve
de não ser tanta estupidez assim...
Meu sentimento diante de tudo isso
ainda era de certo alheamento, meio que na defensiva, fazendo uma ou outra
piada, sem tirar os olhos da TV, avaliando cada nova informação, indignada com
as posturas absurdas de nossos governantes mirins (quem nunca se sentiu, aqui no
Brasil, vivendo no ‘Senhor das Moscas’ que atire a primeira pedra), tentando
obedecer as regras do auto-isolamento, me sentindo culpada por ter vontade de
ir à manicure num contexto desses, mas hoje o insight me veio como um tapa no meio da cara, me trazendo lágrimas
aos olhos e me colocando de coluna ereta e postura rija, pronta para a batalha.
Foi em mais um desses vídeos de
brasileiros, médicos (as) ou enfermeiros (as) na Itália. Foi numa única frase: “...os
idosos aqui estão morrendo como heróis para dar lugar aos mais novos nas
UTIS...”
A cena me veio imediata na cabeça,
eu velha, doente, diante de uma possibilidade de salvação e da necessidade de
salvar um dos meus sobrinhos, minhas enteadas (mãe e filha), um dos meus alunos
(alguns realmente brilhantes e que eu sei que farão diferença no mundo).
O que eu faria?
Eu daria o lugar na UTI e você
também. Porque não é natural que jovens morram antes dos velhos. Porque a
sobrevivência de um país e de um planeta depende da existência dos jovens! Chorei
e mais uma vez tive orgulho dos italianos e de velhos, que como eles, são
capazes dessa envergadura moral. Seres humanos assim serão extintos com eles?
Diante desse quadro de horrores,
digno de filmes de terror dos mais inimagináveis, ainda temos que lidar, no
Brasil, com governantes infantis e suas preocupações ególatras estapafúrdias (e
que trouxeram de fora do Brasil um avião cheio de COVID 19); adversários políticos
oportunistas de catástrofe (quem não viu as postagens do Lula nas redes
sociais?); líderes religiosos insanos e que não compreendem absolutamente NADA
do caráter do verdadeiro cristianismo (alguém faça o Silas Malafaia se calar,
por favor?); inúmeras pessoas, que mesmo sabendo-se ignorantes dos assuntos das
áreas da saúde, insistem em propagar bobagens, em apregoar ‘teorias da conspiração’
das mais absurdas e tentar burlar as regras de isolamento; além dos mercenários
de plantão, tentando lucrar de alguma forma com uma tragédia mundial (esses são
psicopatas, com certeza!). É cansativo e decepcionante! Além de assustador...
A própria quarentena em si é, por
demais, estressante!
Se de início você considera
positivo ter mais tempo livre para fazer as coisas para as quais nunca tem
tempo, logo se vê meio aparvalhado, ansioso, perdido como uma barata tonta,
tentando organizar a vida entre um momento de terror e outro de otimismo, a
busca incessante por notícias dos amigos e da família, vídeos da Itália,
notícias do Brasil, angústias dos alunos e pacientes e as suas próprias
angústias. De repente já é sexta-feira, quase uma semana de reclusão e é de
fato a primeira vez que você senta para escrever e tentar dar uma forma aos
seus pensamentos mais intensos e sentimentos mais agudos.
Quando a guerra é contra outro ser
humano, quando se sabe que em breve um país inimigo vai tentar invadir seu
território, sabe-se o que fazer: Você treina seu exército, prepara os
armamentos, estoca os suprimentos, organiza os batalhões e se concentra para a
batalha. Como é que a gente se prepara para um inimigo invisível? Uma ameaça
fantasma? Um vírus que, embora não seja fatal, nos mata por não termos recursos
suficientes para enfrentá-lo?
Que
cusparada na máscara de arrogância do homem pós-moderno, tão pleno e tão blasé em
suas gabolices de pós verdade, é ter que morrer de uma gripe...Morte besta digna
de uma geração flácida e mergulhada em futilidade..
Se existe algo que vou levar dessa
pandemia é a bravura dos velhos italianos...Esses velhos, crias da Segunda
Guerra Mundial, que sabem o que é lutar!
Não sei se as próximas gerações
saberão o que é ter coragem! Essa coragem visceral de simplesmente se dispor a
cumprir seu papel no mundo, de assumi-lo com hombridade e sem ressentimentos. Essa
coragem que chamamos de fibra moral!
Também não sei o que nos aguarda
nos próximos dias.
Só espero que eu seja mulher
suficiente para fazer o meu papel, com dignidade e sem amarguras.
Oremos!
Sejamos homens e mulheres forjados
para esse tempo que é o nosso tempo!
Façamos nossa parte!