A pele que habito

A pele que habito

sábado, 21 de março de 2020

Quarentena...




A ameaça não vem pelo ar, vem pelo toque.
O mesmo toque que, feito com afeto, produz em nós o hormônio do apego, conforta, acalenta, seduz. Basta um toque e morremos sufocados ou matamos outras pessoas, involuntariamente, como tantas desgraças acontecem.
Confesso que as coisas ainda estavam meio nebulosas na minha mente. Trancada em casa, evitando sair, com algumas fantasias hipocondríaco-paranoides: ‘estivemos no Mackenzie na semana passada’, ‘pegamos avião com um bando de gente usando máscaras’, ‘caminhamos um bom tempo dentro do aeroporto de Guarulhos’, ‘E essa tosse? E essa gripe? E essas dores nas pernas e nas costas? E esses pés inchados? ’ O fato é que tudo isso passou, já se vão 11 dias desde que estive em São Paulo e ainda estou vendendo saúde. Talvez, por enquanto, só por enquanto, eu não tenha contraído o Corona.
Livrarias fechadas, cafés fechados, perfumarias fechadas, cinemas fechados...As pessoas que eu gosto, todas fechadas em casa ou 1000 Km distantes, também fechadas...No elevador não se fala com o vizinho, só dois de cada vez, no máximo três...Nada de academia, até quando poderei tomar um ar no parque? Comprar comida no mercado? Aulas online, atendimentos online...Distância, muita distância, distâncias instransponíveis e o medo da nuvem invisível que vem chegando do Oriente para nós...

Lembrei daquela cena da série Chernobyl, quando as pessoas estão na ponte vendo o incêndio, admirando as luzes, recebendo pelo ar gotículas brilhosas de pura radioatividade, sem ter a menor ideia do que está acontecendo...



Olho para o meu marido e penso: - Se ele for e eu ficar, estarei sozinha, em Goiás, no meio do Apocalipse! Digo a ele para se cuidar, dou risada da minha própria estupidez, com um receio leve de não ser tanta estupidez assim...
Meu sentimento diante de tudo isso ainda era de certo alheamento, meio que na defensiva, fazendo uma ou outra piada, sem tirar os olhos da TV, avaliando cada nova informação, indignada com as posturas absurdas de nossos governantes mirins (quem nunca se sentiu, aqui no Brasil, vivendo no ‘Senhor das Moscas’ que atire a primeira pedra), tentando obedecer as regras do auto-isolamento, me sentindo culpada por ter vontade de ir à manicure num contexto desses, mas hoje o insight me veio como um tapa no meio da cara, me trazendo lágrimas aos olhos e me colocando de coluna ereta e postura rija, pronta para a batalha.
Foi em mais um desses vídeos de brasileiros, médicos (as) ou enfermeiros (as) na Itália. Foi numa única frase: “...os idosos aqui estão morrendo como heróis para dar lugar aos mais novos nas UTIS...”



A cena me veio imediata na cabeça, eu velha, doente, diante de uma possibilidade de salvação e da necessidade de salvar um dos meus sobrinhos, minhas enteadas (mãe e filha), um dos meus alunos (alguns realmente brilhantes e que eu sei que farão diferença no mundo).
O que eu faria?
Eu daria o lugar na UTI e você também. Porque não é natural que jovens morram antes dos velhos. Porque a sobrevivência de um país e de um planeta depende da existência dos jovens! Chorei e mais uma vez tive orgulho dos italianos e de velhos, que como eles, são capazes dessa envergadura moral. Seres humanos assim serão extintos com eles?
Diante desse quadro de horrores, digno de filmes de terror dos mais inimagináveis, ainda temos que lidar, no Brasil, com governantes infantis e suas preocupações ególatras estapafúrdias (e que trouxeram de fora do Brasil um avião cheio de COVID 19); adversários políticos oportunistas de catástrofe (quem não viu as postagens do Lula nas redes sociais?); líderes religiosos insanos e que não compreendem absolutamente NADA do caráter do verdadeiro cristianismo (alguém faça o Silas Malafaia se calar, por favor?); inúmeras pessoas, que mesmo sabendo-se ignorantes dos assuntos das áreas da saúde, insistem em propagar bobagens, em apregoar ‘teorias da conspiração’ das mais absurdas e tentar burlar as regras de isolamento; além dos mercenários de plantão, tentando lucrar de alguma forma com uma tragédia mundial (esses são psicopatas, com certeza!). É cansativo e decepcionante! Além de assustador...
A própria quarentena em si é, por demais, estressante!
Se de início você considera positivo ter mais tempo livre para fazer as coisas para as quais nunca tem tempo, logo se vê meio aparvalhado, ansioso, perdido como uma barata tonta, tentando organizar a vida entre um momento de terror e outro de otimismo, a busca incessante por notícias dos amigos e da família, vídeos da Itália, notícias do Brasil, angústias dos alunos e pacientes e as suas próprias angústias. De repente já é sexta-feira, quase uma semana de reclusão e é de fato a primeira vez que você senta para escrever e tentar dar uma forma aos seus pensamentos mais intensos e sentimentos mais agudos.
Quando a guerra é contra outro ser humano, quando se sabe que em breve um país inimigo vai tentar invadir seu território, sabe-se o que fazer: Você treina seu exército, prepara os armamentos, estoca os suprimentos, organiza os batalhões e se concentra para a batalha. Como é que a gente se prepara para um inimigo invisível? Uma ameaça fantasma? Um vírus que, embora não seja fatal, nos mata por não termos recursos suficientes para enfrentá-lo?

Que cusparada na máscara de arrogância do homem pós-moderno, tão pleno e tão blasé em suas gabolices de pós verdade, é ter que morrer de uma gripe...Morte besta digna de uma geração flácida e mergulhada em futilidade..

Se existe algo que vou levar dessa pandemia é a bravura dos velhos italianos...Esses velhos, crias da Segunda Guerra Mundial, que sabem o que é lutar!
Não sei se as próximas gerações saberão o que é ter coragem! Essa coragem visceral de simplesmente se dispor a cumprir seu papel no mundo, de assumi-lo com hombridade e sem ressentimentos. Essa coragem que chamamos de fibra moral!
Também não sei o que nos aguarda nos próximos dias.
Só espero que eu seja mulher suficiente para fazer o meu papel, com dignidade e sem amarguras.
Oremos!
Sejamos homens e mulheres forjados para esse tempo que é o nosso tempo!
Façamos nossa parte!