A pele que habito

A pele que habito

sábado, 15 de novembro de 2014

Revisitando Lilith em A Pele que Habito:


                                    Para Magistra (Profa. Elaine Prado)


          Assistir ao filme A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar, é entrar em contato com o Mito da forma mais perturbadora possível, ou seja, reatualizado. Tudo ali é mítico!

O tempo é mítico porque é circular, passado e presente se substituindo num emaranhado de fatos que aos poucos ganha significado e significados os mais surpreendentes, significados que mudam tudo, dando ao enredo novos equilíbrios, um novo entendimento, portanto, significados míticos. E mesmo a tentativa da personagem Vera de demarcar o tempo, escrevendo os dias na parede, iniciando de trás para frente, se perde num infinito de riscos mediados por desenhos míticos, míticos porque desenhos que buscam explicar o homem.

O espaço é mítico. A escolha de Toledo como cidade central da trama não poderia ter sido mais acertada. A cidade espanhola, declarada 'World Heritage Site' pela UNESCO em 1986 por sua característica de coexistência pacífica das culturas cristã, judaica e islâmica (“The City of Three Cultures”) é um lugar onde mundos se encontram e se confluem - na lógica mítica, ponto de onde os mundos também se originam.

Talvez afinal, a presença de elementos do Brasil no filme não se deva apenas ao gosto pela cirurgia plástica, como justifica o diretor, fazendo muito mais sentido assim a ponte do quadro de Tarsyla Amaral, exposto na parede do quarto, na cena em que Gal carbonizada caminha para a janela. Brasil - um lugar onde as culturas também se encontram, se confluem e, portanto, de onde também se originam.

Chama a atenção o nome da mansão do médico, “El Cigarral”, ou lugar das cigarras, alusão clara ao fato que se tem ali um lugar onde metamorfoses acontecem, uma casa de campo que é palco de encontros e tragédias, onde coisas vivas são criadas e re-criadas sob o desejo de um demiurgo autoritário, onde o sagrado está presente através de deuses pendurados nas paredes (Vênus, Dionísio e Ariadne) e onde conversas ao redor de grandes piras incendiadas explicam as origens e os segredos da vida. Temos até um jardim de mansão para orgias dionisíacas.

Os personagens são míticos: temos um Adão /Lilith /Galatéia enclausurado (Vicente-Vera), temos um Prometeu pós-moderno/ Frankenstein espanhol/ Pigmaleão/ Dionísio (Robert), temos também um Zeus lascivo e infantilizado (Zeca) metamorfoseado em tigre amordaçando a própria mãe e violentando uma mortal - homens agindo como deuses, segundo seus desejos e intentos, acima do bem e do mal, oprimindo os mortais, geralmente mulheres (ou homens que transformam em mulheres...rs..). Temos virgens apavoradas (Norma) diante de homens-sátiros excitados e confusos (Vicente) e até uma Europa/Lilith mãe de monstros (Marília). Tudo isso numa amoralidade que soa muito natural, como devia ser no Olimpo.

                São tantos os mitos evocados pela história, pelos detalhes, pelos fatos do filme e pela atuação dos personagens que antes de mergulhar nessas analogias, faz-se mais do que necessário uma introdução ao assunto, citando quem de fato importa a respeito disso:

             A partir do século XX, os eruditos ocidentais retomaram a percepção de mito oriunda das sociedades arcaicas, passando a compreendê-lo como a designação de uma história verdadeira, dotada de um caráter exemplar, significativo e sagrado. O homem moderno, compreendendo a si mesmo como construído pela História, assim como o homem arcaico se considerava o resultado de uma série de eventos míticos, acaba por admitir o mito, não como teoria abstrata ou fabulação vã, mas como elemento constitutivo de sua formação, codificação verdadeira do sagrado primitivo e sabedoria prática. (Eliade, 1963, p.7)

             Nas sociedades onde o mito vive como modelo para a conduta humana, dando valor e significado à existência, é possível esclarecer não só uma etapa na trajetória do pensamento humano, mas também elucidar a contemporaneidade - captar os sentidos por trás da conduta, entender suas causas, reconhece-las como fenômenos humanos.

O mito é uma realidade cultural extremamente complexa (...) conta uma história sagrada, ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio (...) narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. (Eliade, 1967, p.11)

             Todo mito de origem pressupõe e prolonga a cosmogonia, como a criação do mundo é a criação por excelência, a cosmogonia torna-se o modelo exemplar para toda a espécie de ‘criação’. Todo mito de origem introduz uma situação nova, algo que ainda não existia.

O meio cósmico em que se vive, por mais limitado que se vive, por mais limitado que possa ser, constitui o “Mundo”; sua origem e sua ‘história’ precedem qualquer outra história individual. (...) Uma coisa tem uma origem porque foi criada, isto é, porque um poder se manifestou claramente no Mundo, porque um acontecimento se verificou. (Eliade, 1967, p.39)

             Para o homem religioso, o essencial precede a existência, o homem tornou-se o que é devido a uma série de eventos, o mito os relata e com isso explica como e porque a humanidade se formou dessa maneira. A existência real se inicia no exato instante em que este homem recebe essa história primordial e aceita as suas consequências. Sempre se trata de uma história divina, portanto, eterna e atemporal.

             Os eventos essenciais não são os mesmos para todas as religiões. No caso do mundo judaico-cristão (ou seja, o nosso), o evento essencial é o drama do Paraíso, cujo qual constituiu e definiu a condição humana como se apresenta. Inevitável pensar em mitos de criação (e tudo no filme gira em torno da criação, na figura deste Prometeu Pós-moderno, Frankenstein espanhol), sobretudo na nossa cultura ocidental, sem pensar no Éden e em todos os desdobramentos que isso significou para nós, sobretudo no que tange à problemática da relação entre gêneros.

             Almodóvar, talentoso e ousado cineasta, grande inovador da sétima arte e reconhecidamente um questionador dessas relações, cuja temática se apresenta de forma insistente em toda a sua obra (títulos como Mulheres à beira de um Ataque de Nervos, Fale com Ela, Tudo sobre minha Mãe, Ata-me, Abraços Partidos, entre outros, são um verdadeiro desfile de diversas abordagens sobre o assunto), traz em A Pele que Habito, em todo resgate mitológico que o filme propõe, mais um lugar onde o conflito do Paraíso, em sua versão completa, incluindo o Adão andrógino e Lilith, é retomado e discutido. Para quem nunca ouviu essa, cabe uma explanação:

             Segundo o mito judaico-cristão, Jeová-Deus decidiu criar o homem para que se tornasse o coroamento da criação e disse: “Façamos o homem, que seja a nossa imagem, segundo a nossa semelhança.” (Gênesis 1.26) ¹

             Embora possa se pensar na estrutura afetiva e sexual de Adão em termos antropológicos, existe um mistério obscuro a respeito da primeira companheira de Adão: a mitologia bíblica reforça a ideia de uma androginia inicial, ao afirmar que “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou.” (Gênesis 1.27)¹ Este é um trecho sinuoso, pois introduz o conceito de androginia no indivíduo, segundo o princípio da harmonia total do Uno que é feito de Dois e também perpetua, através da multiplicação da espécie, na união do masculino com o feminino, a imagem de Deus, já que o homem lhe é semelhante. Sob essa perspectiva, Adão trazia em si fundidos, o princípio masculino e o feminino, só depois teriam sido separados sucessivamente. Segundo os comentários do Rabi Abba, no livro do Esplendor – o Sepher Ha-Zohar (um dos livros Canônicos judaicos, série de comentários místicos sobre a Torá - os cinco livros de Moisés - escritos em aramaico e hebraico medieval, contendo uma discussão mística sobre a natureza de Deus e considerações sobre a origem e estrutura do universo, a natureza das almas, pecado, redenção, o bem e o mal, e diversos temas relacionados), o primeiro homem era macho e fêmea precisamente para que se assemelhasse a Deus que não tinha distinção de sexos em si. (Sicuteri, 1998, p.13)

             Pode-se associar a esse entendimento, o mito do Andrógino Primordial, considerado um representante do mito do duplo na mitologia grega, localizado n’O Banquete, de Platão. Segundo o filósofo grego, a constituição do homem era diferente da atual, havia três sexos na espécie humana, além do masculino e do feminino, existia um que participava tanto no aspecto, quanto no nome de ambos os outros. O masculino era considerado filho do sol, o feminino da terra e o comum-de-dois, da lua. Os andróginos eram fortes e orgulhosos de sua completude e perfeição, atreveram-se contra os deuses e foram punidos, separados. (Santos, 2011, p.104)

             Da mesma maneira, o homem do Éden - inicialmente Uno e indiferenciado - ao ganhar maior consciência, é separado em dois. A compreensão dessa separação, como se deu e quais foram suas consequências, é essencial para esse estudo.

             Segundo a mitologia judaica e babilônica, inicialmente o homem, além de andrógino, teria também uma sexualidade indiferenciada e primitiva, acasalando-se inclusive com animais, afastando-se dessas práticas quando conseguiu reconhecer a mulher, uma “auxiliadora que lhe fosse idônea” (Gênesis 2.18)¹, o Adão bíblico solicita uma companheira quando identifica sua própria insatisfação. Os comentários rabínicos consideram uma metáfora desse abandono do primitivismo, o livro sagrado dizer que Adão deixaria pai e mãe para unir-se à mulher (uma vez que o mesmo não tinha pais). Assim fica velado o desinteresse pela inferioridade animal ao orientar-se para uma companheira mais digna. Comenta-se inclusive que Adão inicialmente tinha um rabo, que lhe foi retirado para seu decoro, informação ratificada pelos estudos científicos a respeito da evolução do corpo humano. (Sicuteri, 1998, p.15)

             É no momento em que Adão nomeia os animais, em Gênesis 2.20¹ que parece compreender a necessidade da diferenciação, Adão abandona então a parte de sua identificação com o divino expressa na androginia, supera a sexualidade animal e eleva-se pedindo a Deus uma companheira. De acordo com a compreensão rabínica, Deus não teria criado logo de início uma companheira para Adão porque “viu que Adão se lamentaria dela, por isso não a criou enquanto não a tivesse pedido...”² Deste modo a mulher nasce, por desejo de Adão, que dera-se conta de sua própria solidão e também de si mesmo, de sua própria alma.

             O mito de Lilith, surge na grande tradição oral, reunida nos textos de sabedoria rabínica de versão jeovística e é paralelo, precedendo-o em alguns séculos, ao da versão bíblica. Tais narrações, especialmente no que concerne ao nascimento da mulher, são repletas de contradições e mistérios excludentes. Deduz-se que a narração sobre Lilith, primeira esposa de Adão, perdeu-se ou foi removida no período da transposição da versão jeovística para a sacerdotal, em seguida sendo alterada pelos Pais da Igreja. (Sicuteri, 1998, p.23)

             A redescoberta de Lilith nos remete a uma compreensão da origem da relação homem e mulher, da cisão entre instintivo e racional, também a um esclarecimento do grande equívoco do primado do masculino sobre a mulher sentida como inferior. “Toda a história psicológica da relação homem-mulher (...) é uma série de notas de rodapé à história de Adão e Eva.” (Hillman, 1984, p.13)

             Dizem os rabinos que desde o início de sua criação, Lilith foi somente um sonho e

o sonho, para o homem, é a voz potente de seu espírito e de sua profundidade interior. No sonho não existe espaço para verdade ou inverdade, para a lógica ou a fantasia. No sonho o homem está inteiro (...) E tudo existe, como existe o homem. Porque existe o homem que sonha. E Lilith para nós nasce talvez do sonho ou da narrativa dos rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva. (Sicuteri, 1998, p. 25)

                Lilith pode ser identificada nas sutilezas, subentendidos e alusões analógicas do Beresit-Rabba (o primeiro livro da Torá). Surge definitivamente em Gênesis 1¹, Deus os abençoou e, segundo a versão jeovística, macho e fêmea humanos estavam em estado animal, indiferenciados e sem disparidade entre os sexos. Eles eram informes. O “desta vez” de Gênesis 2.22-25¹, quando da criação de Eva, dá margem de referência para esta mulher antecedente. Segundo a tradição, Lilith nasceu cheia de saliva e sangue e era capaz de instigar em Adão uma insustentável perturbação e isso o assustou terrivelmente. Em outra versão, teria sido criada com fezes e imundície ao invés de pó puro, denotando intenção de Jeová em criar a mulher inferior ao homem.

Na criação de Lilith está implícita a perda da unidade mágico-religiosa dos dois sexos na pessoa única do ‘homem’. A mulher, evidentemente, enquanto reprimida e comprimida sob a autoridade do macho, tentava reconquistar então, a paridade. Lilith nasceu das mãos do Jeová Deus, impura, humana: Um Adão, portanto. (Sicuteri, 1998, p. 28)

             Como Lilith nasce após Adão, ao entardecer do sexto dia, assim como os répteis e os demônios, já entra no mito com uma carga de fatalidade, um verdadeiro espírito deixado informe por Deus, ela é um companheira que possui uma identificação com a serpente e o demônio, Lilith estaria mais próxima do protótipo natural da mulher do que Eva. As diferentes reações de Adão frente às duas naturezas femininas, censurando Lilith (vista como carnal e como aquela que seduz) e aceitando Eva (vista como imagem do bem), não o isenta de que ambos os femininos lhe tragam desgraças, uma vez que a dócil Eva também é seduzida pela serpente e pela sua própria curiosidade.

             Embora a mulher tenha sido criada para personificar o sentimento que liga o homem da antiga tradição a seu Deus, o amor entre o casal é perturbado quase que de imediato. No caso de Lilith, não havia paz entre eles porque quando se uniam sexualmente na posição tida como mais natural – mulher por baixo do homem – ela se impacientava e questionava porque deveria abrir-se sob o corpo de Adão, porque deveria ser dominada por ele, se fora feita do pó e, portanto, sua igual. Solicitou então a inversão de posicionamento para estabelecer uma paridade entre eles. Adão recusou e a submeteu. Lilith não aceita essa imposição e se rebela contra Adão, pronuncia irritada o nome de Deus, acusa o homem, transgride a ordem e rompe o equilíbrio. Adão se vê abandonado e em seu desespero recorre ao Pai que interpreta o desafio ao homem, como um desafio ao divino. (Sicuteri, 1998, p.35)

             Lilith voa para longe, na direção das margens malditas do Mar Vermelho, após ter profanado o nome do Pai, se torna o veículo do pecado, o símbolo da transgressão. O ‘demônio’ em Lilith impele a mulher a ‘fazer algo’ que o homem não permite: Lilith pede a inversão das posições no coito, Eva obedece a serpente e come o fruto proibido. Parece haver uma espécie de lei natural que impele a mulher à prevaricação para não ser obrigada a submeter-se ao homem. Tanto Lilith quanto Eva assumem o risco de seus atos e modificam tudo, dão origem a uma outra coisa, a uma nova ordem, a uma situação nova, a um outro mundo. Lilith tem sua natureza alterada quando blasfema contra Deus, já não é mais capaz de obedecer, não é mais companheira de Adão, passa a relacionar-se com espíritos maléficos e a parir demônios. Embora tenha uma natureza astuta como a da serpente e uma grande sabedoria demoníaca, seu sofrimento aumenta quanto maior se torna o seu conhecimento. Lilith permanece na própria liberdade, endemoninhada, talvez rainha do inferno, como seu espírito feminino. Ao declarar guerra ao Pai e receber dele um papel demoníaco, desencadeia força destrutiva e desde então não há paz para o homem.

             Lilith é associada à experiência das fases lunares (lua nova representaria sua fuga do Éden) e manifesta o lado feroz de todas as divindades femininas. Vemos aspectos dela em Hécate, nas Lâmias, Eríneas e Fúrias, em Medéia e nas bruxas da Idade Média, também em toda mulher que não se submete e não desiste diante da dominação masculina. Pensar em Lilith independente, sobrevivendo por si mesma em oposição ao macho e à lei do Pai, sugere a ideia de uma postura de total competição com o homem ou uma elaboração interna do tema da relação e a respeito disso o mito das Amazonas sugere uma boa analogia, já que elas constituem a forma arcaica daquilo que é chamado impropriamente de feminismo.

             É sobretudo em Vicente-Vera, o homem transformado em mulher e em sua jornada que o mito de Lilith incide.

             O filme é baseado no romance francês Mygale (ou tarântula), de Thierry Jonquet, que rege sua principal linha narrativa com algumas mudanças criativas que melhoram o enredo. Inevitável ligar o simbolismo da aranha ao órgão sexual feminino - ideia talvez herdada do populacho, mas que ganha até em Saramago seu lugar, imortalizada em O Homem Duplicado. Atribui-se o título muito mais, porém, ao fato desse tipo de aranha em vez de teias, cavar túneis na terra, preparando alçapões para prender suas vítimas. Pensando no título escolhido por Almodóvar, A Pele que Habito, faz muito sentido, uma vez que a nova pele indestrutível que continha o eu de Vicente, representava muito mais do que um aspecto fenotípico, mas um verdadeiro aprisionamento psíquico - pele essa acompanhada de uma vagina, órgão celebrado e amaldiçoado pelos séculos afora, causador de misérias, doador de prazeres, lugar por onde se obtém a luz, para Vicente um verdadeiro alçapão. Tendo-se em vista o nome dado por Louise de Bourgeois (de quem falaremos a seguir) a sua mais afamada obra, a aranha de bronze, com 9 metros de altura, exposta no Museu Guggenheim em Bilbao, Maman, fica óbvio tanto o simbolismo quanto a conflitiva sugeridas.

                De modo geral, o filme trata da obsessão de um cirurgião plástico pela criação de uma pele transgênica, capaz de resistir a agressões as mais diversas, em especial queimaduras. Tal desejo nasce inicialmente em prol da cura da esposa, queimada gravemente em um acidente de carro, perpetuando-se depois da morte desta, pela sua própria loucura e genialidade. Colocando-se como criador, Robert age de forma amoral, ignora aspectos éticos e qualquer sentimento de culpa. Movido pela vingança, sequestra o agressor da filha (Vicente), transformando-o numa mulher em tudo semelhante a sua esposa falecida, Gal (evocando Galatéia, a escultura perfeita, amada por Pigmaleão, a quem Afrodite transforma em mulher real). Essa transformação de Vicente em Vera leva 6 anos, assim como no final dos 6 dias da criação Lilith é criada, após o período de evolução do Adão andrógino indiferenciado.

                Transformado do dia para noite em mulher, através de uma vaginoplastia, num processo avesso ao que se costuma fazer nos casos de transsexualidade, em que primeiro existe a aplicação de hormônios para a alteração das características físicas secundárias do paciente e só depois a mudança de sexo propriamente dita é efetuada. Vicente se vê de imediato destituído do poder sobre si mesmo, aqui representado muito psicanaliticamente pela perda do falo. A seguir se vê sendo modificado dia após dia, até se tornar outra pessoa por completo, numa sequência de intervenções cirúrgicas e medicamentosas completamente alheias ao seu desejo e consentimento. Vicente é feito coisa, substância, matéria prima para a criação de algo novo, em uma palavra se torna argila.

                Aprisionado no corpo e no espaço, reduzido a um quarto televisionado, Vicente feito Vera, portanto um homem posto em um corpo de mulher ainda inacabado (Adão andrógino com Lilith, misturados e informes), vivenciando em si mesmo todo o processo de criação de seu idealizador, inicia uma busca interna por equilíbrio e sobrevivência. Trilhando uma verdadeira jornada de herói, onde cada etapa é importante, onde cada escolha define o personagem, determina assim a reconstrução de seu caráter e destino. Em cada instante de escolha de Vera, é a lógica de Lilith que prevalece, seu modelo de feminino, feminino transgressor, aquele que se recusa à submissão e à vitimização.

Nesse momento outros nomes são invocados neste caminho de formação da nova pessoa que ainda é Vicente, mas que também é Vera.  Refletindo sobre o fato de que nas metamorfoses míticas, por mais outro que o indivíduo se torne, algo seu permanece, a ‘mens’, o que se observa é uma ação estratégica por parte do personagem no intuito de preservar essa essência. Essa ideia fica bem ilustrada pela cena em que Vera, trancafiada em seu quarto, seleciona canais de TV. Entre assistir um documentário em que felinos gigantes capturam uma presa e identificar-se com a vítima, e um programa de Ioga, onde a apresentadora justamente faz um discurso sobre a necessidade de encontrar no interior de si mesmo um local de refúgio, onde ninguém poderia lhe destroçar, opta pelo segundo e passa a praticar Ioga diligentemente, com o objeto de “não confundir a forma – Assana – com o conteúdo”.

                Vera segue sendo provada dia após dia, são lhe oferecidas roupas de mulher, que ela se recusa a usar, mantendo-se vestida apenas com seu macacão protetor, cor da pele que nos dá sempre a impressão de nudez, nudez mítica, nudez informe do paraíso e mesmo quando aceita se vestir a agir como a mulher idealizada por Robert, só o faz na esperança de conseguir escapar dali . As roupas femininas, recortadas, servem como matéria prima para suas esculturas, inspiradas num livro em que toma contato com as esculturas de Louise Bourgeois. A artista, muito influenciada pelo surrealismo e pelo primitivismo,  apresenta numa obra com inequívoca dimensão autobiográfica, uma militância interior que se contrapõe ao mundo exterior assumindo um caráter universal. Trata especialmente das emoções mais fundamentais do homem, partindo sempre do particular, falando da consciência trágica e brutalmente cruel da existência humana, expressando através de suas esculturas os complexos emaranhados existentes na constituição das questões de gênero, corpo, essência, sobretudo no que tange aos aspectos do feminino e de sua condição:

“Femme Maison” é uma série de pinturas figurativas e metafóricas que reflectem sobre identidade e condição de género dentro da complexidade modernista e vertical da cidade em explosão. A disfuncionalidade da arquitectura, dita doméstica, converte-se no próprio corpo da mulher em clausura, a mesma mulher menina para quem a casa familiar da infância provincial, miniaturizada em mármore à escala de uma boneca, significava a guilhotina pendente em “Cell (Choisy)”. Tornadas arquitecturas totémicas, as esculturas “Personages” das décadas de 40 e 50, celebram a abstracção antropomórfica que a linguagem anterior não contém. Com total autonomia inicial, começam progressivamente a integrar ambientes cada vez mais complexos, em diálogo umas com as outras, num histórico contributo para a genealogia da instalação. É também no espaço e do espaço que brotam as esculturas em gesso e látex do período seguinte. Viscerais, primitivos, orgânicos e disformes, os corpos em metamorfose parecem libertar-se, fluidos, a partir de fissuras e orifícios subterrâneos. (...) Mais referenciais e controladas, as esculturas de mármore reforçam o carácter sexual das anteriores. Falos, vulvas, torsos hermafroditas, reconfiguram uma linguagem escultórica híbrida materialmente classicizante. As celas e os quartos são o apogeu narrativo do pensamento plástico de Bourgeois. (Arte Capital - ver referências)

                Importante salientar que esse viés artístico é próprio de Vicente que já trabalhava na confecção de esculturas e na ornamentação de vitrines na loja de roupas ‘Vintage’ de sua mãe, costureira e restauradora de figurinos – que comprava roupas usadas e as ‘reformava’. Nesse ponto vale também comentar a importância da frase de Hemingway escrita na parede por Vera – “A Arte é garantia de saúde”, que sem dúvida revela o eixo paradigmático em que a essência de Vicente se apoia para tolerar a condição de aprisionamento físico e mental em que vive. Em seus desenhos, escritos e esculturas trata de estabelecer um diálogo entre o que era e o que está se tornando, construindo em si mesmo outra coisa, coisa esta capaz de abarcar todo o conteúdo simbólico, informativo e emocional com o qual é obrigado a lidar.

                Outro momento importante de escolha para Vicente-Vera é aquele em que ela se vê diante da proposta de maquiar-se, recebendo inúmeros cosméticos e um livro de orientações. A escolha da marca dos produtos, Chanel, não parece ter sido aleatória, uma vez que Coco Chanel, costureira (como a mãe de Vicente) e estilista francesa famosa por transformar a imagem da mulher no mundo, traz de forma emblemática em sua história pessoal a transgressão, a recusa por submeter-se ao papel social imposto à mulher, transmitindo essa possibilidade a todas as outras através da moda – ao abandonar o uso dos espartilhos, ao cortar os cabelos curtos, ao mudar toda a maneira de vestir a mulher, abriu do externo para o interno um caminho novo para o feminino. É bárbaro refletir sobre isso, porque a marca Chanel é usada para propor a Vera um jeito de ser mulher baseado no desejo de Robert e ao recusar a maquiagem, ficando apenas com o lápis para suas escritas na parede, Vera recusa a marca Chanel (que acabou se tornando também um instrumento midiático de controle da mulher) e opta pela Chanel- Lilith, por sua ideologia igualitária e por sua originalidade, ou seja, pela essência da mulher real. Essa grande ênfase em roupas, cortes e costuras, sem dúvida serve de metáfora para a pele, bastando para isso lembrar-se das cenas em que Robert está desenvolvendo GAL em um manequim e depois em Vera. A pele, nosso maior órgão, aquilo que nos contorna, que nos formata, que nos contém.

                Um nome que surge un passant no filme, mas que vale comentar é o de Alice Munro, primeira contista a ganhar o Nobel da Literatura, em 2013. A escritora é conhecia por abordar aspectos do cotidiano inusitado, situações que levam o enredo – ou uma vida – a algum sobressalto importante ou até mesmo a uma mudança completa de rumo. Suas personagens femininas estão sempre envolvidas em algo não convencional, mas se mostram sempre resignadas em sua sorte. No que tange ao momento em que Vera o recebe, pode-se pensar numa referência ou reforço à sua aparente aceitação passiva da condição em que se encontrava.

                A grande cena ‘Lilithiana’ do filme ocorre quando depois de 6 anos e uma tentativa de suicídio frustrada, percebendo a obsessão de Robert por ela, Vera começa a tentar seduzi-lo.

                Todo o discurso da personagem nesses momentos é pura menção a cena em que Lilith tenta convencer Adão de que é igual a ele, feita como ele e, portanto, sua companheira ideal. Vera começa sua fala dizendo que tanto ela quanto Robert não eram como todo mundo, propõe que convivam, de ‘igual para igual’, diz a ele que pertence a ele, que fora feita à medida dele e que ele havia gostado disso. Assim como Adão, Robert rejeita essa proposta, só acolhendo Vera como amante ao vê-la vitimizada por Zeca, portanto, rebaixada, agredida, humilhada, profanada e conspurcada, da mesma forma que Adão só se anima a recuperar Lilith após ela ter se exilado e se imiscuído aos demônios. Nesse momento, assim como Dionísio que acolhe Ariadne após ter sido abandonada por Teseu, Robert salva Vera, assassinando seu próprio irmão, que ainda está em cima dela na cama. Desse modo, como Adão, Dionísio e Robert, essa figura mítica do homem que é incapaz de aceitar uma mulher, a menos que ela esteja numa posição de vítima, de alguma forma inferiorizada, desvalida, desprotegida e reduzida é tema recorrente na história e na literatura, trazendo a tona um complexo de inferioridade e um medo ancestral do homem com relação à mulher de quem ele só consegue se aproximar quando fragilizada. Dionísio surge aqui também no hábito de Robert de oferecer ópio a Vera, assim como o deus grego que embebedava suas conquistas.

                Importante destacar que Robert já reconhecia em Vera seu duplo, em sua obsessão por observá-la, copiando muitas vezes até suas posições e gestos, toda a fascinação se dá por uma identificação plena e pela percepção da força do outro – 'Vera é uma sobrevivente!', a imagem dela que vai crescendo na tela em relação à dele, embora ela siga olhando-o de baixo para cima, numa reverência de criatura para criador. Mesmo após ceder às propostas dela, segue temendo-a e se confia nela é unicamente por reconhecer nela as marcas de si mesmo. Ao final, quando ela enfim o mata, apenas trocam de lugar, Robert dando a ela o poder de vida e morte sobre ele, poder que antes era dele sobre ela.

                Outro aspecto de Lilith surge na figura de Marília, a mulher cuja loucura habita o ventre. Conta-se que Lilith passou a parir demônios após entregar-se aos espíritos caídos. Marília, mãe que Robert trata como serva, pois ignora ser seu filho, seduzida por um empregado (pai de Zeca) e por seu patrão (pai de Robert), gera dois loucos, cada um louco à sua própria maneira. Lilith também se expressa no embriagamento de Robert pelo cheiro de carne queimada vindo de Gal, na adoção de um estilo de vida de vampiros após o acidente dela e de suas queimaduras, sem espelhos e na completa escuridão. Lilith surge também em Josefina, a mulher que foge e abandona marido e filho constantemente e para quem não haverá mais vestimentas, uma vez que seu marido vende suas roupas, numa tentativa talvez de apaga-la de vez de sua vida.

                A Lilith amazona surge em Cristina, a mulher que não gosta de homens e que desafia Vicente a vestir ele mesmo o vestido que deseja ver nela.É essa cena que Vera retoma no final do filme para convencer Cristina de sua real identidade, mostrando a ela que de fato vestira o vestido ele mesmo.

Impossível não resgatar aqui um texto de C.G.Jung, chamado Resposta a Jó, onde o autor faz toda uma reflexão sobre a relação entre Deus e o homem, sugerindo que Jeová - afetado pelo discurso e atitude de Jó (que, após ter sido vítima de toda a coleção de torturas e injustiças que bem conhecemos, revelando a frágil condição humana diante de um Deus Todo Poderoso e sem nunca amaldiçoa-lo, antes ciente de que o mesmo Deus que o feria era o único a poder salvá-lo) - teria sido modificado, evoluindo de uma postura divina despreocupada de julgamentos morais ou sem uma ética que Lhe impusesse obrigações (já que a moralidade pressupõe consciência, e Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica transcendente, um fenômeno absolutamente portentoso, e não um homem, simplesmente).

Sobe essa perspectiva, a experiência com Jó teria sido uma espécie de divisor de águas na relação de Deus com o homem, o ponto culminante de um arquétipo em evolução, pois esse homem mortal viu o semblante de Javé, a partir do que Deus se renova “conhecido”, tomando consciência de si, agindo e crescendo dentro dos homens. Para completar a contraparte desta experiência mística, Javé (ou Jeová) decide encarnar-se em nosso meio. Entretanto, o segundo Adão (Jesus) não nasce de das mãos divinas e do pó, mas sim do ventre de uma mulher humana, uma segunda Eva. Jesus representando o Deus que viveu entre os homens, que conhece a condição humana, pode arbitrar sobre ela com justiça e redimi-la, pois a conhece de dentro para fora, se fez como homem, se fez homem.

                De forma análoga, Vera representa o homem que só é capaz de compreender a condição feminina e redimi-la ao se tornar uma mulher. Da mesma forma que Javé vitimiza Jó, pois sequer possui a consciência moral para não fazê-lo, uma vez que não contém em seu íntimo a noção, de si e do outro, necessária para que isso não lhe seja possível, para que haja um limite moral imposto dele para ele, o homem não consegue VER a mulher, integrá-la e acolhê-la enquanto não se exercita na alteridade e na empatia, na capacidade de abrir em si mesmo um espaço do outro e para o outro – no caso, para a mulher, o grande outro do homem. A Pele que Habito conta a história de um homem que obrigado a viver como mulher, é submetido a todas as opressões e experiências fatais que uma mulher pode vivenciar em sua história de vida, protagonizando um processo de redenção por um ato não intencional de agressão (situação com Norma) que resulta em verdadeira homenagem ao espírito feminino e à sua resiliência inata. Ironicamente, a conclusão desse processo abre um espaço para que ele se torne desejado pela mulher que deseja e que não desejava homens, ilustração talvez de que o caminho para o coração e para a vagina da mulher habite na capacidade de compreendê-la e de se colocar em seu lugar e no resultado disso revelado na forma de trata-la.

          Conclui-se retomando a ideia de que sempre que o conflito entre o masculino e feminino se verifica, quando os gêneros de alguma forma se mostram imbricados, confundidos, emaranhados e em disputa, o que se manifesta são os aspectos do embate mítico do Paraíso; pode-se afirmar que muito tem sido conquistado no sentido de se integrar o desejo de igualdade de Lilith à necessidade de autoafirmação de Adão, mesmo a curiosidade de Eva tem sido amplamente saciada na busca livre pelo conhecimento por parte de muitas mulheres, aplicadas a instruir-se e investir todo seu potencial construtivo e criativo. Muito tem sido feito também no sentido de conscientizar o mundo a respeito da violência contra a mulher e, a despeito das culturas e religiões que ainda insistem em reprimi-la e oprimi-la embaixo da pecha de uma falsa manutenção da ordem, pode-se intuir que um mundo onde homens e mulheres se respeitam em suas diferenças ou ao menos estão abertos ao diálogo e à colaboração mútua só pode se tornar um lugar infinitamente melhor para se viver.






Referências bibliográficas:

¹Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada. 2 ed. Barueri. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

²Commento ala Genesi, BeresitRabba, org. T.Federici, V.T.E.T., Torino, 1978, p.136 apud Sicuteri

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo. Perspectiva.

HILLMAN, James. O Mito da Análise. São Paulo. Paz e Terra, 1984.

SANTOS, Elaine Cristina Prados dos. Orfeu refletido: uma entrada especular no outro mundo. In: ALVAREZ, A.G.R.; LOPONDO, L. (org) Leituras do Duplo. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.

SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1998.


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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Poema III dos Poemas da Necessidade

Vigio atentamente a dor alheia.
Não que a monitore ou interceda, eu só presumo 
seu rumo doloroso, conforme a disposição das cores
que pedem claro quando escuro.
Difícil é prever as sombras que se acrescem
sem que haja uma razão para isso.

Sou vigia no mais completo anonimato, 
a não ser àquele que me espreita, 
pois também sou vigiado 
enquanto finjo ser um deus. 

Comecei acompanhando uma dor por vez.   
Às vezes meses numa dor. O tempero
era o próprio alimento, porém cortado em grãos.
Decidi dividir meus olhos em parcelas míopes
e vê-las todas, parcialmente.

Mas estava tão próximo da dor, que ao piscar 
esbarrava minhas pálpebras. Então forjei um desejo: 
tirei a dor de cada corpo para pesá-la.
De tempos em tempos os corpos são de névoa. 
Posso abri-los à vontade, que nada dói, senão o que já doía.

Meus dedos não podiam 
ser tão carne. Quando vi, estavam dentro.
As dores transitavam
do líquido ao vapor, 
e só não evaporavam
pois a dor de minha mão as atraía. 
O perigo era aumentá-las. Ou pior: aliviá-las.
Mas uma violência com o braço, um arremesso
contido (adiado), 
a tentação de cumprir uma ameaça;
e as dores tremiam, quase pedindo
uma carícia, que eu não faria.

Deixei-as numa única balança.
Longe das bocas, que as gritam mais doídas.
Se atraíram e se entranharam: e era uma dor só. 
Mas não doía divórcios. As palavras escorriam
e escorriam homens e mulheres 
que se ferem conversando.

No fim, a dor pesava uma ferida com o mínimo de pele.


By Haim Fridman