A pele que habito

A pele que habito

segunda-feira, 23 de março de 2020

Sobre bombeiros e afins...



Sobre bombeiros e afins...

Para mim foi ontem à noite.
Víamos um filme meio ruim na TV, ainda tendo dúvidas sobre o que comer e sobre que livro ler a seguir, quando sirenes altíssimas começaram a soar, percorrendo as redondezas. Pensamos que se tratava de algum incêndio no shopping aqui ao lado, segundo soube, um dos porta-retratos da cidade. Nós e muitos outros saímos nas varandas para ver o que estava acontecendo e, ao olhar para baixo, vimos três caminhões do corpo de bombeiros parados no meio da rua, bem embaixo das nossas janelas. Através de um autofalante, com voz firme e bem articulada, um deles nos notificava, novamente, da necessidade premente de FICARMOS EM CASA, de cumprirmos a quarentena, que aquilo tudo era para o nosso bem, que não havia exageros, que era MUITO sério e importante que ficássemos em casa.
A única palavra que tenho encontrado para definir meu sentimento geral diante da ‘surrealidade’ que vivemos nesse período é APARVALHAMENTO. Cheguei a consultar o google para lembrar se ela existe – Existe sim.

aparvalhamento
substantivo masculino
1.     ato ou efeito de aparvalhar(-se); aparvoamento.
Origem
ETIM aparvalhar + -mento

aparvalhar
verbo
1.     1.
transitivo direto e pronominal
tornar(-se) parvo; embasbacar(-se), apalermar(-se).
2.     2.
transitivo direto e pronominal
tornar(-se) atrapalhado; desnortear(-se), desorientar(-se).
Origem
ETIM a- + parvo + -alho + -ar
Semelhantes
aparvar
aparvoar


Sinto que tenho um troço se avolumando no meu peito, às vezes fica tão grande que meus olhos se irritam e se enchem de lágrimas. Tenho reduzido o tempo de ouvir jornais na TV, tenho evitado certas redes sociais. Cada foto ou notícia sobre a Itália é uma faca no meu peito. A saudade da minha família aperta e tudo fica pior quando você se dá conta de que não, não é só pegar um avião, porque você não pode mais pegar aviões! E ainda nem chegamos ao epicentro da crise – temos ao menos mais uma semana de espera pela frente.

Ouvir os bombeiros aqui ontem me emocionou bastante, soube que estiveram em toda a cidade, alguns, como eu, os ouviram ontem, outros hoje, alguns ainda os ouvirão. O tom da voz daquele homem no autofalante era muito grave, muito comprometido, muito preocupado – preocupado com estranhos, como nós, mas também com conhecidos, como nós, porque todo homem se reconhece em sua vulnerabilidade diante dos percalços dessa vida efêmera, bela e horrível.

Tenho me encantado demais com o esforço dos professores e dos líderes religiosos ao vencer barreiras, superar possíveis inibições, abrir mão de preconceitos e se arriscar nos canais de Youtube da vida, tentando ensinar, confortar, levar palavras de motivação, consolo e incentivo, tornando-se vozes em meio ao silêncio, tentando tocar as pessoas, ainda que sem toques.

Hoje também soube de uma amiga enfermeira que trabalha no centro de doenças infecciosas daqui e que está recebendo os casos confirmados ou não de COVID 19 – é a frente de batalha. Ouvi sua voz no telefone com imensa admiração. Gente que tem coragem e assume seu posto na hora em que é necessário.

Hoje também atendi minha primeira paciente de voluntariado de quarentena e a realidade das pessoas parece tão mais real do que as nossas.

Hoje também li muito, fiquei bastante tempo acariciando meus gatos, passei tempo divertido e encantador com o marido lindo que Deus me deu, descobri que minha primeira plantinha está crescendo como nunca  e que, em seu vaso, um ramo de hortelã brotou de forma imprevista, mas muito bem-vinda. 

Hoje também pedi para minha mãe a receita de seu bolinho de frango maravilhoso, conversei com amigos que há muito eu não vejo e fui contatada por um aluno de uma escola na qual lecionei em 2017, que me escreveu para dizer que fiz falta quando deixei de ser sua professora. 

Hoje também comi banana quente com canela como minha avó Khadija me fazia e orei mais uma vez pela minha avó Bruna e minha sogra, ambas octagenárias e, portanto, grupo de risco.

Hoje pensei que Deus tem um jeito sutil, elegante e poderoso de nos acompanhar, em especial nas crises e agradeci a Ele por cada sinal de vida contido em nosso apartamento, que parece uma cápsula de afeto, um refúgio secreto, um bunker seguro, só porque Ele está aqui conosco o tempo inteiro, colorindo cada segundo com suas cores etéreas e resistentes, mas leves, frescas, como a brisa de um fim de tarde de fim de verão, começo de outono.

O pior ainda está por vir. Vamos passar por coisas que nunca imaginamos possíveis nessa nossa vida de criança mimada, filhos dos filhos dos baby-boomers que somos, mas talvez, só talvez, sejamos capazes de sair dessa baita mediocridade que nos aprisiona e deixemos algum legado melhor que um monte de celulares para a próxima geração.

A palavra da vez é SOLIDARIEDADE. Se você ainda não encontrou um jeito de ser útil nessa crise, ENCONTRE JÁ. Pode ser sua última oportunidade!