A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Elemento de Transição


            Na Química (e é impressionante como nos lembramos das coisas, especialmente quando não precisamos mais nos lembrar delas....rs..), os chamados Elementos de Transição são metais que apresentam seu nível de energia incompleto e, por isso, possuem alto potencial de condutividade térmica e elétrica. Exatamente por não serem completos, ou terminados, ou plenos, são excelentes condutores de energia, se associando mais facilmente e com maior aproveitamento a outros tipos de substâncias.
Somando o tempo em que vivi com meus pais aos vários anos em voo solo, já cheguei ao espantoso número de 29 mudanças de residência efetuadas. Com cada mudança de casa, novas paisagens, novas caras, novas escolas, novas igrejas, novos cheiros, novos sabores, novas sensações, novas experiências e novas realidades e, por que não admitir, novas Daniellis. Em cada lugar desses por onde passei aprendi coisas, algumas delas separei para mim e ainda preservo, outras descartei e evito sempre que posso. Adquiri gostos e hábitos. Perdi gostos e hábitos. Troquei cores e cortes de cabelo. Deixei e retomei figurinos.  Aprendi a apreciar novos aromas e novos temperos. Ouvi músicas. Li livros. Assisti filmes e peças. Ouvi e dei inúmeras opiniões sobre inúmeras coisas. Estabeleci relações com muitas pessoas, relações boas e ruins, algumas consegui manter, outras perdi, cada perda uma dor, cada dor, uma ruga ou sintoma ou um quilo a menos ...rs... O certo é que, exatamente pelo fato de ter deixado tanta gente e tanta coisa pelo caminho, aprendi a sempre, independentemente da situação ou da razão, valorizar as coisas que aprecio e deixar claro para as pessoas o quanto eu as amo e o que elas representam para mim - a verdade é que não existe uma única alma nessa terra de meu Deus, que por acaso tenha de alguma forma se tornado valiosa aos meus olhos, que não tenha sabido, de maneira explícita e sincera, o quanto ela é ou foi importante. Nunca cedi aos orgulhos mesquinhos ou escrúpulos desnecessários, nunca levei em consideração as opiniões alheias e até mesmo as possíveis consequências, sempre abri o peito e o sorriso e me dei em plena exposição. Alguns compreenderam, outros se assustaram, a grande maioria ficou feliz e é nessa alegria proporcionada que habita o imenso prazer do compartilhar afeto. Isso me deu o direito e a liberdade de ir embora quando tinha que ir, sem remorsos, sem culpas e sem dívidas. Pássaro livre, sempre fora de gaiolas. Cada experiência vivida se perpetua ao reforçar o que de mim é mais meu e ao diluir o que de resíduo ficou da anterior.
Em 2015 encerrei mais um ciclo, essa graduação tardia, feita na tentativa de garantir o direito a exercer uma profissão que, verdade seja dita, em virtude da péssima formação oferecida nos cursos de licenciatura atualmente, talvez pudesse ser muito melhor exercida por leigos dedicados e melhor intencionados. Após três anos e meio de Letras, na que hoje é classificada como a melhor universidade particular do país, só posso dizer que estou infinitamente grata por ter ido logo para o mestrado e por ter feito Psicologia nos anos 90 (... que formação maravilhosa eu recebi naquela época!). Bom, lamentos de lado, agora sou professora e em breve darei início aos ‘diários de uma jovem professora, não tão jovem’..rs..Coisa tão gostosa essa de viver sem medo de tentar, de se arriscar, de aprender com a própria experiência, de se deixar mover por sonhos e por possibilidades...
Demorei quase quatro décadas para aceitar algo que sempre ouvi (e como ser inteligente e estar de fato pronta para ouvir o óbvio são coisas muito diferentes!): Nessa vida nunca se está pronto, temos só construção e re-construção constantes, não há estabilidade ou situação definitiva, não há linha de chegada demarcada, exceto a morte e todos chegaremos a ela, inexoravelmente. Quanto antes e melhor aceitarmos esse fato, maior a possibilidade de crescimento e aquisição e também maior a alegria de viver. Ser um Elemento de Transição é a maior honraria que se pode receber do Alto, significa que nossos potenciais de contato, de aprendizagem e de ensino são infinitos. Lembrando que só troca quem tem algo a oferecer ao outro. Sem uma essência, sem valores e princípios não existe um algo a compartilhar. O Elemento de Transição não é um amorfo, mas uma forma ainda incompleta, cambiando as partes voláteis de si, na tentativa de seguir se completando.
Muita gente ri quando digo que sou fã de Naruto, mas é incrível como essa questão do desenvolvimento humano é bem trabalhada nessa narrativa. Existe nela toda uma gama de personagens, todos eles interessantes e importantes, cada qual à sua própria maneira, buscando superar seus próprios limites e alcançar suas próprias metas, em competições vitais que definem suas conquistas e o sentido de suas existências. É engraçado como é possível se identificar com um ou outro personagem, dependendo da área da vida que estiver sendo colocada na berlinda naquele momento e é muito ingênuo quem achar que, em algum ponto, não estaremos mais sendo testados e desafiados. Cada fase da vida tem seu próprio torneio, cabe a cada ser humano lúcido dar conta de si e arriscar-se a crescer.
A Leveza é algo que sempre definirá e possibilitará o transitar produtivo. A palavra leveza vem do latim “Levianus levis”, expressão pouco conhecida e que pode ser conceituada de várias formas. Aqui a leveza é compreendida como a característica daquilo que se move com facilidade ou que tem tranquilidade em submeter-se aos efeitos da transição. Do ponto de vista relacional, a leveza sempre é associada à atuação do elemento feminino sobre as coisas compreendidas como pesadas e rígidas, também a uma ideia de continência sobre tudo aquilo que é incontinente. A leveza tem uma conotação de carinho, conforto e suavidade, relaciona-se ao trabalho exercido com prazer e sem expectativa de retribuição, também à liberdade. Leveza é o vento que acalenta as folhas e as flores, que move as cortinas e refresca a pele. Leveza lembra languidez, candura e delicadeza. Na alimentação, está ligada a hábitos equilibrados de nutrição, saúde e bem estar. São sinônimos de leveza: Agilidade, flexibilidade, fluidez e ligeireza. São antônimos de leveza: Retardamento, rigidez, peso e dureza. A leveza é o que nos faz capaz de ser felizes em toda e qualquer situação, que nos torna pacientes nas circunstâncias ruins e que não permite que a amargura das frustrações construa ninhos em nossos corações. A leveza nos faz capaz de ter prazer mesmo nesse mundo tenebroso e que preserva em nós a possibilidade do amor, apesar de toda canalhice e injustiça. É a leveza que nos protege das obsessões e das ideologias de velhas caducas e de soldados inveterados, com seus radicalismos estéreis e violentos. É a leveza que equilibra nosso apego, para que o afeto não se torne sinônimo de estrangulamento. É a leveza que azeita a coragem e nos motiva a correr riscos. É a leveza que torna possível qualquer perdão. Se tivesse que dar para a leveza um nome de gente, daria o nome da minha avó Khadija, a mulher mais luminosa que já vi, a mais alegre nas intempéries, a mais criativa nas dificuldades, a mais otimista nos pesadelos, a pessoa mais transitória com quem já cruzei e uma libriana típica, claro...rs... Se eu conseguir ser a metade do que ela foi, terei me realizado na vida!
 Nas palavras de Cecília Meirelles:


Leve é o pássaro:
e a sua sombra voante,
mais leve.

E a cascata aérea
de sua garganta,
mais leve.

E o que se lembra, ouvindo-se
deslizar seu canto,
mais leve.

E o desejo rápido
desse mais antigo instante,
mais leve.

E a fuga invisível
do amargo passante,
mais leve.

Depois de algumas conversas não tão leves, pensando na leveza e na capacidade de associação e aproveitamento dos Elementos de Transição, foi inevitável lembrar do Milan Kundera e da minha parte favorita de seu famoso romance, ‘A Insustentável Leveza do Ser’:

“Nas línguas que formam a palavra compaixão não com a raiz passio, ‘sofrimento’, mas com o substantivo ‘sentimento’, a palavra é empregada mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta de sua etimologia banha a palavra numa outra luz e lhe dá um sentido mais amplo: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com alguém sua infelicidade, mas é também sentir com esse alguém qualquer outra emoção: alegria, angústia, felicidade, dor. Essa compaixão (no sentido de soucit, wspolczucie, Mitgefühl, medkänzla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.”

     Entro o Ano Novo feliz, assumindo e acolhendo em paz minha ciganice, admitindo que nem sempre o que queremos é o que precisamos e que existe sempre o Plano Maior a dirigir nossa jornada, jornada essa que aos olhos desavisados parecerá sempre um tanto caótica, mas que na perspectiva do Criador fará sempre todo sentido. Nada é terminado ou definido em mim, exceto minha vocação para Elemento de Transição e vejo nisso um traço inequívoco do espetacular senso de humor divino...rs...Desejo a todos que amo um 2016 muito LEVE, muito TRANSITÓRIO e repleto de oportunidades de se experimentar COMPAIXÃO.
Obrigada por tornarem minha vida tão rica e tão linda!