INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE
CEMITÉRIO
Na mesma pedra que se
encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-nos a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!”
Mario Quintana
“É mesmo ampla a tristeza
E tênue a melancolia?”
Pablo Neruda
“A alma escolhe sua companhia
E fecha a porta, depois.
Em sua augusta suficiência,
Cessam as intromissões...
Sei que, dentre uma vasta multidão,
Ela escolheu um ser apenas;
Depois, cerrou as aldravas de
sua atenção,
Feito pedra.”
Emily Dickinson
“Ó Capitão! Meu Capitão! Nossa terrível
viagem se cumpriu,
O navio cruzou tormentas, é nosso o prêmio
pio,
O porto vê-se ao perto – os sinos dobram, o
povo espera...
Meu Capitão já não responde, a boca sem vigor
e viço,
Meu capitão já não se move, cessa o pulso, o
corpo rijo,
Sã e salva a nave ancora – o périplo se
encerra e tudo finda,
Da viagem vil a nau retorna – o grande
prêmio, a glória finda;
Ó clamor das praias, Ó dobrar dos sinos!
Só me resta andar sombrio,
No convés onde ele dorme,
Deitado morto e frio.”
Walt Whitman
Há um mutismo agudo na perda, uma sensação
de flutuação, de estar caindo sem nunca chegar, um torpor, uma letargia, uma
lentidão estranha que nos torna insensíveis por completo. O espaço se torna tão
mais extenso ao nosso redor, tão mais desconhecido e tão mais silencioso – de
um silêncio doloroso, pesado, cansativo. O corpo inteiro se ressente dessa
tristeza que torna o ar mais condensado, cada respiração nos fere e a sensação
de falência dos órgãos é constante - tudo é cansaço, um eterno deitar-se. Destituídos
das sensações táteis, tudo é frio ou quente demais. As dores no peito, no
pescoço e nas costas são frequentes e insanas. O tempo todo se vê a beira do
abismo, abandonados a uma orfandade sem precedentes esperamos algo acontecer,
revertendo o caos que nos atingiu. O pensamento se torna inibido e
completamente improdutivo, de uma crueldade crônica que visa apenas nos dilacerar
com suas lembranças macabras a nos ligar ao que nos fere. Os sentimentos são
pequenos ventos caóticos, nos açoitando e confundindo. Sem corpo, nos sobra uma
alma penada. A perda nos faz fantasmas dos nossos próprios fantasmas.
Cientificamente,
o luto é um processo considerado normal- apesar de seus múltiplos
desdobramentos psíquicos e comportamentais- que é produzido em resposta à perda
de alguém amado ou a algo que remeta a alguém ou algo amado.
Dentro do que é considerado ok, esse processo
ou trabalho de luto deve ser superado dentro de algum espaço de tempo, período
este que é muito relativo e pessoal e que pode se reduzir a meses ou se
estender a anos ou mesmo a uma vida inteira. Dizem por exemplo que a Rainha
Vitória, tendo ficado viúva relativamente jovem, permaneceu escolhendo e
separando as roupas para o marido diariamente até o final de sua própria vida,
num ritual meio fofo, meio macabro que devia causar estranhamentos na tão
fleumática corte inglesa da época.
De
acordo com Freud, este trabalho de luto seria uma espécie de construção para
aceitação da perda, uma vez que ao perceber que o objeto amado já não existe e
que a libido investida nele precisaria ser recolhida e investida em outro
objeto para o bem da saúde mental do vivo, o psiquismo parece reagir a esta
realidade, optando por permanecer ligado a esse objeto como meio de não
permitir sua partida. Essa oposição poderia ser tão intensa que daria lugar a
um desvio da realidade e a um apego ao objeto através de uma espécie de psicose
alucinatória carregada de desejo, que atuaria no sentido de continuar ligado ao
objeto amado (Quem nunca?). Num ciclo normal, para o enlutado vai prevalecendo
a realidade, embora não consiga adotar suas ordens de imediato, mas apenas
pouco a pouco, com grande dor e dispêndio de energia, mantendo durante
esse tempo, psiquicamente, o objeto amado vivo. Cada uma das lembranças e
expectativas para com o objeto é re-vivenciada e o desligamento da libido se dá
em relação a cada uma delas. Apenas após esse doloroso e demorado trabalho é
que o ego ficaria livre para seguir sua vida.
No
que tange a melancolia (hoje em dia mais conhecida como Depressão)- já
considerada como patológica – podemos dizer que embora em muito se assemelhe ao
luto, inclusive podendo iniciar-se a partir de uma perda real, cogita-se que
para não perder o objeto amado, parte do ego se identifique com ele e o
absorva, mantendo em si uma parte do mesmo. Isso explicaria, por exemplo, o
fato do melancólico, ao contrário do enlutado, enfrentar uma grave queda de
autoestima, já que mantem em si aquilo que o magoa e o ataca severamente. Sendo
assim, depressivos que se recusam a melhorar e insistem em maltratar-se podem
estar, dentro de seu quadro patológico, agredindo não a si mesmo, mas a quem o
magoou. Fica de semelhante com o luto, a lentidão e severidade do trabalho de descatexização,
aqui ainda mais agravado pelo prazer causado pela autoflagelação emocional.
O
filme “Gravidade”, de Alfonso Cuarón (“Paris, te amo”, “Grandes esperanças”,
“Labirinto do Fauno”, entre outros...), com Sandra Bullock e George Clooney,
conta a história de dois astronautas que em meio a uma missão, são
surpreendidos pelos destroços de algum desastre com satélites e acabam perdidos
no espaço infinito, com poucas chances de sobrevivência e momentos de muita
tensão. Ao nos deparar, no meio de todo aquele silêncio e abandono galáctico,
com a história da morte da filha da personagem de Sandra e seu dilema interno
quanto a morrer ou sobreviver (ceninha bacana com um George Clooney a la “Descendentes”) impossível não
associar toda a agonia da falta de Gravidade à experiência do processo de Luto.
Chama
a atenção em todo o filme essa questão da ausência da Gravidade. Definida por
Isaac Newton como a força de atração que existe entre todas as partículas com
massa do universo, protagonista da manutenção dos objetos à superfície dos
planetas e dos objetos em órbita em torno uns dos outros, sugere uma metáfora
perfeita para o amor – sentimento que regula a distância entre cada um de nós e
o outro. O trabalho do luto sendo exatamente esse período de se estar fora da
ação dessa força: suspenso, alheio, a deriva, infinitamente sozinho, inalcançável,
incompreensível, intocável e irredimível.
Todos
aqueles que já amaram o suficiente para sofrer de verdade a perda de alguém ou
de algo, sabem o que é aquele silêncio interno que se cristaliza dentro de nós
no momento em que - passado o tempo do enlouquecimento quando pensávamos poder
manter vivo nosso objeto amado - nos damos conta de que ele não existe mais.
Conhecemos a sensação de vazio e de falta de sentido que se apropria de nós a
partir de então e que certamente nos conduzirá ao exato instante em que a
pergunta crucial será feita: Vai partir ou vai ficar? Apenas desligar as
máquinas, colocar uma música lúgubre e dissolver? Ou vai abrir os olhos, se lembrar
do que foi aprendido em algum momento, em algum lugar e que é exatamente o que
é preciso para voltar a existir?
O
instinto de vida é algo muito, muito forte!
Após
a decisão ser tomada, para aqueles em que a vida prevalece haverá um duplo
batismo, um de fogo para cauterização das feridas e purificação, outro de água
para revitalização. Sai-se do segundo nu e caminhando, geralmente num lugar
desconhecido e natural. A vida se amplia numa dimensão nunca antes imaginada e
tudo ganha novo significado. Olhos são abertos, os corações transformados.
Acima de tudo existe um novo olhar para o si mesmo, uma nova capacidade de
auto-sustentação, medos são superados, questões não resolvidas são encaradas,
aumentamos nosso amor por nós mesmos e com isso nos abrimos mais aos outros,
superamos falsas expectativas e desmistificamos falsas necessidades. Embora
sejam necessários inúmeros pequenos recomeços para que seja possível uma solução
completa do luto, a cada recaída volta-se mais forte como numa espiral de
superação.
Do
mesmo modo que o luto nos ensina a experimentar a dor, a deixá-la nos
atravessar até que possa enfim partir, a superação dele nos ensina a
experimentar novamente a alegria, que dessa vez é sentida como se fosse a
primeira vez, ela vem devagar e inesperadamente e num susto nos pegamos
sorrindo, como uma margaridinha inesperada, num canto de cimento rachado.
A
verdade é que ao contrário do que crescemos ouvindo, nem tudo tem sentido na
vida, principalmente no que tange as coisas e pessoas amadas que perdemos pelo
caminho.
O
trabalho do luto - dessa ferida afetiva, dessa espécie de amputação essencial –
é afinal, um trabalho de aceitação, de reconciliação. É um trabalho de
afastamento progressivo não do objeto do amor, mas em direção à possibilidade
de amar de novo, outra pessoa, outra coisa, de outro jeito, para que haja
novamente um caminho para a alegria. O processo de luto, na verdade, é uma
jornada em direção à admissão de uma verdade indesejada, para que através deste
reconhecimento a vida se torne outra vez viável. Como diz o evangelho de João:
“E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará...”
Desse
modo poderíamos dizer que o luto, sendo um horizonte do amor, seria um caminho
para a sabedoria. Heidegger defende essa ideia, considerando que a partir do
momento que se toma consciência da morte e da possibilidade da perda, isso
traria uma maior reflexão sobre a vida, nos fazendo repensar sobre a existência
e sobre o estar no mundo. A grande verdade a ser absorvida e que é comum a cada
um de nós é o fato de que a experiência humana é de uma fluidez constante,
completamente mutável, livre e sem segurança alguma. Tudo isso não nasce de
alguma deficiência do homem, mas da condição de seres da Natureza que
carregamos em nós.
“Em relação a todas as outras
coisas é possível dar-se segurança, mas, por causa da morte, nós, homens,
habitamos todos uma cidade sem muralhas.”