A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Na Escola Pública...


           Sendo bem honesta, a última vez em que estive numa sala de aula de escola pública foi para dormir. Isso aconteceu em janeiro e fevereiro de 1996, quando estive em Maturéia/PB, fazendo uma espécie de projeto assistencial. Na época, a cidade dispunha de mais ou menos 80% de analfabetos e era sabido que entre os professores que ali lecionavam poucos haviam concluído o 1º.grau.

Antes disso fui aluna em três escolas públicas. Na primeira – EEPG “Leopoldo Gentil Jr” - fiz a primeira série com a professora Irene, a pessoa mais amorosa que já conheci em um ambiente escolar. Na segunda – EEPG “Adalgiza Moreira Pires”- fiz a segunda e parte da terceira série e foi onde a professora Maria Luiza recomendou aos meus pais que me colocassem numa escola particular, pois considerava uma “judiação” uma aluna como eu ser educada em escola pública. Na terceira – EEPSG “Maria Masiero”- fiz o terceiro ano médio após ter sido reprovada por faltas no Colégio Mackenzie que não compreendeu como razões atenuantes o fato de eu ter sido submetida a uma cirurgia por sinusite grave ou a morte de minha avó materna a quem éramos todos muito apegados.

Do período inicial, quando ainda pequena e sob o regime da ditadura militar, recordo de longas filas na entrada de todo dia, feitas diante de professoras elegantes e muito sérias, muito organizadas para entoarmos o hino nacional brasileiro e eventualmente outros hinos do Brasil de acordo com as datas festivas. Lembro também dos uniformes e depois do avental, da cartilha Caminho Suave, dos cadernos encapados de plástico xadrez  azul e branco, e da democrática fotinho na mesa e ao lado do globo terrestre de plástico que minha mãe ainda guarda, revelando ao mundo minha franja lisa e curta demais. Da segunda estada, só me lembro das agruras do período noturno, das muitas aulas vagas, do conteúdo esparso, pouca lição e dos muitos adolescentes em situação de risco que conviviam com outros que trabalhavam muito para ajudar em casa ou sustentar filhos gerados precocemente.

Esse ano enfim retornei para a escola pública, desta vez como professora eventual e aspirante à professora na cadeira de Letras (Português e Inglês). Minha primeira lembrança dessa aventura recente foi olfativa, quando entrei no pátio aspirei com alguma emoção o mesmo cheiro de quando era uma pequena de 6 anos: aquele mix de bolacha Maria e salsicha. Quando entrei nas salas de aula encontrei o mesmo quadro negro feito na parede com molduras de madeira, as mesmas carteiras antigas, o mesmo chão de cimento batido e nas janelas a mesmíssima cortina pesada cor de “burro quanto foge”. Não se tratava de nenhuma das escolas que eu havia frequentado, era outra, mas também era a mesma!

Quem me conhece sabe o que penso de regimes totalitários de qualquer tipo, mas sejamos óbvios e admitamos: A escola pública não evoluiu em absolutamente nenhum aspecto desde o começo de nossa jornada democrática, intuo que deliberadamente mantivemos o que já era péssimo – a saber, o espaço físico digno de um ambiente carcerário – e barbarizamos o resto.

A chamada “progressão continuada”, diabolice educacional que já dura bem mais de uma década e sem esperança de exorcismo, foi o golpe de misericórdia num sistema já agonizante pela ação (ou falta de) de uma classe de professores com salários humilhantes, completamente desinteressados, desesperados e mal preparados e pela presença constante e determinada das “famílias do tráfico”. Num olhar passageiro o que se nota é um depósito de crianças cada vez mais ignorantes e adoecidas onde cada parte assume seu papel num espetáculo circense, jurando haver uma escola.

Outra cicuta que vem exterminando o ensino público com grande competência é a estabilidade do funcionalismo. Professores e funcionários cujas licenças lendárias já são absorvidas pelo sistema com total naturalidade, classes que permanecem meses sem um ensino sistemático e sem nenhum conteúdo de matéria, substitutos que são instados a assumir classes e s depois são destituídos, isso no exato momento em que perdem o direito às férias e ao décimo terceiro. A ausência de monitoração e avaliação plena do trabalho contribui para o comodismo e total desinteresse em atualizações e melhorias, condenando a escola ao vazio de conhecimento e do orgulho em todos os níveis.

A falta de autoestima do docente se revela em total clareza num espírito de escravidão que paira na aceitação muda de políticas de ensino absurdas e em procedimentos ineficazes das delegacias de ensino, que se não são corruptas constituem-se nas entidades mais estúpidas do globo terrestre, realizando atribuições de aula que mais parecem sessões de bingo, sem a menor objetividade e com critérios irracionais de classificação. O desrespeito ao professor, à escola e ao aluno é nítido e viral!

A sorte me sorriu ao ser contratada por uma das melhores escolas públicas dessa região, unidade onde o dinheiro enviado pelo governo surpreendentemente tem sido suficiente para manter a escola, realizar melhorias e implantar projetos pioneiros, projetos esses que nenhuma outra nesta Delegacia de Ensino consegue realizar e tudo isso sem pedir ajuda para a comunidade. Talvez alguma mágica?

Sou a chamada “professora eventual” ou a já consagrada substituta (e pasmem, acabamos ganhando mais do que os professores efetivos, tamanha a demanda por nosso trabalho). Sem a menor paciência para jogar dominó ou conversa fora, decidi trabalhar com Produção Textual, que além de ser minha área favorita no ensino da língua ainda poderia ser útil como suporte ao trabalho das professoras de Português (elas que por enquanto ficaram felicíssimas com minha intenção) e oferecida sem prejuízo em aulas esporádicas. Através das redações e demais atividades sigo confirmando todo dia o já esperado – Crianças completamente analfabetas na quinta série (ou sexto ano, nessa nova nomenclatura despropositada que nos impuseram),  alunos de primeiro ano médio incapazes de formular uma frase inteira, textos redigidos inteiros sem nenhuma pontuação por alunos do nono ano (antiga oitava série),  gente que não sabe que o Chico Buarque não é personagem do Maurício de Souza, nunca ouviu falar de Monteiro Lobato e jamais ouvirá falar do Arcadismo uma vez que ele foi excluído do programa de Literatura.  Gente que passa tarde no “feicebuque” aprendendo novas piadas de “memes” – Claro, claro, a Era Digital! Da falta de sentido de se estudar versos decassílabos...

Meu primeiro acerto como professora não nasceu de alguma incrível estratégia didática (essas que ainda não aprendi, mas que provavelmente me serão ensinadas em Didática por uma professora do Mackenzie que é perfeita para ensinar isso, simplesmente porque adora o que faz), mas pela sorte e pela ingenuidade que me fizeram optar por algo já meio em desuso – Respeito.

Na primeira vez em que substitui um professor, cheguei na sala, me apresentei, expliquei que estava ali para que eles não ficassem sem aula e que o professor titular se ausentara por algum motivo importante. Expliquei que eu desejava aproveitar esse tempo fazendo algo que de fato pudesse ajuda-los. Expliquei o que era Produção de Textos, como isso poderia melhorar a capacidade de expressão deles, tanto escrita quanto falada, expliquei o que era expressão e porque era importante ser capaz de fazer isso bem, propus que sempre trabalhássemos nisso quando eu aparecesse e que isso seria legal, já que minha aula sempre viria de surpresa e perguntei se eles concordavam.

Naturalmente a adesão nem sempre foi imediata e unânime, isso não costuma acontecer assim nem mesmo em filmes de sessão da tarde (talvez para manter o suspense), mas acabei sendo procurada por uma das coordenadoras com algumas folhinhas nas mãos, veio dizendo que certos alunos tinham pedido a ela que entregassem aquela atividade para a “minha professora de produção textual” e que queria saber, com um sorriso algo engraçado no rosto, o que eu estava fazendo com eles.

Tem de tudo nesses primeiros textos, desde “hoje conheci uma moça que parece um anjo e se chama Danielli” até um “e para você um beijo, professora”. Alguns textos de surpreendente potencial e listas de palavras de alunos que ainda não sabem formular frases. O que ficou muito claro é que existe muito trabalho a ser feito, pouco contingente e tempo mais escasso ainda!

Desse início de trabalho, que para mim tem sabor de recomeço, fica a certeza de que lecionar é o complemento profissional certo que eu procurava para meu trabalho na clínica. Mais do que nunca no ambiente escolar o foco é terapêutico. O “paciente escola” sofre de um transtorno gravíssimo, destrutivo, demencial e galopante, mas tenho em mim que uma vez feito o diagnóstico e iniciada a ministração do medicamento certo a cura seria rápida e eficaz.

Tantas perguntas que não querem calar:

- Por que os professores se submetem a ser tratados como gado?

- Por que vendemos a alma da escola e com ela qualquer possibilidade de um trabalho excelente?

- Por que os alunos aceitam entrar e sair da escola sem aprender nada?

- Por que os pais aceitam que a escola seja apenas um depositário?

- Por que os professores, os alunos e as famílias aceitam que os políticos permaneçam destruindo um bem que lhes é garantido por lei – o acesso à educação?

O que mais se ouve é a inexistência de uma saída para o cancro que nasceu e cresce impiedoso no peito da Escola Pública, outros comentam que a crise na Educação é mundial, seja como for, ainda nutro esperança. Talvez o início possa se dar através de um pequeno, mas constante sopro de autoestima. O ser humano que se percebe sujeito não aceita menos do que lhe é devido. Tantos anos depois da abolição a escravatura parece reinar absoluta no espírito do brasileiro: escravo não reivindica, não reclama, não questiona, não desafia, não levanta, só se aquieta e oferece o lombo...também samba!