A pele que habito

A pele que habito

terça-feira, 31 de outubro de 2017

E nos 500 anos de Reforma Protestante...


...poderia escrever sobre Lutero e suas teses, sobre o quanto acho lindo o hino ‘Castelo Forte’ e o que ele significou na minha vida. Também poderia falar sobre todas as contribuições da cultura e da tradição protestante, que são inúmeras e de valor inestimável. Poderia talvez, fazer uma lista de outros grandes nomes da história da Igreja Reformada, como Calvino, John Knox, Zwinglio, John Wesley, Moody, Charles Spurgeon, William Carey, (...), até chegar aos meus queridos Dr. Shedd e Rev.Floyd, a quem tive a honra de conhecer pessoalmente aqui no Brasil. Existem tantos outros, alguns ainda vivos, incluindo meu próprio pai, que embora não seja famoso, é um homem obediente e perseverante na vida cristã e em seu ministério. Só que não sou especializada em História da Igreja e, apesar de gostar de ler sobre isso de vez em quando, realmente este assunto não domina as intenções da minha mente e/ou do meu coração.

...poderia também ficar discutindo mil pontos doutrinários em que protestantes e católicos discordam, ou em que protestantes históricos e pentecostais discordam, poderia até ser mais doméstica e comentar apenas os pontos em que as Igrejas Presbiterianas do Brasil, Independente e Conservadora discordam. Só que não sou teóloga, nem pastora, nem freira, nem mais professora de escola dominical (embora me convidem sempre para voltar a ser) e, embora goste de ler sobre isso de vez em quando, realmente o assunto não domina as preocupações da minha mente e do meu coração.
Decidi, portanto, escrever sobre algo que conheço e que me encanta: a vida das pessoas. No caso falarei da minha, sobre um aspecto importante dela, sobre a experiência de crescer e de ser educada dentro de uma tradição protestante reformada. Talvez você que é protestante também se identifique com várias coisas, talvez com nada. Talvez você que não é protestante não se identifique com nada, talvez com várias coisas. De qualquer forma falarei. Não para me gabar, para me lamentar ou para incitar brigas ou pedir reconciliações, mas apenas para contar como foi e como é, crescer num ambiente onde a Teologia e a Espiritualidade (ao menos como intenção) fazem parte do cardápio do dia.

A coisa em si já começou meio curiosa. Meu avô paterno era protestante, minha avó paterna católica. Meu pai já cresceu frequentando as duas igrejas e tendo que fazer lá dentro de si as comparações necessárias para um dia tomar uma decisão, que veio a seu tempo. Minha mãe era neta de católica, filha de pai agnóstico e mãe ‘meio-católica, meio-mulçumana’, sempre muito religiosa, foi até anjo de procissão e embora seja esposa de pastor, ativa na Sociedade Auxiliadora Feminina, ainda guarda sua foto de primeira comunhão.

Como toda criança de família católica, fui batizada por um padre. Como toda criança de família presbiteriana, meses depois fui batizada por um pastor presbiteriano. Carrego Cássia no nome, mas nunca soube nada sobre Santa Rita, exceto recentemente, quando também descobri que todas as Nossas Senhoras são a Virgem Maria...rs...

Não cresci em família falando mal de padres ou jurando vingança aos católicos. Apenas aprendi que existiam interpretações diferentes sobre as doutrinas bíblicas e que os protestantes não tinham um Papa ou algo parecido. Obviamente com a idade aprofundei minhas pesquisas sobre o tema, mas não falarei disso aqui.

Lembro-me de ir com meu pai em algumas de suas aulas no seminário quando era pouco mais que um bebê. Lembro-me dele brincando com a gente de casinha no quintal embaixo de tendas de lençol enquanto lia a Bíblia e estudava inúmeros livros de Teologia. Lembro-me de ficar copiando letrinhas de grego koinê e de hebraico e de criar códigos com elas para ninguém saber o que eu escrevia nos meus diários. Lembro-me de abrir o coração para Jesus aos 7 anos, enquanto o Rev. Jaziel Botelho pregava sobre a Arca de Noé, após ter pintando um quadro sobre o tema diante de toda a igreja, durante a liturgia do culto - Lembro-me também de atormentar meu pai meses sobre o que teria acontecido com os peixes no dilúvio.

Lembro-me de ser Maria em várias peças de Natal, vestida com um manto azul, segurando o bebê enquanto os três reis magos traziam seus presentes e os pastores cantavam ‘Glória a Deus nas maiores alturas’. Lembro-me de dormir com minhas irmãs em vigílias, acomodadas atrás de púlpitos e de bancos. Lembro-me de que os dois primeiros palavrões que ouvi na vida foram, um na classe de escola dominical e um durante uma reunião de oração...rs..

Lembro-me da história de Amy Carmichael que salvava crianças na Índia e de todas as Escolas Bíblicas de Férias, quando competíamos para ver quem havia decorado todos os versículos da semana. Lembro-me de frequentar a Escola Dominical de forma ininterrupta por mais de 30 anos, exceto nos meses de férias ou em alguma ausência justificada esporádica - histórias bíblicas, valores da vida cristã, doutrinas e até seitas e heresias me foram ensinados por lá, tudo devidamente adequado à faixa etária e, eventualmente, também ao sexo. Lá pelos 19 anos, de aluna virei professora e ensinei crianças, adolescentes e depois jovens, por bastante tempo.

Lembro-me de ter sempre gostado muito de sermões. Talvez pelo fato de ter ouvido meu pai muitas vezes, acabei associando esse momento do culto a algo próximo e familiar. Ficava encantada sempre que algo novo saia de um texto que eu já conhecia, a Bíblia parecia sempre viva, sempre cheia de mistérios a serem revelados. Aos 13 já fazia umas críticas virulentas e de muito bom senso. Meu pai sempre achava muito engraçado quando eu pegava erros teológicos ou doutrinários nos sermões de seminaristas ou de outros pastores, embora obviamente isso acontecesse só lá em casa, nunca na frente deles...rs...

Lembro-me de cantar muito e sempre: em corais infantis, em corais de adolescentes, em equipes de louvor e em corais de adultos (cantei tanto e tantas vezes que, a depender do hino ou do cântico, sei fazer soprano ou contralto...rs..)

Lembro-me das centenas de retiros e acampamentos de jovens dos quais participei. Lembro-me das palestras maravilhosas e dos lindíssimos cultos de fogueira (até hoje essas fogueiras me encantam e fazem meus olhos se encherem de lágrimas). Lembro-me das olimpíadas esportivas, dos intercâmbios entre igrejas, dos cultos e congressos missionários em que conhecíamos gente de todo mundo, pessoas que saíam de suas casas e famílias e enfrentavam tudo, inclusive perigos e barreiras políticas para pregar o Evangelho. Lembro-me muito do Rev. Almir e de sua esposa Angélica que trabalhavam na ‘cortina de ferro’ e do Rev. Ronaldo Lidório que pegou malária dezenas de vezes enquanto falava de Deus aos Komkombas - tribo que nunca nem tinha visto um homem branco pela frente. Lembro-me do trabalho lindo de sua esposa Rossana, que era enfermeira.

Lembro-me de dar aula para crianças em bairros muito pobres da periferia de São Paulo. Lembro-me de ensinar sobre a Trindade numa ponte de papelão grosso, estendida sobre um córrego, com medo das crianças caírem lá na água. Lembro-me da igreja que meu pai abriu em Vila Mara (e que existe até hoje), que ficava numa rua de lama e que os copinhos de Santa Ceia, depois de roubados, apareciam nas mãos das crianças da rua, que os usavam para construir castelinhos de barro.

Lembro-me de ir a um congresso de adolescentes onde, durante 5 dias , ouvimos o Rev. Jeremias Pereira, da 8ª Igreja de BH, por 3 horas durante a manhã e mais 3 durante a tarde...E NINGUÉM saia da igreja...E tínhamos de 12 a 17 anos...

Lembro-me de ler o Berkhof lá pelos 11 anos e de estudar espanhol para ler as Institutas do Calvino do meu pai (se elas fossem em francês, provavelmente eu teria estudado francês...rs..). Lembro-me de querer estudar inglês por causa da Confissão de Westminster e por causa de toda literatura inglesa que passei a descobrir quando fui estudar no Mackenzie e passei a desbravar a Biblioteca George Alexander ( o amor da minha vida na Universidade e a maior de todos os culpados pelo meu amor pela Literatura, eu fantasio colocar uma cama no último andar e morar nela para sempre...rs..). Da minha vida no Mackenzie, especialmente da época de escola e da faculdade de Psicologia, lembro da ABU, da equipe de louvor e do Coral da Capela, lembro do Rev. Antônio Carlos Menezes, nosso único e sensacional capelão (hoje em dia tem uns 12 e a gente nem sabe o nome deles...rs...) que era todo tatuado, inclusive com uma Nossa Senhora Aparecida no braço, porque tinha sido motoqueiro antes de se converter. Adorava ouvir seus sermões! Hoje em dia não canto mais no coral da Capela e mal entro nela, mas continuo achando um cantinho muito lindo...

Lembro-me da excessiva preocupação e austeridade do meu pai quando entramos na adolescência (três meninas....poor man..rs..) e de ter nas mãos exemplares de livros do Jaime Kemp sobre namoro e sobre sexo (Não recomendo muito, não...kkk..). Lembro-me de um em especial que recomendava cronometrar o beijo para garantir um ‘namoro puro’ e confesso nunca ter me lembrado de olhar para o relógio quando envolvida com o fato em si...Coisas da vida...

Lembro-me de conhecer muita gente e de ter sempre a casa cheia. Também de ter muitos pretendentes, a maioria seminaristas, provavelmente por considerarem que minha experiência prévia como filha de pastor seria útil aos seus ministérios ou talvez retomando a cultura judaica em que sacerdote só se casa com filha de sacerdote...rs...Lembro-me de meninos pedindo a gente em namoro para o meu pai e do mesmo fazer o guri aguardar muuuuito tempo por uma resposta satisfatória. Lembro-me de meninos indo pedir oração por mim em reuniões de oração quando eu terminava o namoro com eles...rs...

Lembro-me de ter feito um projeto missionário no interior do nordeste e de ver e ouvir coisas que só quem está no campo pode experimentar - de cabras sendo curadas ao milagre da alfabetização de toda uma cidade, precisaria de outro texto para contar. De verdade foi só lá que o fato de que o Espírito Santo sopra onde bem quer saiu da teoria para mim. Voltei no avião chorando muito, sabia que nunca mais poderia ser tão útil quanto fui naquele lugar, durante aqueles meses.

Lembro-me de ter sido a primeira presidente mulher da União de Jovens Presbiterianos de uma igreja centenária (sinal dos tempos...rs..) e também de ter feito uma palestra lá sobre sexualidade, diante de pastores e presbíteros, quando nem sequer havia começado a ter uma vida sexual. Lembro-me de começar minha carreira como psicóloga clínica atendendo principalmente pessoas das igrejas e de começar a compreender que a vida protegida em que fui criada podia ter uma beleza imensa em sua candura, mas não tinha me preparado para a realidade de um mundo vazio, violento, confuso e feio.

Lembro-me de me mudar para o Sul e de encontrar uma igreja presbiteriana fraca e esquisita (não sei como estão as coisas hoje). Lembro-me de ficar muito encantada e edificada com a Igreja Luterana que nunca tinha sequer conhecido aqui. Lembro-me de sentir a amplitude de TODAS as coisas aumentar conforme minha experiência inter-denominacional acontecia.

Lembro-me de enfrentar um divórcio e de ver minha vida virar do avesso. Também de comprovar na pele o que ouvia na teoria: o divórcio é algo absurdamente traumático e doloroso. Ele desestrutura sua vida completamente, te deixa completamente à deriva. Quando você olha para frente, para o seu futuro, não consegue ver NADA. Quando você olha para trás, passa a questionar todas as coisas que de alguma forma te levaram àquele lugar de terror. Lembro-me de viver aos 30 anos outra adolescência, de ter que olhar para dentro de mim e nomear tudo de novo, algumas coisas pela primeira vez.

Embora eu jamais recomende isso para ninguém, sei que precisei dessa experiência para saber quem eu era e, principalmente, do que era feita a minha fé, a minha minúscula e defeituosa fé, que eu cresci achando que era forte e bem resolvida.

Lembro-me de estar chorando numa madrugada, uma das muitas em que chorei nessa época, e, depois de chorar até cansar e de brigar mais uma vez com Deus, que, supostamente, tinha permitido toda aquela confusão onde eu tinha me metido e que ainda se dava ao luxo de não me responder nada, desisti.... Magérrima, doente, com dificuldades para comer e dormir, no auge de um quadro depressivo miserável, me sentindo completamente sozinha e constrangida, sendo difamada por todo lado, sem amigos, sem irmãos da igreja (ninguém de igreja costuma ser muito generoso com as mulheres nos casos de divórcio, vocês sabem...), sem trabalho, sem casa e contando apenas com o apoio da minha família (que nunca me abandonou), me vi esgotada ao extremo, daquele esgotamento que faz todo corpo relaxar indefeso, a dor era insuportável, eu estava sendo esmagada por dentro e por fora. Reconheci então que tinha chegado ao meu limite, só silenciei a mente e o coração, fechei os olhos e esperei, esperei nem sei pelo quê....

O que aconteceu naquele instante vai muito além do que qualquer palavra minha possa contar, o que me tocou, o que eu vi e ouvi, não tem como ser explicado. Apenas me peguei cantando baixinho:  ‘Louvado seja, Senhor, Teu nome, entronizado entre as nações./ Exaltarei a ti, Senhor, pelo que Tu és, eu te adorarei/ Recebe a minha adoração que é fruto da Tua Graça em mim/ e do Teu Amor que restaura em mim/ o meu amor, por ti, Jesus./ Engrandecerei e exaltarei Teu Nome/ Diante dos Reis e dos Poderosos/ Eu louvarei a ti, Senhor.’ Cântico este que eu não cantava fazia muitos anos.

Depois desta noite minha vida começou de novo.

Não vou mentir a vocês e dizer que ficou fácil frequentar igrejas, que não vejo falhas, hipocrisias ou que não me chateiam as fofocas, as ambiguidades, as burrices, as neuroses e as crises das comunidades.  Mas por outro lado, quem sou eu para criticar qualquer um, né? Eu, este minúsculo vasinho complicado, confuso e frágil.

Não vou esconder que me irritam as respostas fáceis, a maneira como as pessoas usam a religião como muletas, como o cristianismo tem sido absurdamente mal interpretado por muitos e mal utilizado por outros tantos. Mas e os meus próprios equívocos? E as vezes em que eu usei e uso a fé como muletas para fugir de mim mesma e da vida?

Não vou negar que tenho dúvidas teológicas, que vivo numa paquera muito sincera com igrejas católicas e até ortodoxas, que aprecio as missas e o canto gregoriano, que fico embasbacada com a arte sacra, encantada com as histórias dos santos, comovida com velas acesas e com a tradição. Por outro lado, como negaria que as verdades mais profundas da minha história com Deus foram alicerçadas dentro de Igrejas Protestantes, através da Bíblia, dos cânticos e dos exemplos de tantos cristãos fiéis e sinceros que conheci no decorrer do caminho?

Se no momento mais crítico da minha existência, não havia templo, doutrina, irmãos na fé, sacramentos ou qualquer outra coisa que exista em nossas rotinas religiosas, mas apenas a presença inefável d’Aquele a quem todos nós invocamos, por que eu precisaria escolher??

Hoje, no dia em que se comemora os 500 anos da Reforma Protestante, minha celebração e meu exercício está em observar as senhorinhas octagenárias das igrejas cristãs. Poucas delas se ocupam de tratados teológicos ou cismas. Eu as vejo SEMPRE na prática da caridade e da oração, algumas com rosários nas mãos, outras com suas Bíblias, todas invocando a Cristo, cada uma a seu modo, pedindo por suas famílias, por seus filhos, por suas comunidades, raramente por si mesmas, exceto se vão pedir perdão e aperfeiçoamento. Essas velhinhas, provavelmente, são o motivo pelo qual ainda estamos aqui! Elas são o que eu quero ser. Lembro particularmente da oração da minha nonna Bruna, católica que se tornou protestante para poder frequentar a igreja do filho, quando da época da doença grave do meu pai: “Tira os anos da minha vida, Senhor, e dá ao meu filho Wanderley. Ele é um bom homem, um bom filho, um bom marido e um bom pastor. Eu já vivi bastante, Senhor. Me leva no lugar dele.”

De forma bastante resumida, quando eu penso em igreja e em cristianismo, é disso que me lembro! Desse tipo de vida que é imenso em experiências reais e relevantes. Peço perdão aos mais dogmáticos pelo mau jeito, mas pra mim, o resto é purpurina...



Ps: Aos não-cristãos que talvez se perguntem se eu gostaria de ter tido uma vida diferente, com outro tipo de experiência e conhecimento, talvez com maior liberdade e diversidade, devo confessar que já refleti muito sobre isso também no decorrer do tempo. Minha resposta, olhando minha jornada e o mundo em que vivemos hoje, é que apesar da disciplina mais rígida e de algum despreparo para a vida aí fora (reconheço que fui bastante super protegida), não existe nada em crescer no meio cristão que tenha me prejudicado, me castrado ou reprimido, muito pelo contrário. Tive oportunidades mil para adquirir conhecimento (com total liberdade), conhecer pessoas interessantes, me divertir e desenvolver talentos, habilidades humanas e virtudes. Qualquer um que cresceu em igrejas e negue isso, não está enxergando as coisas corretamente ou teve muito azar! 

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Santander, Cura Gay, Facebook e o Cachorro Paralítico



“No amor não há medo antes o perfeito
amor lança fora o medo; porque o medo envolve castigo;
e quem tem medo não está aperfeiçoado no amor.”
I João 4.18


                Todos os dias, sem exceção, quando volto do trabalho (caminhando, como sempre sonhei), em determinada esquina, cruzo com um cachorro paralítico. Deitado na calçada, provavelmente colocado ali por seu cuidador, talvez para tomar sol, o cão se contorce e late sem parar, latido desesperado e indiferenciado, latido de agonia, resposta de medo.

                Foi só depois de vários encontros que consegui conjecturar a razão do latido histérico. Paralisado, o cão não consegue se mover e nem ter uma visão completa daquilo que o contorna. Parado e indefeso, numa esquina de rua movimentada, recebe um sem número de estímulos ambientais: pessoas passando, carros e buzinas frequentes, gritos de crianças brincando e o metrô que passa a cada 3 minutos, praticamente ao seu lado. Uma vez que a maioria dessas coisas é apenas ouvida e sentida, não vista ou compreendida, já que o cão não consegue se virar para identificar a fonte dos ruídos, ele late para tudo, na tentativa frágil de se proteger de algum ataque real. Para o espectador voluntário é um quadro de agonia. Independente da boa intenção de quem o coloca ali - e de boas intenções, o inferno está cheio - esse período na calçada, para aquele cachorro paralítico, é uma condenação diária ao pavor.

                Estar nas redes sociais, especialmente no Facebook, é ser um cachorro paralítico colocado na calçada. Nossa paralisia pode ser preguiça ou, simplesmente, o medo. Latimos para tudo, com intensa violência, exatamente por não saber, de fato e de verdade, o que nos ameaça. No universo das redes sociais, latir é sobreviver. No Facebook, latir é existir. Se você não late, desaparece. Se você não late, não tem ‘amigos’. Na realidade você está mais sozinho, abusado e indefeso do que nunca, mesmo que a ‘intenção’ seja boa.

                Lembro até hoje como começou minha ‘vida’ de rede social. Convidada por uma amiga que hoje nem sei que fim levou, fui pega na armadilha da curiosidade neurótica pela vida alheia (quem nunca?) e quase enlouqueci de tristeza ao assistir de camarote o ‘namoro’ de um cara de quem eu gostava muito com uma piriguete F3 (fútil, fake e fácil - categoria favorita do homem pós-moderno). Lembro que na época só uma coisa fez sentido para mim: Se esse é o tipo de mulher que esse cara gosta, faz todo sentido que eu perca o páreo. Aliás, provavelmente, nunca entrei na corrida..kkkk...

                Voltando às redes: Manipulação? Sempre. As redes sociais viraram um meio fácil de controle de sentimento, de pensamento, de formação (ou seria melhor de-formação?) ideológica e de promoção de medos.  Após superar a neurose inicial, me vi cativa de discussões as mais variadas - religiosas, políticas, existenciais - nenhuma produtiva e todas geradoras de agressões verbais, de medos.
              
                Ao expor sua vida, suas crenças e suas ideias de forma pública e nominal, vc vai sendo ‘categorizado’ e a partir deste rótulo, vai sendo julgado, excluído, incluído e transformado em presa fácil (consumidor?) deste ou daquele ‘formador de opinião’. No geral, lembra muito a mesa julgadora do segundo episódio de Black Mirror, onde para se livrar das pedaladas eternas, vc luta para entrar para este ou para aquele canal e, no fim, o que parece um caminho de libertação é o grand finale do seu processo de paralisia (objetificação).
              
              Nas redes, todas as principais áreas da vida humana são trabalhadas de forma a ‘prender’ suas vítimas: sexo, dinheiro, política, religião e, principalmente, os afetos. Quanto ‘bem’ faz para a autoestima um curtir ou um coração na nossa nova foto de perfil??? O nome ‘rede’ é adequadíssimo! Uma vez enredado, muito difícil de sair. Fantasias de uma vida de ostracismo e alienação perseguem todo facebuquiano insatisfeito: se eu sair, perderei meus ‘amigos’, perderei as ‘notícias’, terei que ocupar meu tempo com algo útil de fato, não serei mais visto, serei esquecido. Fica a pergunta: Das pessoas com quem vc interage de alguma forma nas redes, quantas DE FATO estão na sua vida?

                As redes dispõem de gurus para todos os tipos de gente: esquerdistas, direitistas, centristas, crentes, ateus, bruxos, gays, heteros, machistas, feministas, anarquistas, niilistas, cultos, incultos, católicos e protestantes... Substitutas das igrejas e dos partidos, têm colocado gente a brigar nas telinhas e nas ruas com mais rapidez e facilidade do que qualquer causa legítima já foi capaz algum dia.

                Semana passado foi a vez da celeuma da exposição ‘Queer’ no Santander de Porto Alegre. Poucas pessoas de fato se deram ao trabalho de pesquisar a forma e origem das obras questionadas. Para os da ala progressista, bastou a sigla LGBT para legitimar a exposição, para os conservadores bastou a sigla LGBT para legitimar a proibição. A desculpa fácil e o ‘bom mocismo’ frouxo dos defensores da ‘pseudo-liberdade de expressão’ já não convencem mais porque transformaram o tema numa desculpa para mau caráter e falta de educação e com isso o comprometeram, abrindo espaço para novos totalitarismos.

                 A verdade sobre a exposição do Santander? Qualquer gay ou lésbica, que não seja um pervertido e que tenha o mínimo de bom senso (e existem pervertidos e gente sem noção tanto entre homossexuais quanto entre heterossexuais) que der uma boa olhada em algumas daquelas obras, vai ser o primeiro a querer proibir qualquer ligação entre a exposição e sua orientação sexual. Só que bom senso não gera público. Bom senso não converte discípulos. Bom senso não garante consumidores. Bom senso está fora de moda. Bom sendo não cria rótulos. Bom sendo não dá tesão.

                Essa semana foi a vez da ‘Cura Gay’. Pataquada criada, segundo a mídia, por discípulos do Silas Malafaya, que estaria construindo centros de “reorientação sexual” e pretende conseguir verba governamental para a manutenção dessas ‘clínicas’. Não sei se isso é verdade. Só sei que não confio em líderes religiosos milionários. Para mim os protestantes estão sendo constrangidos por essa gente dia após dia. Aquilo que nos ensinaram como a causa da Reforma (a simonia da Igreja Católica com a venda de indulgências e etc...) acaba virando piada sem graça diante de um Templo de Salomão da vida. É nojento, ou em inglês, disgusting...Acho perfeita essa palavra para seu significado!

                O fato é que bastou uma notícia enviesada e os ‘exércitos’ das redes se puseram em marcha. A ignorância generalizada de ambos os lados da disputa foi assustadora. Milhares de ‘cães paralíticos’ ladrando ensandecidos, opinando sem base, sem pesquisa, sem conhecimento de causa. A mim, de todas as coisas bizarras dessa semana de batalha verbal em torno deste tema e é incrível como toda polarização é burra, o que mais chocou foi a necessidade patológica de controle da vida alheia: Quero definir o que o outro é, o que ele pensa, o que ele faz, o que ele sente, com quem ele dorme, como ele vive, no fim, parece se tratar sempre do que ele consome.

                De onde vem essa nossa necessidade de vigiar, manipular, controlar e punir o outro? E aqui não há intenção de apologia ao Foucault, embora, ele tenha se feito perguntas parecidas. Será que é uma espécie de compensação pelo fato de sermos vigiados, manipulados, controlados e punidos o tempo todo? Nem somos capazes de identificar quando foi que a homossexualidade passou a fazer parte da história humana, o mesmo se aplica à estupidez e todos os desvios: de caráter, de conduta, de relação. Somos tolerantes com inúmeras das falhas humanas, mesmo as mais perniciosas e principalmente as que também são nossas próprias, isso quando as admitimos, mas a sexualidade do outro parece sempre a nos dar medo, talvez porque o outro faz o que eu gostaria de estar fazendo? Essa sempre me pareceu uma explicação plausível para a obsessão de alguns pelo fazer sexual e seus desmandos. Enfim...

              Chega um ponto nesta existência nas redes sociais em que, se não postarmos fotos ou verbalizações do que sentimos, pensamos ou vivemos, é como se não existíssemos. O olhar do outro se torna o nosso único canal de realização. Sou visto, logo existo. O que num primeiro momento parece uma vaidade imensa e um narcisismo (no sentido filosófico, não psicanalítico) explícito, acaba por se mostrar uma impossibilidade de olhar-se, de reconhecer-se, de valorizar-se, de ser sujeito, indivíduo. Isso certamente parece paradoxal numa cultura conhecida por ser individualista, mas será que ela o é de fato? Se para reconhecer-me indivíduo preciso do aval constante de um outro, que inclusive pode ser e, cada vez mais é, um outro coletivo, onde está a individualização, ou no pensar junguiano, a INDIVIDUAÇÃO? Parece que o cão paralítico jamais será deixado na frente de um espelho, a menos que seja baço. Temos medo de ser e reconhecer quem somos, talvez porque no íntimo tememos não ser nada.

              Leonidas Donskis, no livro Cegueira Moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida, escrito em parceria com Zygmunt Bauman, diz que nossa época é caracterizada pelo medo. De alguma forma desenvolvemos uma ‘cultura do medo’, demos poder a ela e a tornamos global. “Nossa era de autorrevelação, fixada no sensacionalismo barato, nos escândalos políticos, nos reality shows e em outras formas de autoexposição em troca da atenção do público e da fama, valoriza incomparavelmente mais o pânico moral e os cenários apocalípticos que a abordagem equilibrada, a ironia leve ou a modéstia.” (p.115)

                 O pano de fundo dessa tendência é o medo avassalador de desestruturação ou de ser quem se é - apenas quem se é. O medo da desimportância, de evaporar no ar sem deixar vestígios de visibilidade, de presença, de ter uma vida anônima e própria, distante da mídia, da TV e das redes sociais, o que seria o mesmo que se tornar uma ‘não entidade’, um ‘não eu’, um ‘não existente’.

              O maior medo da Modernidade é notícia requentada. Previsões sobre o final da cultura ocidental, existem desde as 2 guerras mundiais, sendo retomadas na Grande Depressão Americana, na ascensão das ditaduras totalitárias e sendo sistematicamente ressuscitadas a cada nova barbárie explicitada. Ultimamente é quase regra prever o colapso da Europa, seja pela onda de migrantes e refugiados, seja pelos ataques terroristas e ameaças islâmicas diretas ao legado do cristianismo e a nossos direitos e liberdades individuais.

                “O que foi percebido pelo perspicaz, embora sinistro e perigoso, filósofo da cultura Oswald Spengler como negação anunciada e ruptura ainda não declarada de um grande princípio unificador - o princípio claramente defendido por trás de Giotto, Masaccio, Leonardo, Rafael, Hals, Rembrant, Vermeer, Bach, Mozart e Beethoven - é proclamado pelas novas Cassandras da internet e do Facebook como uma investida dos novos visigodos.” (p.116)

                O que o pensador austríaco Egon Friedell via como profunda crise da alma europeia, nossas Cassandras compreendem como mera perda de poder, domínio e prestígio. Com cada novo fenômeno, novos surtos de pânico moral e reações exageradas ganham imenso espaço e vão reconfigurando a compreensão de vida e de mundo de cada ‘cão paralítico’. Situações como a da transexualidade, por exemplo, estatisticamente de ocorrência raríssima, passa a ser concebida como comum e frequente, passível de ser encontrada em toda esquina e, por isso, exigindo uma perspectiva coletiva e generalista - vira dilema urgente e unânime que se torna prioridade de todos e questão de ‘vida ou morte’ no esquema de rotulação da mídia. Você é simpatizante ou homofóbico? Olavete ou marxista? Feminista ou misógino? Pró-escolha ou pró-vida? Xenófobo? Pedófilo? Progressista? Conservador? Católico? Protestante? Batuqueiro? Atriz? Jardineiro? Já dizia Cristo que uma casa dividida não subsiste sobre si mesma. Podemos facilmente identificar aqui o processo de consolidação de uma espécie de medo controlado e domesticado bastante específico.

 “...o medo se tornou desde então parte da cultura popular, nutrindo nossa imaginação perturbada e apocalíptica: terremotos, tsunamis, outros desastres naturais e crimes de guerra deixaram de se situar num plano da realidade. Agora estão conosco o tempo todo, alimentando nossa mídia sensacionalista e privando-nos do doce sonho de que haja em algum lugar (ou pelo menos deveria haver) uma ilha distante onde pudéssemos nos sentir absolutamente seguros e felizes.” (p.117)

              O medo é multifacetado e sempre mascarado. O medo pode falar a linguagem da experiência íntima e existencial e se olharmos bem, veremos que estamos no controle de amplos segmentos do medo organizado: filmes e contos de terror, parte insubstituível do nosso entretenimento; manchetes de jornais, discussões na mídia, nas universidades, no bar da esquina.
“Não temos exatamente medo, mas o temos. Tenho medo, logo existo.” (.117)
          
           O medo é SEMPRE alimento do ódio. O medo é fluente na língua da incerteza, da insegurança e da falta de proteção que nossa época nos fornece em abundância. A factível proliferação das teorias conspiratórias e abordagens dinâmicas, embora simplistas, originadas na União Européia, mas que já nos assolam até aqui na América Latina, nos faz lembrar como a vida pode ser difícil ou até insustentável na dúvida, na incerteza e no medo constante. Como viver em paz, como seguir educando nossas crianças, fazendo planos, amando as pessoas, crescendo nas nossas buscas íntimas e espirituais, se todo dia novos casos Santander e ‘Cura Gay’ entulham nossas redes sociais e, portanto, nossos olhos e mentes, nos fazendo latir em desespero, perdendo tempo, amigos e tranquilidade? Todos verdadeiramente instados pelas melhores ganas de proteção de princípios e valores. Todos paralisados pelo medo da ‘não existência’. Cada segundo perdido em causas fictícias pode significar um sonho roubado dessa nossa curta e sofrida vida terrestre. Quanta gente conheço que vendeu a vida por uma causa fabricada na mente de ‘mentores’ psicopatizados?

“Houve uma época em que nossa cultura racionalista costumava consolar as pessoas sugerindo que a incerteza era apenas uma pausa temporária antes da chegada de uma nova teoria plausível ou explicação abrangente. Agora temos que aprender a viver com um permanente senso de incerteza. O que chega como inspiração a um filósofo ou artista pode se tornar uma calamidade para pessoas comuns, temendo que suas vidas sejam prejudicadas ou desperdiçadas. O problema é que com isso vem um político[1] trapaceiro que promete resolver a questão e afastar todos os nossos medos e descontentamentos. Assim, o medo se torna uma mercadoria...” (p.117)

A cultura do medo produz a política do medo. A política do medo nos leva a acolher valores absurdos, a ceder diante de dominação de todo tipo, a agir em desconformidade com tudo em que acreditamos, inclusive de forma consciente, simplesmente para que exista uma sensação de segurança, mesmo que falsa. Compramos facilmente causas, nos infantilizamos diante de mentores manipuladores, nos agregamos a partidos dos mais diversos, seguimos crenças que não nos dizem respeito, simplesmente para que exista uma sensação de segurança, mesmo que falsa. Doamos anos e anos de nossas vidas, engolimos violência de todo gênero, aceitamos nos fazer de cegos diante das evidências mais explícitas, simplesmente para que exista uma sensação de segurança, mesmo que falsa. Bizarrices como o Nazismo e o Comunismo não juntaram tantas pessoas, muitas das quais inteligentes e bem intencionadas, por nada.

        Embora o medo faça parte da condição humana, dada sua fragilidade intrínseca, foi exatamente a percepção e compreensão da brevidade inegociável da vida que instigou o homem à ação e fez sua imaginação voar. Essa percepção transformou o homem num ser cultural. O motor da história humana foi sempre a necessidade de preencher o abismo que separa transitoriedade e eterno, finito e infinito, vida mortal e imortalidade - impulso de capacitar os mortais para imprimir na eternidade uma presença contínua, deixar uma marca da nossa visita, ainda que breve.

      Nossa geração, cativa de uma obsessão pela segurança, muito maior que a de qualquer outra época, mesmo a dos períodos mais sangrentos e inseguros da história, tem sido vítima do efeito direto dessa neurose - o rápido crescimento da sensação de insegurança, com todos os seus acompanhantes: pânico, ansiedade, hostilidade, agressão, violência e o esvaziamento compulsório dos impulsos morais. Coisas como ‘fazer justiça com as próprias mãos’, ‘olho por olho, dente por dente’, ‘nós ou eles’ vão se tornando cada vez mais plausíveis e as ‘redes sociais’ demonstram isso todos os dias, claramente. A fúria contida nos discursos gerados cada vez que um episódio ‘Santander’ ou ‘Cura Gay’ aparece assusta qualquer pessoa de bom senso.

       Para Bauman, a política do medo manipula os três medos básicos da nossa geração - Medo da ignorância frente ao nosso destino, medo da impotência frente ao infortúnio e o medo da humilhação (espécie de derivado das outras duas): “Ameaça apavorante à nossa autoestima e autoconfiança quando se revela que não fizemos tudo que poderia ser feito, que nossa própria desatenção aos sinais, nossa indevida procrastinação, preguiça ou falta de vontade são em grande parte responsáveis pela devastação causada pelo infortúnio.” (p.118)

       A principal ação das ‘redes sociais’ em nossas vidas talvez esteja exatamente nessa atenuação da realidade sobre nós mesmos. Convivendo, em geral, com pessoas que nos apreciam, nos ‘curtem’, concordam com nossas percepções de mundo e impressões, somos constantemente reforçados, espécie de celebridade instantânea. Mesmo nas discussões mais acaloradas, sempre surgem seguidores que nos apoiam, que nos ‘compreendem’, que nos ‘reestruturam’. Seja verdade ou não aquilo que posto em meu mural, a aceitação constante me convence do personagem que escolho exibir. O espelho baço em frente ao cachorro paralítico é o outro, que também não é real, mas um personagem que se exibe. O resultado disso é a ignorância de si mesmo e do outro, afetos falsos, fabricados e curtos, massagens no ego que duram segundos, incapazes de extinguir a sensação de solidão e o vazio existencial profundos onde estamos nos metendo. Facebook é nosso crack existencial: barato, de ação rápida e insuficiente, de vício instantâneo e extremamente destrutivo.

Se nos fosse oferecida a possibilidade de uma existência mais real, nós a escolheríamos?

Estamos preparados para a pílula de Morpheus?[2]


“Eu só posso lhe mostrar a porta. Você tem que atravessá-la.”






[1] Leia-se também mentores, líderes religiosos, terapeutas, amores, vícios, qualquer ‘maquiador’ da realidade, até mesmo uma rede social.
[2] Matrix

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Gatos...


 

O homem gostaria de ser peixe ou pássaro, a serpente gostaria de ter asas, o cão é um leão confuso (...) mas o gato quer ser somente gato, e todo gato é um puro gato desde o bigode ao rabo.

Pablo Neruda

 

         Já me acostumei à expressão chocada da maioria das pessoas quando descobrem que vivo com 5 gatos. Por conta desta peculiaridade da minha existência estou sempre na berlinda dos psicólogos amadores, teólogos aspirantes, parapsicólogos de horas vagas, filósofos de botequim, mexeriqueiros de rua e palpiteiros de profissão. Sou rotulada de maluca-acumuladora, solteirona-carente, bruxa-protestante e outras tantas alcunhas, algumas mais dramáticas que outras, a maioria não muito lisonjeiras, mas todas igualmente do âmbito do insólito, do selvagem, do ‘heimlich’. Tudo isso porque entre eu e os bichanos existe essa cumplicidade absoluta, essa compreensão mútua, esse afeto recíproco e, porque, muitas e muitas vezes, me sinto muito mais confortável entre eles do que entre pessoas. Acho sempre um pouco espantosa a forma fácil como se ‘compreende’ pessoas por uma ou duas impressões. Eu, que sou profissional de saúde mental, acho sempre tão difícil fechar a Gestalt de um indivíduo...

         Certa feita fui questionada com ênfase se poderia viver sem gatos, tudo isso dentro do contexto de acusações costumeiro, em que o fato de ser dona de gatos parece definir o fato de não ter me casado de novo...(...rs..)...Refleti um pouco, procurei ouvir a voz interna que todos carregam, mas poucos ousam escutar, analisei minha relação com os felinos e respondi: - Sim, poderia, mas não gostaria nem um pouco...

         Estes dias fui ao cinema com amigas generosas o suficiente para me acompanhar em um documentário da diretora turca Ceyda Torun, sobre os gatos de Istambul. O filme, além de trazer várias qualidades do ponto de vista técnico, como bela fotografia, originalidade de abordagem e enquadramentos, escolhas temáticas divertidas e tocantes, oferece ao expectador uma gama de personagens para lá de interessante. Istambul, cidade famosa por sua beleza, é também reconhecida como espécie de paraíso de gatos. Ali, banhada por um mediterrâneo de verde indizível, repleta de prédios antigos e novos, povoada por pessoas muito diferentes, mas muito parecidas conosco, a cidade acolhe talvez milhares de gatos, de diferentes pelagens, tamanhos, raças e temperamentos. Cada ser humano que comenta detalhes de sua convivência com os gatos acaba por falar de si mesmo, num espelhamento próprio que vai desde a velhinha acumuladora e o homem depressivo, ao pescador do ‘milagre’ e o dono de restaurante prático.

Na tela iam desfilando diante de meus olhos encantados gatos, gatinhos e gatões - lindos, não tão lindos, elegantes, desleixados, amantes, dominadores, curiosos, comilões, carinhosos, preguiçosos, educados e folgados – e dentro de mim crescia o prazer por me sentir compreendida, por descobrir que do outro lado do mundo, outras pessoas também reconhecem essa conexão inusitada, privilegiada e mística que homens e animais são capazes de desenvolver entre si e que, de certa forma, pode abrir em nós um terceiro olho, responsável por nos sussurrar mistérios da natureza, jamais reconhecidos pela racionalidade humana.

         É fato que o homem/mulher que nunca conseguiu se abrir ao amor por um animal permanece ignorante de um conhecimento único e antigo, primordial e imenso, canal de intuição e instinto que outrora nos era familiar, mas que o ‘progresso’ silenciou.

         Ao contrário do que muitos pensam, não que eu veja nisso algum problema, na verdade não foram traumas, decepções ou carências que me levaram a essa aproximação, eu sempre gostei de bichos!

         Meu primeiro animal de estimação sequer existiu de fato. Lembro-me de tudo dele: Fox paulistinha, não muito jovem e um pouco gorducho. Lembro que tinha certa dificuldade para correr atrás de mim no quintal. Lembro que sua tigela era prateada e que morava na casa da minha avó Bruna. Lembro que seu nome era Bilú, que comia salsicha e arroz, que deitava com ele no chão do quintal em dias quentes. Lembro de tudo dele, exceto de como morreu. Um dia, já adulta e vivendo em outro estado, pensando em ter um bicho de estimação, duvidosa se preferia cães ou gatos, pensei em Bilú e me dei conta que não sabia como tinha sido o fim dos seus dias. Liguei para minha avó que muito surpresa não sabia de nenhum cachorro, segundo ela nunca tinha tido cães na vida, ainda mais na casa do Tatuapé. Atordoada, liguei para toda a família, meus pais, tias, primos, qualquer um que pudesse ter a mais vaga lembrança deste meu primeiro bicho de estimação. Ninguém se lembrava dele. Só eu!

         Já mais velha, vivendo com meus pais e irmãs numa casa com quintal, adotei uma gata branca, batizada Inga Priscila. Naquele tempo, ainda estreante nessa coisa de ter bichos, não me dei conta de que a gata crescia e com ela outras necessidades. Fiz meu pai subir numa árvore de terno um dia, quando aos prantos percebi a gatinha no topo, desesperada e sem conseguir descer. Meses depois, naquilo que parece ter sido seu grito de liberdade e sexualidade, Inga entrou no cio e fugiu com os gatos da região. Nunca mais a vimos e diante de uma criança magoadíssima, meus pais optaram por um filhote de cão, que ao menos não poderia escalar muros.

         Ciça Priscila (não me peçam explicações para este segundo nome, nenhuma de nós nunca soube explicar) escolheu os pés da minha irmã do meio quando fomos visitar sua casa e decidir entre os dez filhotes de uma simpática vira-latas. A cor de mel de seus olhos amáveis definiu a situação e os 15 anos vividos conosco foram simplesmente incríveis, histórias como sua mania de esconder-se cobrindo apenas a cara ou o dia que me salvou da surra de um assaltante na porta de casa, entre mil outras, só aumentaram sua lenda pessoal. Quando morreu, vítima de um câncer no estômago que a atravessava de dor, eu que já vivia fora, chorei como se tivesse 9 anos outra vez. Até hoje é lembrada em patamar de igualdade com qualquer outro alguém amado da família que nos deixou.

         Embora eu discorde completamente do papa Inocêncio VIII que, no século XV, incluiu os gatos pretos na lista de seres hereges perseguidos pela Inquisição, associando-os à práticas de magia negra e bruxaria, não posso negar que Meg, a gata preta de minha tia Elza, possuía lá suas peculiaridades. Preta como azeviche, assim como meu Eddie, grande e forte, dona de enormes olhos amarelos, nunca foi a rainha da simpatia, embora sempre dormisse nos pés da minha cama quando eu estava em sua casa. Mãe de 4 filhotes fofos - um dos quais sobrevivente de morte por congelamento, após meu primo enfiá-lo por horas dentro do freezer - era ciumenta, protetora como uma leoa e muito voluntariosa. Aos 14 anos, já meio grisalha e frágil, perdeu quase toda pelagem e demos por certo que seus dias estavam por terminar, mas magicamente recobrou todos os pêlos, novamente pretos retintos e viveu até pouco menos de 23 anos, feito notável na comunidade felina.

         Apaixonada por ciências na infância, sobretudo Biologia, tive formigas, observei pacientemente a metamorfose das lagartas e, de longe, o tecer de teias de aranhas domésticas e os hábitos das lagartixas. De forma ousada, capturei alguns girinos e aguardei sua transformação, levando-os até o lago quando estavam próximos de se tornar sapos adultos (Eca, nojento!)

         Por influência do meu avô, que adorava criar passarinhos, acabei adotando um casal de maritacas, batizados de Jove e Juma, por conta da novela ‘Pantanal’ (um verdadeiro frisson em casa, quase tão louvada quanto o Burgertime, aquele joguinho de videogame). Este mesmo avô, irritadíssimo com a barulheira que elas faziam, sobretudo no período da tarde quando tirava sua soneca, soltou as duas, libertando-as. Lembro que cheguei do colégio e vi as duas no fio de luz da rua de cima. Lembro também do intenso discurso em prol da liberdade dos pássaros que meu avô me fez, tentando lidar com a culpa pelas lágrimas grossas que rolavam copiosamente pelo meu rosto naquele dia. Ah, dos martírios da infância...

         Apenas em 2009, após faculdade, especialização, casamento, mudanças, divórcio, recomeços, frustrações, tristezas, mandos e desmandos dessa vida de meu Deus, foi que voltei a pensar em bichos...

         Se é que é verdade que cada animal que adotamos surge da necessidade de curar uma questão emocional, diria que comecei acolhendo minha necessidade de ter alguém que realmente precisasse do meu amor e cuidado.

         Lolla, ou Lollô, como a chamo, última filhote da Tuca, gata dos meus sobrinhos que viviam em Guararema na época, era a menor de toda a ninhada. Franzina e desprivilegiada, notadamente não conseguia um ‘lugar ao sol’ na disputa pelas tetas da mamys e minha irmã, parteira e cuidadora dos filhotes, já se mostrava muito alarmada, prevendo um desfecho trágico para a pequena. Bastou um único olhar e a decisão estava tomada. Aproveitando minhas férias de um dos trabalhos mais extenuantes que já tive na vida, levei-a para casa e a alimentei no conta-gotas até que pudesse comer a ração mole de gatinhos bebês. Mal posso explicar a alegria de vê-la crescendo e engordando, a sensação de sucesso de ver uma coisiquinha tão frágil ficar robusta, saudável e brincalhona. Hoje em dia, senhora de meia idade, é a chefona aqui de casa. Embora não seja a maior, com certeza é a mais roliça, tem seu lugar cativo ao meu lado na cama e, mesmo, sendo sociável e carinhosa, nenhum dos outros a desafia. Por duas vezes já partiu meu coração: A primeira quando saiu para passear e não retornou por mais de 15 dias, me deixando doente de preocupação, voltando para casa num dos episódios mais misteriosos, acompanhada por um imenso gato amarelo que a trouxe até a porta da minha casa e só foi embora depois que a recolhi: magra, imunda e assustada. A segunda vez foi quando cortou a perna num gancho da janela, deixando a veia aorta completamente exposta, passando por duas cirurgias, ficando em risco de vida por ter que ser anestesiada duas vezes, já que por causa da dor estava cheia de adrenalina e não dormia. Lollô é generosa, brava e tem instinto de enfermeira, velando meu sono e cada ação mínima que faço se estou doente, de cama. Ela também dividiu com o Eddie a tarefa de me apoiar durante o desenvolvimento do meu mestrado. O que teria sido feito de mim sem aquela companhia gentil nas longas noites de pesquisa, dúvidas e escrita?

         Quando voltei a trabalhar, passava muito tempo fora, Lolla, ainda bebê e acostumada com companhia e chamego constantes, começou a ter comportamentos estranhos, parou de comer e ficou agressiva. A solução proposta pelo VET foi adotar mais um gato, já que pelo que parecia, ela não curtia mesmo ficar sozinha.

         Encontrei a guapíssima Lana numa gaiola com mais 5 gatinhos, todos brancos e peludos, apertados e assustados, num PET SHOP meio caído aqui da região. Pelo que parece a mãe era uma autêntica Angorá que seduzida por algum SRD da vizinhança, botou os pequenos no mundo, sem que seu dono pudesse ou quisesse se responsabilizar pelas crias. Paguei por ela meras 30 pilas e atravessei toda a Vila Ré com essa gatinha maravilhosa, eternamente diva, com pêlos longos cor de neve e imensos olhos azuis. Lembro que ela só parou de miar feito louca quando abri uma aba da caixa e ela olhou bem pra mim. Lana tem temperamento arisco com estranhos, não gosta de ser acariciada por ninguém além de mim, não tolera brincadeiras fora de hora ou ser incomodada na hora de suas sonecas, odeia ficar suja, pede para ser escovada todos os dias e é a responsável por manter os pratos cheios, miando insistentemente aos vê-los vazios. Escolhi seu nome por causa de seu jeito de estrela de cinema. É muito ciumenta e dorme toda noite com as duas patas em meu braço! Não preciso nem dizer que a socialização entre as duas, após 2 semanas de muita briga - dias estes em que Lana dormia escondida debaixo de uma almofada grande, com verdadeiro pavor da Lolla - acabou sendo um sucesso. Chegava em casa todos os dias e as encontrava dormindo juntas, abraçadas! Acho que com a Lana recuperei com sucesso qualquer ponto de autoestima que tenha sido abalada na relação com as misérias alheias...Lana é linda, se ama e só ama quem a ama de verdade e a seduz com carinho e com paciência! Lana também tem o dom de prever crises cardíacas do meu pai e morte de vizinhos ou parentes. Isso é um fato comprovado!

         Satisfeita e feliz com minhas gatinhas estelares, acreditava que minha família felina estava completa e ia adequando as coisas da casa para que todas nos sentíssemos bem. Como a gente faz planos e Deus faz outros, no Natal do ano seguinte recebi de presente de uma tia uma caixinha engraçada e ao abrí-la quase cai para trás. Com imensos olhos azuis turquesa e pelagem característica, uma minúscula e excitadíssima filhote de siamês, saltou do meio de um cobertorzinho. Seu jeito de bailarina, sempre leve, delicada e elegante, me conquistou de pronto. Dei a ela o nome de Lizzie em homenagem a todas as Elizabeths que admiro...Esperta e rápida, não se furta de caçar qualquer inseto que se atreva a aparecer por aqui, também fez algumas excursões sem sucesso na busca por passarinhos. Nunca envelhece, está sempre metida em encrencas, adora brincar de morder e de esconder, também de dormir encostada em minhas pernas. Lizzie devolveu uma alegria pueril aqui para casa, até hoje insta as outras a brincarem com ela, irritando as velhotas e agitando a já super ansiosa Lara.

         Com a família crescendo, comecei a me policiar no sentido de não me tornar alguma espécie de ‘resgatadora de animais’ ou ‘crazy cat lady’. Não deixava que me mostrassem filhotes, não ia à feira de doações e nem tinha contado com esse pessoal envolvido com salvamento de bichos. O fato é que criar bichos é uma grande responsabilidade se vc se propõe a fazer a coisa direito: afeto constante, ração boa, VET decente, banhos eventuais, brinquedos e remédios acabam pesando na receita mensal e uma psicóloga clínica re-iniciante e outra vez estudante, minha situação na época, não contava com muitos recursos. De uma maneira inexplicável, meus pets iam se tornando mais e mais minha família e esse sentimento acaba colocando as coisas em nova perspectiva. Amadureci com eles e por causa deles.

         Ano e meio depois, já fora da Livraria Cultura e empregada em uma clínica psicológica, a vida outra vez aprontou das suas e decidiu colocar alguém em meu caminho. Atendendo 12 horas por dia, seis dias por semana, casos dos mais inusitados e graves, incluindo pacientes psiquiátricos e agressivos, não raro chegava aos finais de semana extenuada e sem vontade alguma de conviver com pessoas.

         Numa manhã gelada de junho, sentindo toda a gravidade de meu novo trabalho e a solidão a que ele me condenaria a médio prazo, comecei a ouvir um miadinho agudo e fraco vindo do telhado. Com a experiência de ‘mãe de 3’ seria capaz de identificar um recém-nascido em qualquer lugar. Eu e uma colega, cada vez mais desesperadas por aquilo que parecia ser um som de sofrimento, passamos a manhã chamando o bichaninho que nem sequer conseguíamos ver. No fim da tarde, já desesperançada, fui surpreendida na lavanderia da clínica por aquilo que me pareceu quase um salto suicida. Um gatinho preto minúsculo, o menor que tinha visto até então, se jogou do telhado exatamente na minha cabeça, se agarrando ao meu cabelo para não espatifar-se no chão.

         Obviamente, ao vê-lo, já senti de imediato o coração bombear mais forte e mais quente que o normal. Impressionante esse feitiço dos gatos de provocar ‘paixões à primeira vista’. Eddie, então ainda anônimo, era preto luzidio, magricelo, daquele pelo bagunçado e ralo de alguns filhotes e estava com os olhinhos ainda meio grudados e sujos. Um gatinho feio, fraco e doente.

Tentando acionar toda a minha racionalidade libriana, enrolei-o num pano de prato da cozinha da clínica, atravessei a rua e toquei a campainha da clínica veterinária que existia em frente. O VET, sempre muito gente boa, acolheu o pequeno, ouviu toda a história e se comprometeu a cuidar de seu destino. Deixei o pequeno lá e voltei ao trabalho, satisfeita comigo mesma por aparentemente ter feito o que era certo, pra mim e pra ele. Na hora de ir embora, avistei uma gaiolinha na frente da clínica com a emblemática placa ‘doa-se gatinhos’. Eddie estava ali dentro, enrolado num macacão de soft azul de bebê humano, encolhido como um caracol. Fui embora. Tudo isso aconteceu numa terça- feira.

         Na quarta, na quinta, na sexta e no sábado a mesma cena se repetiu. Eddie dentro da gaiolinha, enrolado no soft azul, encolhido por causa do frio de junho. Cada dia foi retirando alguns tijolos da muralha de racionalidade que mantinha meu orçamento um pouco mais seguro. No sábado eu soube que o gato era meu. Lembro que pensei “onde comem 3, comem 4” e nunca fiquei tão feliz na vida quando toquei aquela campainha e avisei o VET que iria levá-lo para casa. Obviamente ouvi cobras e lagartos de toda a família. Minha mãe estava particularmente alarmada. Acho que pensou que eu estava enlouquecendo de vez...kkkk...

         Ironicamente, de fato Eddie foi o que me trouxe mais gastos e preocupações. Desde bebê teve mil problemas digestivos e renais. Foi só quando finalmente descobrimos sua imensa alergia a pulgas que conseguimos tratá-lo e curá-lo de vez. Episódios como vômitos, perda de pêlos, urina com sangue e febre foram constantes por vários meses. Hoje em dia nenhum gato pode sair de casa para passeios, tudo é telado, desinfetei os gatos e a casa por 6 meses e não entro com sapatos para dentro. Eddie está ótimo! Robusto macho preto, gentil como um príncipe, reina absoluto entre as meninas que o adoram em unanimidade plena. Sem dúvida é um dos mais carinhosos, esquenta meu lado da cama todos os dias, saindo só quando já vou deitar. Sua dedicação é total, seu carinho infinito. Por vezes acordo pelas 5 da manhã com um gato preto praticamente colado ao meu rosto, checando minha respiração. Se com a Lolla resolvi minha necessidade de ser necessária, com a Lana recuperei minha autoestima e com a Lizzie meu humor, de alguma forma, Eddie me ajudou a fazer as pazes com o masculino – Sim, porque se um gato macho é capaz de amar assim, certamente existem machos humanos igualmente preciosos e com coração terno! Eddie também me deixou mais corajosa para aceitar riscos.

         Passamos por poucas e boas, eu e meus 4 gatos. Pessoas entraram e saíram das nossas vidas. Dividimos fartura e recessão, saúde e doença, alegrias e tristezas. Entre eles se construiu uma cumplicidade e uma cooperação mútua que só é ameaçada se algum outro gato aparece no quintal ou algum humano com aura estranha insiste em visitar a casa, também quando disputam a primazia na ração com caldinho, que todos amam de forma insana e desesperada. Lembro do dia em que cheguei em casa e não conseguia abrir a porta de vidro da entrada porque minha ‘gang felina’’ tinha se organizado e arrastado um tapete enorme e pesado, de pêlo de ovelha, até os degraus da entrada para poderem deitar nele pegando sol. Basta dizer que aquele tapete é difícil de arrastar até para uma faxineira forte....Olhei pelo vidro da porta e vi todos lá, deitados folgadamente, um em cada degrau, jacarezando...rs...

         Lara é minha caçula. Foi resgatada de debaixo do pneu do carro, no estacionamento da farmácia, numa noite de chuva. Eu e minha mãe a salvamos por uma questão de segundos e um relance. A ideia inicial era entregá-la para minha sobrinha Beatrice, outra amante de bichos, mas meu cunhado na época não foi simpático ao plano, já estavam afinal com 2 cachorros. O fato é que Lara veio para casa e, hoje em dia, par de anos depois, a Bea já está com três gatas...rs...

Lara é um bocado esquisita. Não gosta muito de carinho, mas adora companhia e atenção. Não sabe receber carinho sem retribuir, o que rende pra gente umas boas lambidas daquela língua áspera – tenho a impressão que se preocupa um bocado com minha higiene pessoal e tem uma predileção pelo cheiro dos meus shampoos. Adora correr, pular, brincar e caçar. Sofre de insônia e tem repentes no meio da noite, o que já quase me matou de susto algumas vezes e também já me irritou bastante. Sofre de ‘Síndrome de Pandora’, o que significa que sente dor nas patinhas e não consegue usar a caixa de areia, fazendo suas necessidades elegantemente ao lado da caixa e não dentro. Única criança numa casa de balzaquianos sofre um pouco por falta de companhia para brincadeiras, algo que Lizzie em dias bons e Eddie, com sua imensa paciência, tendem a amenizar. Como cresceu um bocado e é agora uma das maiores da casa, sofre com alguns chiliques da Lana e está sempre tendo que disputar espaço, coisa essa que enfrenta com galhardia, mas que a aborrece visivelmente. Lara persiste e nunca perde sua alegria natural. De certa forma, sua presença me ajuda a enfrentar as frustrações devidas à imperfeição da vida, com suas infinitas lutas para se conquistar e se manter relações, com todos os esforços hercúleos para evitar e sobreviver a intrigas e invejas, com a necessidade constante de se reinventar para poder simplesmente ‘aproveitar o dia’. Lara também tem uma tara por iogurtes, especialmente os gregos...

         É indizível a alegria que sinto ao despertar de manhã e arrumar a cama com meus gatos se enroscando nos lençóis, fazendo sua costumeira algazarra matutina, pedindo ração, se estendendo ao sol em seu ‘alongamento’, me ensinando que a vida é muito gostosa e que para conseguir saboreá-la basta se soltar um pouco das amarras que criamos para nós mesmos. Existem dias em que enrolo na cama um pouquinho mais só para poder acariciá-los e aprender com eles a mágica desse pleno ‘carpe diem’.

         Gosto muito de cães também. A fidelidade incondicional deles me emociona, mas, também me constrange. Sei que não importa quem eu seja ou como os trate, serão leais. Os gatos são fiéis também, leais aos seus donos mesmo que isso os leve à selvageria, porém são ainda mais fiéis a si mesmos. Gatos tem autoestima, eles te amam se são amados. Um dos humanos do filme comenta que gatos tem a consciência de que existe um Deus acima de nós, os cães não, os cães acham que os humanos são deuses. Seja como for, me sinto mais confortável entre os gatos, sua resposta afetiva é sempre honesta e espontânea, são donos de seu próprio destino e se nos deixam cuidar deles é porque conquistamos isso de fato.

         O documentário também fala que um humano que nunca amou e se deixou amar por um animal tem uma experiência de vida incompleta. Não poderia concordar mais com uma ideia. O que um animal nos oferece é um portal para tudo aquilo que nossa alma intui, mas nossa razão desconhece. Poderia passar a vida explicando as benéfices e o crescimento pessoal que minha relação com bichos me deu e me dá, mas sei que minhas palavras só vão encontrar eco dentro daqueles que de alguma forma já chegaram neste lugar de simplicidade e assombro.

         Ser uma ‘Crazy Cat Lady’ só me fez ser melhor, no amor, na vida, nas buscas por transcendência, na simples capacidade de gozar as alegrias de um dia. Retomando a frase de Neruda na epígrafe deste texto, um gato não quer ser nada mais do que ele mesmo. Quiçá tivéssemos essa mesma liberdade. Se pudéssemos apenas nos livrar de todos os complexos, invejas e ilusões que nos consomem e limitam nossa existência, nos enfiando em toda sorte de busca vazia, certamente sobraria tempo, espaço e energia para que pudéssemos de fato SER.

         Manoel de Barros, em ‘Memórias Inventadas’, diz achar que “...o quintal onde a gente brincou é maior do que toda a cidade” e que só se descobre isso depois de grande”. Os gatos me lembram disso todos os dias e, graças a eles, me permito viver essa grandeza, com o rosto descoberto, os olhos abertos e a alma iniciada.