A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Inveja nossa de cada dia...



“O belo é sempre espantoso...”
Baudelaire


“O Amor não inveja”
I Coríntios 13


“...a Criatividade é a causa mais profunda da Inveja”
Melanie Klein



“...o Talento é imperdoável”
Diderot


A inveja habita no fundo de um
vale onde jamais se vê o sol.
  Nenhum vento o atravessa;
  Ali reinam a tristeza e o frio
  Jamais se acende o fogo,
  Há sempre trevas espessas
 ...A palidez cobre seu rosto,
  Seu corpo é descarnado,
o olhar não se fixa em parte alguma.
  Tem os dentes manchados de tártaro,
  O seio esverdeado pela bile,
  A língua úmida de veneno.
  Ela ignora o sorriso,
  Salvo aquele que é excitado pela visão da dor
 ...Assiste com despeito aos sucessos dos homens,
  E este espetáculo a corrói;
  Ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma,
E este é o seu suplício.”
Ovídio




     No Paraíso Perdido de Milton, vemos recontado o drama do Éden, no qual Satã com inveja do Deus Criador e na tentativa de estragar o gozo da vida celestial declara guerra e cai, construindo com outros caídos o inferno como rival do céu e tornando-se a força destrutiva que visa destruir o que Deus cria. Desde Santo Agostinho a vida vem sendo descrita como uma força criativa em oposição à inveja, tida como força destrutiva. Desta forma reconhece-se a inveja - expressão da maldade, como uma das emoções primárias no ser humano, desde o pecado original, quando o homem escolhe dar ouvidos à serpente.

     De lá para cá seguimos acompanhando sua manifestação como força motriz de diversos dramas e personagens, sejam eles reais ou fruto do imaginário: Caim matando Abel, a madrasta da Branca de Neve pedindo seu coração para comê-lo, Yago enganando Otelo, Caifás pedindo a pena máxima para Cristo, Mussolini aprisionando Gramsci por toda a vida por discursar melhor que ele no parlamento italiano. Inveja e destruição, o casal infernal, unido e atuante, desde que o mundo é mundo.

     Do mesmo modo que sua manifestação, o conceito de que a inveja é um sentimento negativo também é universal, nos circuitos psicológicos e psicanalíticos atribui-se a ela inclusive, dependendo da intensidade, o caráter de sintoma patológico.

     O invejoso é, em geral, alguém que não é capaz de tolerar o prazer do outro, sua fruição, assim não consegue suportar também que algo de bom lhe seja dado por esse outro. Não pode usufruir esse outro, não reconhece ou admite de má vontade as qualidades alheias, o valor de outra pessoa e se mostra incapaz de experimentar e de expressar gratidão. O invejoso não reconhece que o outro tenha algo de bom a lhe oferecer e não é capaz de receber informações ou ajuda, pois tem grandes dificuldades com o saber do outro, saber que o faz sentir-se sempre humilhado – não tolera ver, ouvir ou vivenciar coisas novas e prazerosas, experiências positivas e pensamentos interessantes que venham de outra pessoa. Não é capaz de aguentar e assimilar a ideia da felicidade alheia.

     Nesse sentido, o indivíduo que empalidece frente a felicidade alheia pode atuar de forma destrutiva, chegando ao ponto de fazer o outro de fato entristecer-se. (Mezan, 1987)

     Nessa compreensão, podemos dizer que a inveja sempre se apresenta como um sentimento que esteriliza a curiosidade e, portanto, acaba por determinar uma espécie de indigência psíquica.

     Se para Melanie Klein a inveja é uma manifestação primitiva do psiquismo ligada à agressividade e a um desenvolvimento capenga do narcisismo para a plena percepção do outro - falha essa que gera no sujeito a sensação de que nada pode ser por ele apropriado, nada lhe pertence por direito, tornando-se o invejoso vítima perene de um sentimento de falta arrasador, diante da qual tudo que é seu se mostra inadequado e insuficiente, enquanto que tudo que é alheio surge como melhor –para Nietzsche, em sua tipologia, quando fala do “fraco”, do “escravo” ou do “doente”, os caracteriza antes de qualquer outra coisa como ressentidos e invejosos. Na concepção do filosofo, o “fraco” não se apresenta apenas como uma antítese do “forte”, mas como alguém que tem uma ferida aberta no peito, algo que o sangra dia e noite: a inveja. O invejoso não aparece, ele se esconde, se resguarda em seu nome como numa capa, ninguém sabe quem ele é, pois nunca fez de fato nada, como um inseto que muda de cor para se parecer com a paisagem. Segundo Nietzsche, a inveja e a covardia são irmãs.

  Diderot foi o primeiro a qualificar a inveja pelo que mais a incomoda – o talento. O invejoso não inveja o outro por ter dinheiro ou bens materiais, inveja pelo talento que ele mesmo não possui. Vemos muito isso ilustrado no mundo cultural e acadêmico: um livro não publicado, uma ideia censurada, uma crítica ácida descabida, um não injustificado, uma proibição sem sentido.

     O invejoso nunca debate, nunca discute ou se abre para comparar opiniões, em geral agride e se esconde evitando o confronto aberto num terreno de disputa justa, pois tem medo do confronto, mesmo sabendo que não perderá nada, já que nada tem a perder – afinal é ciente que o talento do invejado é o algo que ele não tem. Esse nada que habita o cerne do invejoso é o que alimenta e perpetua sua inveja.

     A verdade é que seja o sujeito invejoso vítima de um desenvolvimento psíquico falho, ou de uma fraqueza de caráter, leva uma vida dolorosa de constante e abjeta comparação com o outro – cativo de um sentimento perene de insuficiência, o invejoso nunca é feliz. Em geral se trata de alguém de difícil convívio social e com seus entes queridos, cuja presença é marcada por comportamentos agressivos e por um olhar de constante crítica, assim como também é constante sua recusa em revelar e vivenciar afeto. O ódio inconsciente costuma ser tão violento que o leva a atacar o outro o tempo todo, visando destruir aquilo que neste outro existe e que ele não encontra em si mesmo. O invejoso é espoliador, não inveja o que precisa para si, mas algo que precisa tirar do outro. (Joseph, 1992)

Nossa sociedade contemporânea, caracterizada pela ética de mercado, parece ter encontrado numa neurose o combustível para sua existência e manutenção. Ao nos tornarmos seres de comparação, assinamos nosso contrato com o descontentamento e angústia perpétuos.

A política consumista se nutre das imensas e irreais expectativas daqueles que se sentem vazios de si mesmos e perpetua um estado invejoso tanto nas escolhas de estilo de vida, quanto nos relacionamentos. A tragédia habita no fato de que se a inveja – que diferente da voracidade não visa incorporação, mas destruição – se tornar um aspecto dominante em nossa maneira de viver no e de ver o mundo, colecionaremos relações disfuncionais, recheadas de afastamentos e intrigas e isso em todas as dimensões relacionais. A inveja materializa o vazio do cotidiano, intensifica o sentimento de desilusão, torna o criar, um destruir, unindo de forma bizarra dois conceitos excludentes e nos condenando ao nada existencial.

Muito se tem falado a respeito da nossa Era do Vazio, tempo de imediatismo, tempo de individualismo hedonista, tempo de apatia, tempo de sedução generalizada sem eros nenhum, tempo de legitimação de todas as formas de vida sem que haja de fato um sentimento de viver em nenhuma delas, tempo de banalização da violência social, da co-existência fake de contrários, tempo de inversão de ideais e de analgesia emocional completa, de uma mente gravemente alterada, incapaz de conter coisa alguma – tempo de um sujeito incapaz de aprender seus próprios sentimentos na relação com o outro porque não tolera que o outro exista. Em toda parte reina uma solidão doentia e uma dificuldade de ser transportado para fora de si mesmo. NÃO HÁ PONTES.  
 
Na era do vazio, a ilusão predomina sobre o fato, não apenas mascarando o fato, mas o substituindo. O consumismo é performático, fetichista, se torna um ser poderoso que ao ser colocado sobre o indivíduo o transforma, o preenche, pelo menos até o próximo “sonho de consumo”.

A própria produção artística de nossos dias denota uma incrível redução da vida interior (Kristeva, 1993). Quem hoje ainda tem alma? As patologias do vazio revelam a perda progressiva da capacidade de simbolizar, seu sintoma na arte se expressa no foco temático contemporâneo na relação primordial do homem com tudo que nega a existência, no transitório, na precariedade e parcialidade de todas as perspectivas.

Tanto nas salas de aula quanto nas clínicas psicológicas e psiquiátricas constata-se a inibição da curiosidade por tudo aquilo que vem do outro em indivíduos marcadamente invejosos, cujo mundo mental é empobrecido. Essa falta de interesse pelo que os cerca reflete-se numa indiferença com relação ao funcionamento de suas próprias mentes, de seus pensamentos e estados emocionais, o que os leva sempre a um saber abstrato e a uma racionalidade estéril e onipotente. A falta de curiosidade pode ser entendida como uma defesa contra a inveja, evitando o impacto com experiências novas e com elas as dores da inveja, da sensação de vazio e do rancor.

Sem curiosidade e abertura para o mundo não há possibilidade de criação. Espoliar o ser da possibilidade de criar é retirar dele a própria vida. Sendo assim, a inveja é um sentimento que ao não suportar a diferença e a criação, ataca as fontes da vida. Logo, como manifestação psíquica da maldade, a inveja não tolera a alteridade, pois o outro exige de nós uma atitude criativa que nos possibilite a experiência. (Merleau-Ponty, 1971)

Encerro essa reflexão desafiando os que ainda seguem despertos a jamais dormirem e a buscarem maneiras de semear no deserto para um resgate do homem no homem.


“Sim, o seu olhar é sem inveja: e é por isso que o honrais?
Preocupa-se pouco com as vossas honras;
Tem o olho da águia, olha para o que está longe,
Não vos vê!... Apenas vê os astros e as estrelas!”
                                     Nietzsche