A pele que habito

A pele que habito

sábado, 12 de setembro de 2015

Refugiados, lendas familiares e hipocrisia...





Hoje cedo, umas sete da manhã, um vento de gelar ossos batia impiedoso no Largo da Santa Cecília quando saí do metrô.  Em frente à igreja, dezenas de camelôs e ambulantes já distribuíam suas mercadorias em panos largos: artesanatos, fones de ouvido, óculos de sol, relógios imitando grifes e camisetas de seleções de futebol  falsié[1] . Entre eles, três africanos sem casaco e tremendo de frio. Olhando suas figuras altas e enrijecidas pelo clima, com aquela interessante pele de um preto retinto revestindo corpos de musculatura invejável, seus pares de olhos de contas e seus grandes lábios arroxeados, fiquei curiosa e fui conversar. Camisetas de 15 a 30 reais, algumas de tecido melhor que outras e logo soube que vieram de Angola. Perguntei o que estavam achando do Brasil e o mais novo, que chegou faz apenas três semanas, apenas me disse que achava muito frio. Tive ímpeto de perguntar onde moravam, se estavam bem instalados, se conseguiam dinheiro pra sobreviver, mas me calei. E se dissessem que não, o que eu poderia fazer?

Fui embora sem comprar nada, afinal não tenho interesse e nem dinheiro pra gastar em camiseta falsa de time. Obviamente, não sou nenhum um pouco contra a recepção de refugiados, seria até ridículo, afinal não existe uma gota do sangue que corre em minhas veias que não tenha vindo de refugiado, imigrante, retirante ou afins. É verdade que sou paulistana da gema, nascida no Belenzinho, meus pais são paulistanos e, embora já tenhamos rodado meio mundo, sempre acabamos voltando pra cá, essa terra de estrangeiros.

Fazendo uma retrospectiva:

A jornada da família Pedrosa fugindo das perseguições religiosas remonta à Inquisição espanhola, até nas malditas Cruzadas foram parar no intuito único de convencer a Igreja Católica que seu judaísmo tinha escorrido pelo ralo e angariar apenas o direito de não torrar em fogueiras. Nada adiantou muito e de teimosia viraram mestres da fuga: da Espanha foram pro Açores, de lá pra Ilha da Madeira e, por fim, vieram engrossar a fileira dos Bandeirantes aqui em São Paulo. Certamente aprisionaram índios e tudo que todo bom bandeirante sabia fazer, dizem inclusive que Amador Bueno da Veiga era da família. Deixando qualquer moralismo de lado, admiro muito a capacidade de sobrevivência dessa gente, sem isso talvez eu nem estivesse aqui.  A relação com a Igreja Católica jamais foi resolvida, o judaísmo nunca foi recuperado e já fazem quatro gerações que os Pedrosa são protestantes - desse protestantismo mixado, um pouco Era Vitoriana, um pouco João Calvino e um pouco Billy Graham - toda uma cultura herdada de missionários norte-americanos. Meu avô Josué (ou Nino) era um Pedrosa, cabelos lisos e pretos, profundos spanish eyes, sempre muito sério e muito reservado, me achava sempre muito alta para minha idade.

Gaspare Morelli embarcou em Matera fugindo da Primeira Guerra. Enterrou o melhor vinho da família embaixo da casa pra beber quando voltasse, mas nunca voltou. Gastou todo dinheiro em tecidos finos, comprou passagem para Buenos Aires onde pretendia montar sua própria alfaiataria. No navio apinhado, em condições desumanas, perdeu a esposa grávida, vítima de apendicite. Desembarcou em São Paulo completamente desnorteado e deixou no navio que ia para a Argentina tudo que tinha. Começou aqui a vida do zero e hoje é citado no Museu da Penha. Tinha enorme talento, trabalhou como poucos e acabou tendo muitas posses (que não chegaram até a minha geração, infelizmente..rs..), foi um dos primeiros a ter uma Harley-Davidson no Brasil. Como todo bom clichê, era um italiano belo e appassionato, teve muitas mulheres e quatro filhos. Dizem que se jogou do viaduto do Chá após um derrame que o incapacitou. Minha nona Maria Bruna, a filha mais velha, é uma mulher muito amorosa, muito inteligente, muito brava e, quando jovem, tinha a cara da Beth Davis. Herdou seu nome de três ancestrais, a primeira delas, diz a lenda, foi amante de algum Papa.

Margaretha Orsten é um grande mistério. Segundo meu avô herdei dela essa cor engraçada de cabelo e as pernas compridas. Ninguém sabe ao certo o motivo dela ter vindo pra cá, se era filha de missionários ou prostituta (...rs..), alguns comentam que era descendente de Maurício de Nassau, só sei que era holandesa, casou-se no Sergipe e botou no mundo um dos homens mais malvados da história da minha família – o tal vô Totonho que conheceu Lampião e deu um tiro na orelha da própria esposa, minha bisa Maria – essa que dormia em redes e tinha as pernas lisas até os 90 – ele também mandava amarrar os filhos em árvores. Meu avô, pracinha da segunda guerra aos 18 anos, acabou falando italiano por contingência e foi militar a vida toda, amava São Paulo e me ensinou a amar o nordeste.

Hassan Khalil fugiu de umas mil guerras envolvendo o Líbano e teve seu nome alterado para Alcino assim que pisou em terra firme e, entre trancos e barrancos, tentava explicar ao sujeito da imigração que não era turco e sim libanês. Inesperadamente era tão loiro que o seu couro cabeludo era cor-de-rosa. Muçulmano liberal chegou casado com uma portuguesinha católica de 1,40 a quem chamávamos de vó Pequenininha. Conhecedor de azeites e de vinhos, bondoso com crianças e generoso com os filhos, foi roubado pelos próprios sobrinhos numa noite de bebedeira e jogatina, durante uma dessas festas de sete dias que costumavam dar nos casamentos. Embora ele próprio não tivesse se casado com uma libanesa, insistia em não permitir que minha avó Khadija se casasse com o meu avô, sendo assim eles fugiram juntos e no final da vida Hassan, empobrecido e doente, acabou vivendo da ajuda do genro enjeitado. Minha avó Khadija, carismática e vaidosa, era sempre a alma da festa. Lembro de seus muitos anéis, seu jeito meio cigano e da mania de enrolar os pés numa estola de pele para dormir. Nunca conheci ninguém mais luminosa ou mais otimista.

Para quê contar tudo isso?

Simplesmente para não esquecer nunca que cada um daqueles refugiados que aparecem na TV ou com quem cruzo nas ruas são pessoas – eles e elas têm nomes, pai e mãe, filhos, profissões, desejos, pensamentos, sonhos e um corpo. Essa invasão midiática a que nos submetem todos os dias transforma tudo em mero entretenimento, show, objeto de distração. Uma criança morta na praia fica vagando semanas nas telas de computador do mundo e tudo o que acontece é um vômito de asneiras nas redes sociais.

Não vou entrar no mérito de ações governamentais, mas a verdade é que, no âmbito pessoal, ninguém perguntaria a um refugiado ou imigrante se ele está bem instalado ou se precisa de ajuda. Ninguém vai hospedar uma família estranha no quintal de casa e sabemos disso porque todos somos herdeiros dessa condição. Aquela gente podia ser nosso pai ou nosso avô ou nosso bisavô. Todos largaram tudo e se lançaram ao destino cegos, movidos pelo instinto mais básico de qualquer animal – a sobrevivência. Essa gente vai tolerar tudo: vender camiseta no frio, briga de camelôs na rua, chute de cinegrafista húngara, maus tratos de uruguaio, racismo, incompetência de políticas de imigração, mas ao final vai vencer, simplesmente porque luta. E com bravura. Contam com nossa humanidade sim, mas não dependem dela. Darão um jeito. São melhores que nós que temos país e liberdade, mas agimos como uns vendidos medrosos diante das maiores trapaças políticas. Eles são gente sem país, nós somos país sem gente. A verdade é que quem vê o brasileiro ensardinhado no metrô todo santo dia nunca diria que somos um povo de vida fácil, mas de alguma forma vivemos de fato deitados em um berço esplêndido de comodismo e letargia. Alma de escravos? Até quando?

Somos apenas um bando de hipócritas, no sentido mais íntimo do termo, viciados em nossas pequenas neuroses familiares, acadêmicas ou institucionais, vendendo a alma (ou até o corpo) em guerrilhas pelo poder em nossos pequenos feudos pessoais – feudos que não significam absolutamente NADA. Difamando pessoas, manipulando ingênuos, burlando valores e tudo isso pra quê?? Isso me fez lembrar muito quando em minha infância de filha de pastor, assistia pasma a eleição de presbíteros e oficiais de igrejas, famílias inteiras se digladiando e fazendo lobbies, caras feias e tanta demagogia, tudo isso para quê? Para ter um lugar ao sol diante de algumas centenas de pessoas anônimas, em algum subúrbio de país de terceiro mundo, sem sequer algum prêmio ou qualquer verdadeira projeção, mas, como dizia o poeta africano em outro contexto, mas também no mesmo, tudo pelo “...bom evangelho de cassetetes...”







[1] Esse termo inventado que parece definir toda a nossa geração.