Hoje cedo, umas sete da
manhã, um vento de gelar ossos batia impiedoso no Largo da Santa Cecília quando
saí do metrô. Em frente à igreja,
dezenas de camelôs e ambulantes já distribuíam suas mercadorias em panos
largos: artesanatos, fones de ouvido, óculos de sol, relógios imitando grifes
e camisetas de seleções de futebol falsié[1]
. Entre eles, três africanos sem casaco e tremendo de frio. Olhando suas
figuras altas e enrijecidas pelo clima, com aquela interessante pele de um
preto retinto revestindo corpos de musculatura invejável, seus pares de olhos
de contas e seus grandes lábios arroxeados, fiquei curiosa e fui conversar.
Camisetas de 15 a 30 reais, algumas de tecido melhor que outras e logo soube
que vieram de Angola. Perguntei o que estavam achando do Brasil e o mais novo,
que chegou faz apenas três semanas, apenas me disse que achava muito frio. Tive
ímpeto de perguntar onde moravam, se estavam bem instalados, se conseguiam
dinheiro pra sobreviver, mas me calei. E se dissessem que não, o que eu poderia
fazer?
Fui embora sem comprar
nada, afinal não tenho interesse e nem dinheiro pra gastar em camiseta falsa de
time. Obviamente, não sou nenhum um pouco contra a recepção de refugiados,
seria até ridículo, afinal não existe uma gota do sangue que corre em minhas
veias que não tenha vindo de refugiado, imigrante, retirante ou afins. É
verdade que sou paulistana da gema, nascida
no Belenzinho, meus pais são paulistanos e, embora já tenhamos rodado meio
mundo, sempre acabamos voltando pra cá, essa terra de estrangeiros.
Fazendo uma
retrospectiva:
A jornada da família Pedrosa
fugindo das perseguições religiosas remonta à Inquisição espanhola, até nas
malditas Cruzadas foram parar no intuito único de convencer a Igreja Católica
que seu judaísmo tinha escorrido pelo ralo e angariar apenas o direito de não
torrar em fogueiras. Nada adiantou muito e de teimosia viraram mestres da fuga:
da Espanha foram pro Açores, de lá pra Ilha da Madeira e, por fim, vieram
engrossar a fileira dos Bandeirantes aqui em São Paulo. Certamente aprisionaram
índios e tudo que todo bom bandeirante sabia fazer, dizem inclusive que Amador
Bueno da Veiga era da família. Deixando qualquer moralismo de lado, admiro muito
a capacidade de sobrevivência dessa gente, sem isso talvez eu nem estivesse
aqui. A relação com a Igreja Católica jamais foi resolvida, o judaísmo nunca foi recuperado e já fazem quatro gerações que os
Pedrosa são protestantes - desse protestantismo mixado, um pouco Era Vitoriana, um pouco João Calvino e um pouco Billy Graham - toda uma cultura herdada de missionários norte-americanos.
Meu avô Josué (ou Nino) era um Pedrosa, cabelos lisos e pretos, profundos spanish eyes, sempre muito sério e muito
reservado, me achava sempre muito alta para minha idade.
Gaspare Morelli embarcou
em Matera fugindo da Primeira Guerra. Enterrou o melhor vinho da família
embaixo da casa pra beber quando voltasse, mas nunca voltou. Gastou todo
dinheiro em tecidos finos, comprou passagem para Buenos Aires onde pretendia
montar sua própria alfaiataria. No navio apinhado, em condições desumanas, perdeu
a esposa grávida, vítima de apendicite. Desembarcou em São Paulo completamente desnorteado
e deixou no navio que ia para a Argentina tudo que tinha. Começou aqui a vida
do zero e hoje é citado no Museu da Penha. Tinha enorme talento, trabalhou como
poucos e acabou tendo muitas posses (que não chegaram até a minha geração,
infelizmente..rs..), foi um dos primeiros a ter uma Harley-Davidson no Brasil.
Como todo bom clichê, era um italiano belo e appassionato, teve muitas mulheres e quatro filhos. Dizem que se
jogou do viaduto do Chá após um derrame que o incapacitou. Minha nona Maria Bruna,
a filha mais velha, é uma mulher muito amorosa, muito inteligente, muito brava
e, quando jovem, tinha a cara da Beth Davis. Herdou seu nome de três
ancestrais, a primeira delas, diz a lenda, foi amante de algum Papa.
Margaretha Orsten é um
grande mistério. Segundo meu avô herdei dela essa cor engraçada de cabelo e as
pernas compridas. Ninguém sabe ao certo o motivo dela ter vindo pra cá, se era
filha de missionários ou prostituta (...rs..), alguns comentam que era
descendente de Maurício de Nassau, só sei que era holandesa, casou-se no
Sergipe e botou no mundo um dos homens mais malvados da história da minha
família – o tal vô Totonho que conheceu Lampião e deu um tiro na orelha da própria
esposa, minha bisa Maria – essa que dormia em redes e tinha as pernas lisas até
os 90 – ele também mandava amarrar os filhos em árvores. Meu avô, pracinha
da segunda guerra aos 18 anos, acabou falando italiano por contingência e foi
militar a vida toda, amava São Paulo e me ensinou a amar o nordeste.
Hassan Khalil fugiu de
umas mil guerras envolvendo o Líbano e teve seu nome alterado para Alcino assim
que pisou em terra firme e, entre trancos e barrancos, tentava explicar ao
sujeito da imigração que não era turco e sim libanês. Inesperadamente era tão
loiro que o seu couro cabeludo era cor-de-rosa. Muçulmano liberal chegou casado
com uma portuguesinha católica de 1,40 a quem chamávamos de vó Pequenininha.
Conhecedor de azeites e de vinhos, bondoso com crianças e generoso com os
filhos, foi roubado pelos próprios sobrinhos numa noite de bebedeira e
jogatina, durante uma dessas festas de sete dias que costumavam dar nos
casamentos. Embora ele próprio não tivesse se casado com uma libanesa, insistia
em não permitir que minha avó Khadija se casasse com o meu avô, sendo assim eles
fugiram juntos e no final da vida Hassan, empobrecido e doente, acabou vivendo
da ajuda do genro enjeitado. Minha avó Khadija, carismática e vaidosa, era
sempre a alma da festa. Lembro de seus muitos anéis, seu jeito meio cigano e da
mania de enrolar os pés numa estola de pele para dormir. Nunca conheci ninguém
mais luminosa ou mais otimista.
Para quê contar tudo
isso?
Simplesmente para não
esquecer nunca que cada um daqueles refugiados que aparecem na TV ou com quem
cruzo nas ruas são pessoas – eles e elas têm nomes, pai e mãe, filhos, profissões,
desejos, pensamentos, sonhos e um corpo. Essa invasão midiática a que nos
submetem todos os dias transforma tudo em mero entretenimento, show, objeto de
distração. Uma criança morta na praia fica vagando semanas nas telas de
computador do mundo e tudo o que acontece é um vômito de asneiras nas redes
sociais.
Não vou entrar no mérito
de ações governamentais, mas a verdade é que, no âmbito pessoal, ninguém
perguntaria a um refugiado ou imigrante se ele está bem instalado ou se precisa
de ajuda. Ninguém vai hospedar uma família estranha no quintal de casa e
sabemos disso porque todos somos herdeiros dessa condição. Aquela gente podia
ser nosso pai ou nosso avô ou nosso bisavô. Todos largaram tudo e se lançaram
ao destino cegos, movidos pelo instinto mais básico de qualquer animal – a sobrevivência. Essa gente vai tolerar tudo: vender camiseta no frio, briga de
camelôs na rua, chute de cinegrafista húngara, maus tratos de uruguaio, racismo,
incompetência de políticas de imigração, mas ao final vai vencer, simplesmente
porque luta. E com bravura. Contam com nossa humanidade sim, mas não dependem
dela. Darão um jeito. São melhores que nós que temos país e liberdade, mas
agimos como uns vendidos medrosos diante das maiores trapaças políticas. Eles
são gente sem país, nós somos país sem gente. A verdade é que quem vê o
brasileiro ensardinhado no metrô todo
santo dia nunca diria que somos um povo de vida fácil, mas de alguma forma
vivemos de fato deitados em um berço esplêndido de comodismo e letargia. Alma
de escravos? Até quando?
Somos apenas um bando de
hipócritas, no sentido mais íntimo do termo, viciados em nossas pequenas
neuroses familiares, acadêmicas ou institucionais, vendendo a alma (ou até o
corpo) em guerrilhas pelo poder em nossos pequenos feudos pessoais – feudos que
não significam absolutamente NADA. Difamando pessoas, manipulando ingênuos,
burlando valores e tudo isso pra quê?? Isso me fez lembrar muito quando em
minha infância de filha de pastor, assistia pasma a eleição de presbíteros e
oficiais de igrejas, famílias inteiras se digladiando e fazendo lobbies, caras
feias e tanta demagogia, tudo isso para quê? Para ter um lugar ao sol diante de
algumas centenas de pessoas anônimas, em algum subúrbio de país de terceiro
mundo, sem sequer algum prêmio ou qualquer verdadeira projeção, mas, como dizia
o poeta africano em outro contexto, mas também no mesmo, tudo pelo “...bom evangelho
de cassetetes...”
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