A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Perdas Desnecessárias




“If they say
Who cares if one more light goes out?
In the sky of a million stars
It flickers, flickers
Who cares when someone’s time runs out?
If a moment is all we are
Or quicker, quicker
Who cares if one more light goes out?
Well, I do.”[1]
Linkin Park in: One More Light


“Vivo por homens e mulheres
de outras idades, de outros lugares, com outras falas.
Por infantes e velhinhos trêmulos.
Gente do mar e da terra,
Suada, salgada, hirsuta.
Gente da névoa, apenas murmurada.
(...)
Faro do planeta e do firmamento
bússola enamorada de eternidade,
um sentimento lancinante de horizontes,
um poder de abraçar, de envolver
as coisas sofredoras,
e levá-las nos ombros, como os anhos e as cruzes.”
Cecília Meireles


“É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem.”
Colette


     Judith Viorst afirma em seu livro “Perdas Necessárias” (1986) que, apesar de relacionarmos a ideia de perda, em geral, muito mais à morte das pessoas que amamos, tal experiência é muito mais abrangente, envolvendo tudo aquilo que nos é tirado ou do que abrimos mão, seja pelo fato de sermos abandonados ou de abandonar; pelas mudanças que escolhemos fazer ou que nos acontecem; por tudo que deixamos para trás pelas vicissitudes da vida ou por escolha. Tais perdas não se resumem a separações ou partidas, sejam elas temporárias ou definitivas, mas também dizem respeito a perda consciente ou inconsciente de “sonhos românticos, expectativas impossíveis, ilusões de liberdade e poder, ilusões de segurança – e a perda do nosso próprio eu jovem, o que se julgava para sempre imune às rugas, invulnerável e imortal.” (p.14)

     A autora destaca ainda que existem coisas às quais precisamos desistir para poder crescer – “a estrada do desenvolvimento humano é pavimentada com renúncia”. Passamos a vida desistindo de coisas e pessoas, que amamos muito, inclusive, para poder simplesmente crescer. Para alcançar o máximo de nosso potencial precisamos enfrentar a dor de admitir tudo o que jamais seremos e o que jamais teremos. “Investimentos emotivos nos fazem vulneráveis a perdas. E às vezes, por mais inteligentes que sejamos, temos de perder.”
Perder para ganhar. Perdas absolutamente necessárias.

A vida, porém, segue sendo paradoxal por evidência.

     Ao mesmo tempo em que nos encarrega de perdas essenciais, nos carrega  com perdas fortuitas, desnecessárias. Perdas que não nos fazem crescer, não nos ajudam a evoluir, antes nos atrasam, nos ferem, nos diminuem, nos mutilam. Perdas que, se conseguirmos ao menos subsistir a elas, seguiremos numa longa jornada (às vezes infinita) de tentativas de superação. Perdas não-naturais, brutais, consequências de péssimas escolhas, nossas ou de outros, destinadas a comprometer nosso caminho, prejudicar nossas trajetórias. Perdas às quais só sobrevivemos pela misericórdia divina e pela fé no “todas as coisas cooperam para o bem...”.

     Esse texto é para falar sobre essas perdas. Sobre como elas estão dominando nossos dias, na conjuntura atual e sobre como não sabemos lidar com elas.

     Eu poderia começar contando sobre como foi quase ter perdido minha mãe para o COVID 19. Poderia relatar o desespero de se viajar 12 horas de carro, dirigindo e recebendo notícias cada vez piores pelo celular, lutando para calar a vozinha sinistra que sussurrava em meus ouvidos: “Eles estão te escondendo o pior porque vocês estão na estrada”. Poderia dizer sobre a angústia de ter alguém que você ama muito doente e internado e não poder acompanhá-lo, sequer visitá-lo, ficando restrito a um boletim médico por dia que não tinha nem um horário certo para ser enviado. Poderia falar dos dias em que ela permaneceu na UTI, entubada, dependendo de um respirador para sobreviver e de como seus pulmões e coração entraram em sofrimento. Poderia falar do nível de debilidade a que seu corpo chegou e como a sensação de impotência que nos acometeu foi avassaladora.

     Poderia também explicar que minha mãe não é somente a minha mãe, mas é uma das pessoas mais dignas, decentes, leais, amáveis e gentis que eu conheço. De como a morte dela afetaria centenas de pessoas, entre familiares, amigos, colegas de trabalho, alunos e conhecidos. Isso a tal ponto de pessoas até em outros países, como os EUA, a Espanha e a Índia se reunirem para orar por ela.

     Mas eu não preciso falar sobre nada isso, não preciso porque minha mãe sobreviveu ao COVID 19. Eu não a perdi. Fui capaz de cuidar dela em casa por algum tempo, de vê-la se fortalecer e desabrochar a cada dia, como um passarinho machucado que vai se recuperando. Consigo ligar para ela todos os dias, contar da minha vida e ouvir sobre a dela, posso pedir oração e conselhos, posso me alegrar com o seu restabelecimento e ser grata a Deus.

     Posso, porém, relatar a perda de outras pessoas, como a daquela mãe-esposa-irmã-amiga cujo funeral presenciei recentemente. Posso descrever a perplexidade de sua família diante de uma morte totalmente inesperada, que aconteceu em poucas horas, principalmente porque não havia UTIs disponíveis, nem mesmo no sistema particular. Posso testificar da dor de sua filha, chorando diante de um caixão lacrado, sem ter a chance sequer de se despedir de uma forma adequada, minimamente satisfatória, de alguém que no dia anterior estava viva e sadia. Posso tratar do coração partido de seu marido, fragilizado por um sentimento atroz de abandono e da tristeza desoladora de seus parentes e amigos. Posso dizer da confusão de um pastor, que sem encontrar nada a dizer, acaba caindo no lugar comum do texto de Jó, “o Senhor deu, o Senhor tirou”, recitado em voz trêmula e embargada e sem muita convicção. (Você saberia o que dizer em tal funeral?) Posso destacar a brutalidade de não se poder receber sequer um abraço ou um aperto de mão consolador, num momento desses, e da crueza da descida do caixão, feita de forma desajeitada pelos coveiros, com suas roupas de astronauta, compartilhando conosco o uso dessas máscaras medonhas, que tornam tudo ainda mais inverossímil. Posso dizer das lágrimas que me encheram os olhos diante daquela filha sofredora, que poucos dias antes poderia ter sido eu.

     Ou posso também mostrar o caso de uma ex-aluna, cuja ceifa colheu não só seu pai, mas também seu avô, sua madrinha, quase leva seu esposo e ainda tenta levar sua mãe. Como lidar? O que dizer? Como confortar?

     Também posso, quero e devo falar sobre a perda de Empatia e Sensibilidade que nos cerca, de como está virando banalidade ouvir que mais de mil pessoas morreram de COVID 19 hoje no Brasil. Posso falar de como os cristãos perderam a habilidade de “chorar com os que choram” e usam textos bíblicos à revelia como a tentar exorcizar a tristeza legítima daqueles que tem sofrido perdas irreparáveis e, sim, desnecessárias, causadas por uma gestão de crise esdrúxula e que visa utilizar o caos social como estratégia de manutenção do poder. Até quando iremos deslegitimar o direito das pessoas, inclusive o dos cristãos, de chorar seus mortos e de ficar perplexos diante das adversidades em nome de um triunfalismo hipócrita que, na verdade, visa ocultar interesses e idolatrias político-ideológicas? Deus nos envia, sim, o Consolador; Deus é sim soberano e Deus também é justiça. Haverá prestação de contas por todas essas vítimas da ganância, da cobiça e do vício pelo poder. Eu creio e aguardo esse dia!

Posso falar da perda de Humanidade daqueles que justificam as mortes dessas pessoas - mortas por falta de cuidado, por falta de equipamentos, por falta de investimento adequado de verbas, por falta de bom senso, por falta de humildade – atribuindo-as à vontade de Deus; sem perceber que acreditar nisso equivale a dizer, por exemplo, que os mais de 20 milhões de pessoas mortas só na Segunda Guerra Mundial, desse número 6 milhões de judeus, assassinados como ratos pelos nazistas, morreram porque “Deus quis”. Até quando culparemos Deus pelas consequências de nossas péssimas escolhas e de nosso caráter sórdido?

Posso falar da perda do sentimento de Fraternidade daqueles que gastam seus dias discutindo inutilidades em redes sociais, defendendo medicamentos que sequer sabem, de fato, se funcionam, apenas para vestir a camisa desse ou daquele viés político. Agindo com irresponsabilidade, prometendo falsas curas e falsas blindagens virais, colocando pessoas mais simples em risco e enriquecendo farmacêuticos, sem sequer se dar ao trabalho de consultar um médico especialista para saber do que se trata. Posso falar da realidade de se estar dentro de um hospital, conversando com médicos que, realmente, estão tratando pessoas com COVID 19 e ouvir da boca deles que tudo isso é pura ignorância e desserviço à saúde pública.

Posso discutir sobre a letargia e da perda de Vitalidade que vem se apossando de nossos corações e mentes, inevitavelmente afetados pelo tamanho dessa tragédia, que, mesmo diante de um mecanismo de negação, segue a empobrecer nosso aparelho mental, dia a dia, enfraquecendo nossa produtividade, nossa criatividade, nosso ânimo e nossa alegria. Como disse recentemente um psiquiatra na TV, “ninguém que possua um sistema límbico é capaz de sair ileso da morte de milhares de pessoas; a não ser que seja um psicopata.” Até mesmo o sorriso social e o abraço de conforto nos está vetado. Tudo isso só pode reduzir nossa capacidade de vínculo e daí ao enlouquecimento é um pulo...

Só visitar as redes sociais para encontrar evidências da insanidade coletiva; vai desde a notícia de que a China usa célula de feto abortado para fazer vacinas (devemos essa ao movimento Pró-Vida e ao movimento Anti-vacina), até o ping-pong dos pró x contra cloroquina.

Minha tentativa de sobrevivência nesses tempos sombrios tem sido investir no mix: Fé + Silêncio + Arte + Natureza. Recomendo. Não estou eufórica, mas tampouco deprimida; não estou otimista, mas também não fico pessimista; não entrei em desespero, mas não vivo em falsos triunfos; não atribuo as consequências dos meus erros ao destino ou `a vontade divina, mas também não me culpo por coisas que não me dizem respeito. Se eu conseguir chegar ao final dessa pandemia viva, sabendo quem sou, o que faço e a quem pertenço, já estarei infinitamente grata. Que Deus tenha piedade de nós!
    
    
    
    






[1] Se eles dizem:
Quem se importa se mais uma luz se apagar?
Num céu de um milhão de estrelas.
Que cintila, cintila...
Quem se importa quando o tempo de alguém se acaba?
Se um momento é tudo o que somos.
Somos tão rápidos, tão rápidos...
Quem se importa se mais uma luz se apagar?
Bem, eu me importo.