A pele que habito

A pele que habito

sábado, 24 de dezembro de 2016

Do sentimento de não estar de todo...


Sempre serei como um menino para muitas coisas, mas um desses meninos que, desde o começo, carregam em si o adulto, de maneira que, quando o monstrinho chega verdadeiramente a adulto ocorre que, por sua vez, carrega consigo o menino e nel mezzo del cammin dá-se uma coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas para o mundo.

Julio Cortázar in ‘Valise de Cronópio’

 

 

Quatro mundos. Quatro gerações. Quatro mulheres. Os mesmos olhos.

Par de olhos castanho-avelã.

Pequenos. Expressivos. Argutos. ‘Estranhos’.

Transmitidos em linha direta de mãe para filha, de avó para neta, de bisavó para bisneta.

Pequenininha, Khadija, Elisete, Danielli.

Toda uma dinastia de olhos de pomba, como diria meu avô, se ainda fosse vivo.

Os mesmos olhos no espelho, olhares diferentes na vida.

Genética e metafísica.

A verdade é que em alguns dias me sinto o velho no barco, de ‘A Terceira Margem do Rio’. Ao contrário dele, porém, vivo e visito os meus, participo. Depois embarco e sigo em mais idas e vindas, infinitamente.  Como Cortázar, eu estou lá, mas não de todo. Parte de mim segue mata virgem intocada, outra parte vive de intercâmbios, outra parte eu dou de graça, sem receber pagamento e sem afetos gratos, apenas doo, como mandato, vocação, minha parte do trabalho.

Segundo meu contista predileto, essa justaposição que se manifesta no sentimento peculiar de não pertencer de todo em qualquer das teias que a vida nos arma, verdadeiras arapucas em que somos ao mesmo tempo caça e caçador, é característica de um temperamento que não renuncia à visão pueril como preço da vida adulta. Em seu ensaio, homônimo deste texto, comenta que muitas vezes era maior que o cavalo que montava, mas que era feliz em seu inferno e escrevia, sempre um pouco para lá ou para cá de onde devia estar.

“Desde muito pequeno assumi, com os dentes cerrados, essa condição que me separava de meus amigos e por outro lado os atraía para o raro, o diferente, o que metia o dedo no ventilador.”

Para o escritor argentino, esse homem gigantesco e universal, se escreve justamente por não se ‘estar lá’ ou por se ‘estar a meias’. A escrita seria uma espécie de aceitação do desafio do ‘estranhamento’, de cada vez em que esse ‘não pertencimento’ se revela de forma aguda. O texto ou poema seria uma espécie de petrificação deste ‘estranhamento’ – uma materialização do que ‘o poeta vê ou sente em lugar de, ou ao lado de, ou por debaixo de, ou ao contrário de’, esse de evocando aquilo que os demais veem tal como acreditam que algo de fato seja, sem crítica e sem deslocamentos de perspectiva. Daí o fato de não ser sempre compreendido, aceito, acolhido: O louco.

Cortázar escreve esse ensaio quase que numa defesa do insólito contido em suas obras: “Há como um acordo de cavalheiros entre a circunstância e os circunstantes: tu não me tiras de meus costumes e eu não te ando esgravatando com um palito.” “Para que voltar ao fato sabido de que quanto mais se assemelha um livro a um cachimbo de ópio mais satisfeito fica o chinês que o fuma, disposto no máximo a discutir a qualidade do ópio mas não seus efeitos letárgicos.”

Mudam-se as causas e as razões, ficam os ‘estranhamentos’.  Ao considerar o homem de seu tempo um ‘ingênuo realista’ ao invés de um ‘realista ingênuo’, atribui a uma crença cega na informação filosófica e histórica a culpa por uma vida ‘vê lá se crê’, uma inabilidade para discussão metafísica que o aprisionava a uma visão tolerável, mas incompleta do mundo.

Para o autor de contos como ‘Casa Tomada’, ‘Las babas del diablo’, ‘Continuidad de los parques’, ‘Carta a una señorita en Paris’ e ‘El outro cielo’, numa discussão que faz questão de considerar menos da lógica que da semântica, os egoístas, ou os que optam por manter a lucidez, não se obrigando à responsabilidade ante o desafio do ‘estranhamento’, não servem para escrever poesia, prosa ou filosofia.

Falecido no já emblemático ano de ‘1984’, Cortázar não conheceu o insólito do mundo virtual, ou da era globalizada, ou da geração politicamente correta. Independentemente de suas aspirações ou crenças políticas, frutos de uma América Latina sempre filha do fantástico com o barroco e mãe do maravilhoso, logo repleta de ‘entre-mundos’ a se considerar, talvez o maior de todos os ‘estranhamentos’ a que precisaria dar conta, seria o da ‘falta de estranhamento’ da maioria, ou talvez de um acovardamento, diante de uma realidade repleta de fissuras aparentes.

Este ano houve de tudo.

Tragédias, comédias, dramas: pessoais e universais.

Morreram muitos seres humanos relevantes, entre eles meu caro Dr.Shedd, cuja inteligência e exemplo de santidade são insubstituíveis. Alguns deixaram obras de adeus pungentes, como David Bowie e seu belíssimo ‘Black Star’.

Por aqui, roubou-se a Petrobrás e a dignidade do povo brasileiro, a pouca que ainda existia, guardada a sete chaves no cofre de uma confiança juvenil na tal da ‘nossa democracia’. Foram-se as aposentadorias, ficaram-se os dedos, magros. A pseudo-educação agoniza em toadas marxistas de araque, na voz de professores acometidos da lepra do funcionalismo público e de alunos semi-analfabetos, ou na incompetência de ministros que nunca pisaram numa sala de aula de escola básica. Sofremos o golpe do golpe do golpe e quem tinha tanta certeza ao ir para as ruas, de vermelho ou de verde-amarelo, agora não sabe mais de nada e ouve rádio tentando entender as votações feitas na calada da noite, enquanto se chora corpos jovens esmagados em destroços. 

Nas conversas da vida, descubro entre surpresa e enternecida que ainda existem monarquistas no Brasil, esperanças políticas de qualquer ordem sempre me soam sonho de criança. Desconfio. De tudo e de todos. Dos mestres e dos messias anunciados. Sou rebelde por natureza. Não vejo bondade em quem luta por poder. Vejo e ouço denúncias de conspirações por todo lado. O colapso declarado que se aproxima talvez de fato exista, com ou sem ele precisamos continuar vivendo.

De forma discreta sou aliciada por seitas judaicas, cristãs e pagãs, algumas políticas, outra religiosas. Não me sinto política, eventualmente me sinto religiosa. O paradoxo se encontra no fato de que a seita separa e a religião religa. Tudo que nos afasta do amor e da vida não pode provir da luz divina. Deus é amor! Os que me acusam de simplismo, loucura ou de falta de lógica me elogiam. Jesus era simples, louco e ilógico. Que amor é esse que torna alguém capaz de dar a própria vida por seus amigos? E morte de cruz...

No ‘entre-lugar’ em que vivo, aceito que homens podem ser tão obcecados quanto mulheres podem ser histéricas e que homens podem ser tão histéricos  quanto mulheres podem ser obcecadas. No ‘entre-lugar’ sempre se enxerga mais e melhor. Revejo mil vezes minhas concepções de amor. Ainda estou mais para a esquerda ou mais para a direita, mais para cima ou mais para baixo. Problema de cardápio? Talvez o ingrediente errado no prato seja eu, sempre eu, talvez não. Talvez para ingredientes exóticos exijam-se pratos sofisticados, talvez não, ‘Ratatouille’ é feito basicamente de berinjela e abobrinha e rima perfeitamente com ervas de Provence. Guardo o pouco romance que ainda me resta, protegido num relicário branco, feito de diamantes, tule e açafrão, escondo no mais profundo do peito e teimo na minha característica e resoluta altivez em “trazer à memória o que me pode dar esperança.”

Perco amigos, ganho amigos. Descubro que não tolero invasões e me defendo. Descubro que às vezes a maior prova de lealdade é abandonar e deixar a pessoa aprender a existir. Paro de culpar minha infância nômade por minha opção pelo rio. Não existem culpados, existe como eu vivo: o barco no rio sou eu, sou eu no barco do rio, eu sou o rio.

Cuido do meu pai doente, eu o vejo frágil, menorzinho e com medo da solidão. As esperanças de uma vida titubeiam, mas a fé resiste. “Estou indo orar por vocês, pecadoras...” e ri antes de sair. A menina em mim se encolhe, enquanto a mulher se expande, na proporção em que as manchas da velhice se multiplicam em suas mãos brancas, aquelas mãos grandes que eu segurava até dormir em noite de pesadelo. “Pai, fica mais um pouco.” E ele fica.

Estudar Virgínia Woolf me encanta e me enfurece. É tanta coisa importante e linda para se aprender no tempo tão curto de uma vida humana, já vivi metade e os anos passam sem pausa para sábados.

Existe tanta beleza na Arte, na natureza, na Literatura e na vida. Existe tanta feiura.

Extenuada dessas discussões de gênero vazias e improdutivas.

Mulheres escrevem. Mulheres criam: filhos e obras de arte. Mulheres vão para guerra. Mulheres lideram e governam. Mulheres pensam, amam e fazem sexo. Mulheres nascem, crescem e morrem. Mulheres formam famílias. Mulheres cozinham e cuidam da casa. Mulheres bordam e fiam. Mulheres fazem sermões. Mulheres existem. Homens também.  Mulheres são boas e más. Mulheres são inteligentes ou não. Mulheres agridem ou são agredidas. Mulheres erram e acertam. Homens também. Importa é proteger o mais fraco do mais forte insano que o assedia. Inclui-se fetos. Isso não tem a ver com sexo, tem a ver com justiça e com honra. Essa palavra quase datada.

Oro menos nesses dias.

Não por falta de fé ou crise espiritual, mas porque finalmente aprendi a pedir menos e a ser mais grata. Existe tanto a agradecer e existem tão poucos corações agradecidos. Sabemos tão pouco sobre Deus e a nossa vaidade nos impede de aprender mais. Deus não está em caixas. Deus não é homem. Como diria Leibniz, o conceito de bondade divina não é o conceito de bondade humana. Deus conhece todas as ideias possíveis e suas relações, sabe de cada causa e consequência, sabe de todas as Daniellis possíveis e, sendo otimista como o filósofo alemão, considerado o homem do barroco, o que vivemos é, dentre todas as possibilidades e amálgamas diretos dessas possibilidades, o ‘melhor mundo possível’. Borges desenvolve esse conceito em ‘O jardim das veredas que se bifurcam’ e problematiza ao incluir nessas ideias possíveis a variável da escolha humana. Talvez sejamos todas as possibilidades. Talvez existamos nessas versões infinitas de nós mesmos, pelo menos na mente de Deus.

O Natal deste ano chega triste. Ninguém tem conseguido muito se obrigar a pensar na benção do nascimento do menino Jesus e o que ele representa. O cristianismo segue dormente nos países livres do ocidente, mas ferve nos países perseguidos. Acostumados ao consumismo do período, a multidão de desempregados amplifica a sensação de impotência diante do caos instalado no Brasil e em nossas vidas pequenas. Foram tantas as lutas, dores e privações deste ano. Calejados, muitos substituíram a esperança do Ano Novo por um medo do que está por vir.

Alepo com seus mortos, a Síria que se espalha pelos quatro cantos do mundo, levando novas de desesperança. Igrejas vazias. Igrejas cheias e queimadas. Meninas sendo vendidas como escravas sexuais pelo Estado Islâmico, leiloadas pela internet, crianças...

O que já foi meu maior desejo virou pó de cometa diante da força do tempo e das circunstâncias. O que antes me entristecia, hoje é alívio. Sou quase um Brás Cubas, aliviado por não transmitir à geração seguinte a miséria humana. Quantos ‘nãos’ de Deus acabam por ser razão de gratos louvores? Hoje quando brinco com bebês, olho bem fundo em seus olhos e lamento sua sorte, oro por dentro pedindo misericórdia, pelo menos por aquele. Sim, muitas vezes acabo achando que o purgatório é aqui. Ainda assim, acordo animada todo dia, brinco com meus gatos, cuido das plantas, leio, ouço música, faço tricô e agora croché, cozinho, converso, abraço, beijo, tiro fotos, estudo, trabalho, vou à feira e ao cinema, gosto do meu cabelo e do meu perfume, compro enfeites de Natal, escrevo, escrevo cada vez mais. Precisamos continuar vivendo e cumprir nossa jornada com galhardia, cuidando da nossa família ou daqueles que nos foi dado proteger.

Se é para falar do assunto:

A palavra ‘família’ é derivada do latim famulus, que significa escravo doméstico. Conceito derivado da Roma antiga, para designar um novo grupo social que surgiu entre tribos latinas, quando se introduziu a agricultura e a escravidão legalizada. Milênios depois, família transformou-se em sinônimo de laços consanguíneos ou vínculos parentais. Se na infância, viver em família é sinônimo de sobrevivência, na vida adulta passa a ser escolha pessoal. Numa transposição conceitual, eu diria que o que define família é uma inclinação específica, involuntária e mais do âmbito do afeto, que por razões nem sempre racionais, embora sempre da ordem da honra, nos leva a uma entrega consciente. Família são as pessoas que você elege para servir em completa e sagrada vassalagem. Família é o único lugar em que um ser humano é rei e escravo simultaneamente. Não gerei família, mas fui gerada por uma. Talvez um dos meus maiores fatores de ‘estranhamento’ seja esse complexo de vira-lata que nos torna mais íntimos de estranhos e mais orgulhosos de ancestralidades das mais remotas do que daqueles que limparam nossas bundas e nos permitiram crescer. Não, amigo não é família que a gente escolhe. Amigo é amigo (essa coisa ímpar, rara, sofrida e maravilhosa). Família é família (essa coisa ímpar, rara, sofrida e maravilhosa). Amor é amor (essa coisa ímpar, rara, sofrida e maravilhosa).

Olho para os ocos do mundo e tento ainda destacar o que de belo existe.

Não porque eu seja alguma força da natureza, excepcional, admirável ou virtuosa. Apenas porque preciso limpar o ar que enche meus pulmões, tirar dele esse metal pesado que nos polui a mente e emporcalha a alma. Encontrar a beleza é a única possibilidade de sobreviver nessa nossa jornada cada vez mais árida, para a qual temos cada vez menos recursos.

É muito provável que eu chegue às portas do Reino, nua, faminta, ferida e esgotada, mas pela fé, chegarei. Sei que nada me prepara para o que lá verei, porque nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano, o que Deus tem preparado para os que O amam, mas eu creio no Senhor dessa promessa com todas as forças do meu coração inconstante.

Encerro esse texto ‘estranho’, me despedindo desse ano ‘estranho’, com um poema ‘estranho’, escrito em um dos meus processos de ‘estranhamento’. A você, leitor ‘estranho’, desejo um Natal de Luz verdadeira e alívio de dores e um 2017 mais ameno.

 

 

 

As Asas de Sabrina

 

Se no silêncio houvesse espaço

Poderia armazenar as lágrimas,

Os grãos de areia e os vagalumes...

Haveria então alguma esperança viva

Para os cavaleiros de além-mar.

 

São brancas as saias e as aias das damas

Que se perdem nas fogueiras santas,

Como borboletas negras atordoadas:

Ophelias, Judiths, Marias,

Todas sem par.

 

No coração da Manuela velha

Existia um cofre e um tesouro putrefato

Que cheirava a Circe, Nêmesis e Lorelai.

 

Existe uma leveza naquele sussurro.

Um apreço de folha solta pululante.

Uma escolha, uma possibilidade.

Aleia florida ao sol.

E se em vez de algemas fossem asas?

Sabrina canta e voa

Em aventura sorridente.

Seu beijo é de prata derretida, incandescente.

Sua travessura é perene.

Segue curando, emendando as falas.

 
 

Canta-se uma vida inteira sem saber a melodia

Ou voa-se com asas de fadas abertas,

Rápidas como as de um beija-flor carnívoro

Que não suga néctar, arranca pétalas.

Morre-se no frio de um abandono febril.

Impensado.

Saudade que segue o esquartejamento.

Voa, bela Sabrina.

Voa enquanto o mel não lhe cola as asas.

Livra-te de morrer na cera derretida

Das velas da comunhão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O Silêncio Ensurdecedor



‘Um coração duro não é uma proteção infalível contra um miolo mole.’
C.S.Lewis – A Abolição do Homem

‘À certa velocidade do barco, a onda torna-se tão dura quanto um muro de mármore.’
Giles Deleuze – A Dobra

‘The human heart is like a night Bird. Silently waiting for something, and when the times comes, it flies straight toward it.’
Haruki Murakami – Colorless Tsukuru and his Years of Pilgrimage

‘Na noite, desprotegido
E em estupor vive o mundo;
No entanto irônicas luzes
Aqui e ali mostram seu brilho,
Onde quer que troquem os
Justos as suas mensagens:
Possa eu, como eles composto
De Eros e pó e assediado
Por negação e desespero,
Ser também iluminado.’
W.H.Auden – ‘1º. de setembro de 1939’

         Ao nascerem, os bebês percebem o mundo com o corpo todo. 
         Diferente dos adultos, quase completamente absorvidos pelas sensações dos cinco sentidos básicos e, exatamente por ainda não tê-los desenvolvidos, os recém- nascidos contam com cada parte de seu corpo, interna e externa, para sentir e interpretar o mundo. Bebês contam com no máximo 20 centímetros de visão quando nascem, por exemplo, distância aproximada entre o seio e o rosto da mãe, também apresentam extrema sensibilidade à luz e aos barulhos fortes, o que os inabilita inicialmente a este tipo de registro de experiência, que pode inclusive ser bastante traumática. Dizem os estudos na área Neonatal, Psicossomática, da Psicanálise Infantil e da Teoria da Intersubjetividade Inata, que a primeira vez que experimentamos a sensação de fome, a percepção é a de um aniquilamento iminente e que aqueles sonhos que passamos a vida tendo, sobre estar caindo, são reflexos do terror de cair do colo que nos segurava.  Discussões psicológicas a parte, o fato é que, no que diz respeito à percepção, parece que partimos de um início em que cada célula é suscetível a estimulação e percepção, para a construção de uma espécie de couraça corporal que nos limita a cinco canais básicos de aquisição, registro e transmissão de informação: Visão, Audição, Tato, Olfato e Paladar, sendo que esses dois últimos, devido à péssima condição atmosférica e do alimento que alguns são obrigados a aceitar diariamente, tendem a enfraquecer, até por serem os mais sutis.

Obviamente, a pós-modernidade é absurdamente visual, a consequência disso está na redução do toque e da presença física como manifestação afetiva e de troca concreta em qualquer esfera (mensagens de texto tomando lugar do encontro, num sentido amplo), na redução da expressão sexual, condicionada ao voyeurismo da indústria pornográfica (mais lucrativa do mundo), e como ressaltarei aqui, no comprometimento da possibilidade de ouvir, tanto no quesito sonoro, propriamente dito, como no cultural e no relacional. Num mundo dominado pelo Visual, tudo se torna abstração e imagem, fantasia e forma – mundo fantasmático e, por isso mesmo, do campo da loucura.
        
        Hoje cedo li sobre um estudo feito em universidades americanas comprovando algo que há tempos venho observando em pacientes e amigos – o uso contínuo de antidepressivos acaba por reduzir não apenas a libido, mas também o desejo de relacionar-se afetivamente com outros seres humanos e de vivenciar novas experiências. Essa obsessão analgésica de nossa geração sempre me remete ao Admirável Mundo Novo do Huxley ou ao ‘soma’ - droga utilizada como condicionador comportamental por toda a população no livro, lembrando que a palavra soma vem do grego antigo e significa corpo, termo que em si só já merece um futuro post exclusivo. Só para ter-se uma ideia, a venda de antidepressivos cresceu 44,8% ano passado, apenas no Brasil, segundo dados da OMS.

Sendo, pois, todos os animais, racionais ou não, idealizados e produzidos como seres perceptivos e relacionais, o homem desde o útero percebendo o que acontece ao seu redor, fazendo tentativas de se comunicar, de compreender seu entorno e respondendo a toda essa experiência de forma expressiva, qualquer pesquisador do comportamento humano e animal, seja qual teoria for que fundamente seu trabalho, concorda que é inerente e indispensável aos seres vivos a troca de informações com o meio - em todos os níveis e de todas as formas possíveis. Filmes como ‘O Naufrágo’, ‘Gravidade’ ou ‘Perdido em Marte’ (entre outros) estão aí para ilustrar o quanto pode ser mortal a impossibilidade dessa troca.  Assim, o ‘desligamento’ sensorial e, consequentemente intelectual e afetivo, tende a nos trazer consequências escabrosas, comprometendo de forma irreversível um equilíbrio mental e corporal, desnecessário dizer social, que é, em si, exigência básica para a manutenção da vida.
            
Sobre o silêncio que nos ensurdece...
            
             Mês passado refiz meu ritual de férias e fui passar oito dias de frente para o mar (qualquer mar funciona para mim, o de Mongaguá, o de Acapulco ou o da Cote D’Azur, o que me importa é a coisa em si, o bom e velho mar, seja verão ou inverno, se estou sozinha ou acompanhada), experiência das mais lindas e revigorantes desse mundo, algo que uma das minhas autoras prediletas descreve como ninguém[1]. Chego lá sempre ansiosa pela purificação que o vento grosso de sal e o som específico do movimento das ondas sempre oferecem, de forma gratuita e sem critério de seleção, disponível para qualquer ser vivo sensível e um pouco sincero. Esse pequeno oásis emocional, aperfeiçoado pela luz do sol da manhã (filtrado pelo protetor 70, exigência da minha ascendência caucasiana, hoje em dia tão execrada por aí...rs..) sempre foi capaz de reabastecer a energia que preciso para mais um ano de trabalho, estudos, exercícios, relacionamentos, experiências, trocas e riscos, energia para mais um ano de alegrias indizíveis e, certamente também de privações desanimadoras – ano de vida, ano de luta, ano de escuta.

            Dessa vez, porém, após varias tentativas frustradas de apenas ‘ouvir o mar’, dei-me por vencida diante de um fenômeno que aqui chamarei de ‘El pueblo’, algo que entope meus canais de comunicação com o meio e me impede de entrar na frequência que desejo e preciso, algo que me absorve e me desespera, causando um sentimento de tempo perdido e um enorme cansaço.

            ‘El pueblo’ aqui não tem nada a ver com elitismos ou preconceito (essa palavra que de tão dita por aí, tornou-se vazia e saída fácil de demagogo sem mais discurso). Fui criada no meio do povo, princesinha cigana, filha de pai pastor de comunidades menos favorecidas e mãe professora de história, ambos sempre ocupados em atender os mais carentes e os incompreendidos. Dei aula de Bíblia em cima de tábuas colocadas sobre córregos imundos nos confins da zona leste de São Paulo, dividida entre explicar para as crianças sobre a Trindade e prestar atenção se alguém não estava caindo no rio...rs...’El pueblo’ aqui é tirado mais do sentido espanhol mesmo do termo, de bairro ou vizinhança, das pessoas que vivem ao nosso redor, nossos ‘conterrâneos’, ‘El pueblo’ revela os detalhes nada discretos da atitude geral das pessoas com quem vivemos e convivemos, nossas pessoas, pessoas que fazem parte de nós e que são frutos também de nossa influência (ou da falta dela). Nesse caso em específico, ‘El pueblo’ fala de uma tara pelo ruído, pela necessidade visceral que temos pelo barulho, por algo sonoro (nada sutil) que preencha os espaços do ar e, inclusive, entre as moléculas que nos circundam - um abraço vocal que nos entorpeça e entulhe qualquer possibilidade de vazio interno ou externo, qualquer buraco que nos cause angústia, que nos obrigue a enfrentar nossa dor e a refletir. Essa ânsia por preencher o vazio é a gênese de todo consumismo, de todo exagero perceptivo ou sensorial e é a mãe de todas as obsessões.

            Diante do som dos quiosques – altíssimo e raramente composto por boa música (e olha que tenho um gosto musical até que bem eclético...rs..) aos gritos dos ambulantes e dos pais (que não conseguem se alegrar com o saltitante burburinho das crianças), passando pelo ‘chaka-chaka’ das caixas de som dos carros turbinados dos mocinhos-bobocas de plantão, pelas conversas escandalosas das matronas-gralhas que calam o grasnar das gaivotas, ou pelo ronco dos aviões com  propagandas de políticos, de bebida  e de camisinha, tudo isso em proporção tão desmedida que o mar se cala e seu silêncio, para quem percebe, é ensurdecedor. À nuvem de poluição sonora se unem as angústias e questionamentos de meu próprio peito, agitado e insone, sempre lutando por um pouco de paz, geralmente adquirida com enorme esforço racional e, então, todos juntos, silenciamos as ondas, as conspurcamos com um sorriso cúmplice de trevas soltas. Só me resta uma playlist de Spotify – talvez ‘sons da natureza’? Sinto-me protagonista em um episódio de Black Mirror.

            O fato de perder algo para mim sempre tão certo e prazeroso me chateou demais. Aproveitando a pendência de trabalho de minha amiga, a chuva e a distração dos meus pais com meus sobrinhos, me enfiei no quarto com um bom livro e só dei por mim, uns dois dias depois, quando minha mãe, que me compreende não com a cabeça, mas com as vísceras, com o sangue e com o coração, abriu a porta e disse: - Precisa sair da toca, senão vai virar tatu..rs...

O resultado do silêncio assombroso do mar em mim foi uma espécie de dissociação – Ambos estávamos lá, mas não estávamos! Não conseguia integrar a experiência ao fato, mal enxergava a praia, nem mesmo quando enfiada até os joelhos dentro da água, insistindo em caminhadas tensas pelo pavor de ter perdido de vez algo fundamental, algo que durante anos tinha sido a mola mestra da minha serenidade, esse ponto de contato garantido com o sublime, com o indizível, com o incomensurável, com a natureza criada por Deus.

            Alguns talvez achem tudo isso engraçado e um tanto dramático (embora eu não seja lá de muitos dramas...rs..). Outros dirão que devo escolher melhor as praias que ando frequentando. Ainda outros me tirarão de chata inveterada, esquisitona e misantropa, o que não é inteiramente falso, já que desde a infância vivo todas as idades ao mesmo tempo, menina-velha, moça-mulher. A verdade escondida atrás de ‘El Pueblo’, porém, é que perdemos a serenidade como possibilidade, como escolha, como exercício de liberdade e o fizemos em massa. Com essa perda, foi-se também o espaço necessário para o pensamento e com ele a esperança da reflexão. O silêncio não carrega mais em si a quota de alívio que sempre nos prometeu, nos antecipamos a ele e a qualquer possibilidade de desconforto que o ‘vazio’ dessa espera possa trazer – ainda que tal sofrimento possa ser fruto de pura paranoia coletiva. Calamos a ‘voz do mar’ e seu silêncio é uma faca no peito.

            Essa vida que decidimos viver é um amálgama de excessos: excesso de sons, excesso de imagens, excesso de pessoas, excesso de possibilidades de escolha em todos os aspectos. A voracidade nos domina, nos engolfa, nos entala e, na impossibilidade de engolir e digerir todo um universo de uma vez, estamos constipados, desnutridos, famintos e desesperados. Abrimos mão de organizar nossa vida e nosso consumo em um tempo e em um espaço possíveis para a existência humana e terrena, com isso, desistimos do som de nossas próprias consciências, desejos e sonhos, cada vez mais despalavrados, mais primitivos, mais inconscientes. Junto do silêncio, dia a dia sepultamos a ideia de privacidade – não se chupa mais um único picolé sem se exibir a língua roxa no Instagram, manda-se ‘nudes’ para gente que mal se conhece, ideias, sentimentos  e fatos íntimos são explorados pelo voyeurismo de qualquer um. Viramos o circo de todo mundo e para alguns ‘ser falado’ é sinônimo de importância, talento e celebridade. Fico pensando quando foi que a vida dos outros ficou tão mais interessante que a nossa própria. O que será que existe de tão divertido, desafiador, edificante ou belo na sunga branca encardida que o vizinho posta no Facebook, fazendo poses de ioga em cima de uma prancha de Stand-Up? E o que de tão erótico existe na vida sexual alheia (afinal, se é a alheia, não é a nossa, né?)? Depois eu sou a estranha..rs...

          Voltei para casa triste, cansada e desanimada.

          Graças aos céus, alguns dias depois, visitando o sul de Minas e enfiada no coração da Serra da Mantiqueira, muito bem instalada numa cabana praticamente dentro do rio, passei dias respirando um ar fino, impregnado de eucalipto e capim-limão. O friozinho delicioso – mesmo no alto verão – acalmou meu pensamento e embalou meus sentimentos. E pude enfim gozar do silêncio e do som (som de água de rio, de água na pedra, de água corrente e constante, de água transparente, de água pura e doce, beijo gelado num coração fervente).

        Eh, as estações seguem passando, só não se transforma quem não está vivo. Prestes a começar o segundo tempo da vida, volto a ser garota de montanha, de frio, de hortênsias, de trilhas, de beija-flores e de vagalumes. Visto minha camisa de flanela, as botas de caminhada, prendo o cabelo longo e assumo em sorrisos soltos essa atmosfera tão mais leve e tão mais fresca. Tempo de acolhimento e do conforto simples de uma colcha de lã e de lenha queimando na lareira – essa imagem tão bela do fogo que crepita aqui dentro, enquanto o vento frio refresca lá fora. Em uma palavra: adorável!

          Sentada na varanda da cabana, caderno, caneta e livros me fazem companhia. Penso, entre sapeca e irônica, se devo ceder a mais um copinho de pinga de alambique. Bem agasalhada, deixo os pés descalços para sentir o clima e dou risada da brisa fria que me gela o nariz. Diante de mim, apenas o balcão e o rio. Árvores enormes nos protegendo de tudo e de todos. ‘El pueblo’ é sereno aqui. Ouço o ‘chuá’ constante da água que desce suave numa cadência decidida, compasso perfeito com a percussão que levo no peito. Sinto a pele limpa e fresca, me sinto bonita e delicada como as flores que preenchem todos os cantos e todos os caminhos. O esmalte verde-militar que trago nas unhas combina com os outros mil tons de verde que vejo por todo lado e numa segunda voz, inúmeros passarinhos, pequenos e médios, vivos, próximos e confiantes entoam sua toada encantada, aboletados nos milhares de galhos das araucárias disponíveis – machos e fêmeas, tanto as árvores quanto os pássaros. Devagar vou ouvindo a garoa fina, um véu de noiva, flauta doce completando a composição. Encosto a cabeça sobre a cadeira, inspiro fundo o ar cristal da serra, meu coração treme e se expande: penso em todas as pessoas que eu amo e oro por elas com a insistência que Deus já conhece – tão pouco o que tenho para oferecer, mas o amor aqui dentro é sempre grande. Minha alma se solta e se estende como vela de navio em pleno mar, estou pronta para a vida outra vez. Novamente atravessei a névoa de morte que sempre ameaça e a venci. Penso em todas as coisas que quero fazer, penso em meus gatos, penso em meus maiores sonhos e desejos e aos poucos me reconfiguro, pedaço por pedaço. São tão raros os momentos realmente vivos dessa nossa existência terrena – ainda assim são a causa de continuarmos existindo.

            Dias desses assisti ao filme ‘Novíssimo Testamento’ e, entre outras coisas que achei interessante, existe essa revelação da data de morte para todas as pessoas e a partir dessa contagem regressiva, numa perspectiva um tanto previsível e bem kantiana da coisa, todos começam a repensar a vida e tomar atitudes mais conscientes e, por que não dizer, mais autênticas, mais valentes. Será mesmo que só a perspectiva da morte nos oferece subsídio para a coragem e para a suplantação das nossas neuroses e covardias? Será necessária uma vida inteira de amargura e solidão para nos tornar aptos a apenas abrir o peito e a boca, admitindo o óbvio? As algemas impostas por nossas racionalizações, medos, culturas, ídolos, falsos amigos, maus pais, maus mestres, afetos equivocados, invejas, baixa autoestima e escolhas ruins bastam para nos prender ao silêncio ensurdecedor eterno? Será que só a terceira idade liberta? E se liberta, liberta pra quê? Pra uma morte confortável? Espero sinceramente ser bem mais esperta que isso...

            Liberdade – conceito tão discutido, defendido, argumentado, equivocado e tão pouco experimentado. Sempre que alguém me diz que é livre, que temos escolhas, que livre arbítrio existe, automaticamente surge em meu palco mental uma imagem e uma música – a imagem é a da telinha dos murais do Facebook e de todas as outras redes sociais, a música é a parte de um refrão do Titãs “...Você tem fome de quê?”

            Barulho, bagulho, mau cheiro, mau gosto, lixo, poluição (sonora, visual, afetiva, cultural, ideológica, etc...etc) . Por enquanto, bastam alguns dias ouvindo o som da água pura do rio, do vento, das folhas, dos esquilos, dos pássaros (...) até os últimos sons daquilo que sentimos como VIDA e tudo volta ao lugar certo, isso servindo como uma espécie de espelho para minha voz mais íntima, para o caminho da intuição que tão poucos ainda conhecem, mas que quando encontrado sempre remete a algo maior, mais verdadeiro, melhor.[2] Por que você não para e deixa essa voz falar com você só um pouquinho? Do sussurro da brisa ao ronco gutural do mar, certamente ela tem muitas coisas a contar sobre esse amor que todos os dias arrebenta e refaz seu coração.

            Encerro com um poema da Sylvia Plath que, com sua voz sempre febril, louva a intensidade de uma vida não anestesiada, sem silêncios ensurdecedores, aberta e arriscada, ainda que dolorosa. Sylvia pagou um preço alto por sua intensidade, mas não se escondeu nela ou dela. Vivemos nessa geração eugênica, tão porca em seu higienismo, tão estúpida em sua pseudo-intelectualidade, tão desumana em sua luta por igualdades, tão louca em suas racionalizações, tão vazia em seus excessos e tão vulnerável em sua ausência de sentimentos. Geração que pune as emoções e castra as paixões, que faz da sensibilidade um defeito, da capacidade de contemplação uma fraqueza, da sexualidade uma moeda de manipulação e que torna o consumo seu valor absoluto. Nesse mundo criogênico eu fico com os poetas e suicidas.

Olmo
Conheço o fundo, ela diz. Conheço com minha própria raiz:
Você temia isso.
Eu não: Eu estive lá.

É o mar que você ouve em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada, era essa sua loucura?

O amor é uma sombra.
Como você mente e chora por ele.
Ouça: esses são seus cascos: se foram, como um cavalo.

Vou galopar a noite inteira, impetuosamente,
Até que sua cabeça vire pedra, seu travesseiro vire turfe,
Ecoando, ecoando.

Ou devo lhe trazer o som das poções?
Isso é chuva agora, esse silêncio imenso.
E esse é seu fruto: branco-metálico, como arsênico.

Sofri a atrocidade dos poentes.
Queimada até a raiz
Meus filamentos ardem e resistem, emaranhado de arames.

Agora me quebro em pedaços que voam como clavas.
Um vento assim violento
Não tolera testemunhas: preciso gritar.

A lua, também, não tem pena de mim: me arrastaria
Cruelmente, sendo estéril.
Seu esplendor me fere. Ou talvez eu a tenha pego.

Eu a deixo fugir. Eu a deixo fugir
Minguada e chata, como se depois de uma cirurgia radical.
Como seus pesadelos me possuem e me adornam.

Sou habitada por um grito.
Toda noite ele voa
À procura, com suas garras, de algo para amar.

Tenho medo desta coisa escura
Que dorme em mim;
O dia todo sinto seu roçar suave e macio, sua maldade.

Nuvens passam e se dispersam.
São essas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
É por isso que agito meu coração?

Sou incapaz de mais conhecimento.
O que é isto, esta face
Assassina em seus galhos sufocantes?

Seus venenosos ácidos sibilam.
Petrifica o desejo. Estas são os erros, isolados, lentos
Que matam, matam, matam.



           






[1] O sol ainda não nascera. O mar não se distinguia do céu, exceto por estar um pouco encrespado, como um tecido que se enrugasse. Gradualmente, conforme o céu alvejava, uma linha escura assentou-se no horizonte, dividindo o mar e o céu, e o tecido cinza listrou-se de grossas pulsações movendo-se uma após a outra, sob a superfície, perseguindo-se num ritmo sem fim.
Aproximando-se da praia, cada uma dessas ondas erguia-se, acumulava-se, quebrava e varria pela areia um tênue véu de água branca. A onda parava, partia novamente, suspirando como um ser adormecido cuja respiração vai e vem inconscientemente. Aos poucos, a faixa escura no horizonte clareou como se a borra numa velha garrafa de vinho se tivesse acomodado, deixando transparecer o verde de seu vidro. Ao fundo, também o céu se fez translúcido, como se ali baixasse um sedimento branco, ou como se o braço de uma mulher deitada sob o horizonte erguesse uma lâmpada, e faixas brancas, verdes e amarelas se espraiassem pelo céu como as varetas de um leque. Depois, a mulher ergueu a lâmpada mais alto, e o ar pareceu tornar-se fibroso, apartando-se da superfície verde, bruxuleando e chamejando em fibras vermelhas e amarelas, como flamas enfumaçadas que se alçam de uma fogueira. Pouco a pouco, as fibras fundiram-se numa só brasa incandescente, e a pesada cobertura cinza do céu levantou-se e transformou-se num milhão de átomos de um macio azul. Lentamente, transluziu a superfície do mar, fremindo e cintilando, até que as linhas escuras apagaram-se quase completamente. Devagar, o braço que sustinha a lâmpada ergueu-a mais alto, e uma larga chama apareceu enfim. Um disco de fogo ardeu na fímbria do horizonte e o mar inteiro acendeu-se.
Virgínia Woolf – As Ondas

[2] Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; e tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. (Ezequiel 36.25-26)