A pele que habito

A pele que habito

terça-feira, 31 de outubro de 2017

E nos 500 anos de Reforma Protestante...


...poderia escrever sobre Lutero e suas teses, sobre o quanto acho lindo o hino ‘Castelo Forte’ e o que ele significou na minha vida. Também poderia falar sobre todas as contribuições da cultura e da tradição protestante, que são inúmeras e de valor inestimável. Poderia talvez, fazer uma lista de outros grandes nomes da história da Igreja Reformada, como Calvino, John Knox, Zwinglio, John Wesley, Moody, Charles Spurgeon, William Carey, (...), até chegar aos meus queridos Dr. Shedd e Rev.Floyd, a quem tive a honra de conhecer pessoalmente aqui no Brasil. Existem tantos outros, alguns ainda vivos, incluindo meu próprio pai, que embora não seja famoso, é um homem obediente e perseverante na vida cristã e em seu ministério. Só que não sou especializada em História da Igreja e, apesar de gostar de ler sobre isso de vez em quando, realmente este assunto não domina as intenções da minha mente e/ou do meu coração.

...poderia também ficar discutindo mil pontos doutrinários em que protestantes e católicos discordam, ou em que protestantes históricos e pentecostais discordam, poderia até ser mais doméstica e comentar apenas os pontos em que as Igrejas Presbiterianas do Brasil, Independente e Conservadora discordam. Só que não sou teóloga, nem pastora, nem freira, nem mais professora de escola dominical (embora me convidem sempre para voltar a ser) e, embora goste de ler sobre isso de vez em quando, realmente o assunto não domina as preocupações da minha mente e do meu coração.
Decidi, portanto, escrever sobre algo que conheço e que me encanta: a vida das pessoas. No caso falarei da minha, sobre um aspecto importante dela, sobre a experiência de crescer e de ser educada dentro de uma tradição protestante reformada. Talvez você que é protestante também se identifique com várias coisas, talvez com nada. Talvez você que não é protestante não se identifique com nada, talvez com várias coisas. De qualquer forma falarei. Não para me gabar, para me lamentar ou para incitar brigas ou pedir reconciliações, mas apenas para contar como foi e como é, crescer num ambiente onde a Teologia e a Espiritualidade (ao menos como intenção) fazem parte do cardápio do dia.

A coisa em si já começou meio curiosa. Meu avô paterno era protestante, minha avó paterna católica. Meu pai já cresceu frequentando as duas igrejas e tendo que fazer lá dentro de si as comparações necessárias para um dia tomar uma decisão, que veio a seu tempo. Minha mãe era neta de católica, filha de pai agnóstico e mãe ‘meio-católica, meio-mulçumana’, sempre muito religiosa, foi até anjo de procissão e embora seja esposa de pastor, ativa na Sociedade Auxiliadora Feminina, ainda guarda sua foto de primeira comunhão.

Como toda criança de família católica, fui batizada por um padre. Como toda criança de família presbiteriana, meses depois fui batizada por um pastor presbiteriano. Carrego Cássia no nome, mas nunca soube nada sobre Santa Rita, exceto recentemente, quando também descobri que todas as Nossas Senhoras são a Virgem Maria...rs...

Não cresci em família falando mal de padres ou jurando vingança aos católicos. Apenas aprendi que existiam interpretações diferentes sobre as doutrinas bíblicas e que os protestantes não tinham um Papa ou algo parecido. Obviamente com a idade aprofundei minhas pesquisas sobre o tema, mas não falarei disso aqui.

Lembro-me de ir com meu pai em algumas de suas aulas no seminário quando era pouco mais que um bebê. Lembro-me dele brincando com a gente de casinha no quintal embaixo de tendas de lençol enquanto lia a Bíblia e estudava inúmeros livros de Teologia. Lembro-me de ficar copiando letrinhas de grego koinê e de hebraico e de criar códigos com elas para ninguém saber o que eu escrevia nos meus diários. Lembro-me de abrir o coração para Jesus aos 7 anos, enquanto o Rev. Jaziel Botelho pregava sobre a Arca de Noé, após ter pintando um quadro sobre o tema diante de toda a igreja, durante a liturgia do culto - Lembro-me também de atormentar meu pai meses sobre o que teria acontecido com os peixes no dilúvio.

Lembro-me de ser Maria em várias peças de Natal, vestida com um manto azul, segurando o bebê enquanto os três reis magos traziam seus presentes e os pastores cantavam ‘Glória a Deus nas maiores alturas’. Lembro-me de dormir com minhas irmãs em vigílias, acomodadas atrás de púlpitos e de bancos. Lembro-me de que os dois primeiros palavrões que ouvi na vida foram, um na classe de escola dominical e um durante uma reunião de oração...rs..

Lembro-me da história de Amy Carmichael que salvava crianças na Índia e de todas as Escolas Bíblicas de Férias, quando competíamos para ver quem havia decorado todos os versículos da semana. Lembro-me de frequentar a Escola Dominical de forma ininterrupta por mais de 30 anos, exceto nos meses de férias ou em alguma ausência justificada esporádica - histórias bíblicas, valores da vida cristã, doutrinas e até seitas e heresias me foram ensinados por lá, tudo devidamente adequado à faixa etária e, eventualmente, também ao sexo. Lá pelos 19 anos, de aluna virei professora e ensinei crianças, adolescentes e depois jovens, por bastante tempo.

Lembro-me de ter sempre gostado muito de sermões. Talvez pelo fato de ter ouvido meu pai muitas vezes, acabei associando esse momento do culto a algo próximo e familiar. Ficava encantada sempre que algo novo saia de um texto que eu já conhecia, a Bíblia parecia sempre viva, sempre cheia de mistérios a serem revelados. Aos 13 já fazia umas críticas virulentas e de muito bom senso. Meu pai sempre achava muito engraçado quando eu pegava erros teológicos ou doutrinários nos sermões de seminaristas ou de outros pastores, embora obviamente isso acontecesse só lá em casa, nunca na frente deles...rs...

Lembro-me de cantar muito e sempre: em corais infantis, em corais de adolescentes, em equipes de louvor e em corais de adultos (cantei tanto e tantas vezes que, a depender do hino ou do cântico, sei fazer soprano ou contralto...rs..)

Lembro-me das centenas de retiros e acampamentos de jovens dos quais participei. Lembro-me das palestras maravilhosas e dos lindíssimos cultos de fogueira (até hoje essas fogueiras me encantam e fazem meus olhos se encherem de lágrimas). Lembro-me das olimpíadas esportivas, dos intercâmbios entre igrejas, dos cultos e congressos missionários em que conhecíamos gente de todo mundo, pessoas que saíam de suas casas e famílias e enfrentavam tudo, inclusive perigos e barreiras políticas para pregar o Evangelho. Lembro-me muito do Rev. Almir e de sua esposa Angélica que trabalhavam na ‘cortina de ferro’ e do Rev. Ronaldo Lidório que pegou malária dezenas de vezes enquanto falava de Deus aos Komkombas - tribo que nunca nem tinha visto um homem branco pela frente. Lembro-me do trabalho lindo de sua esposa Rossana, que era enfermeira.

Lembro-me de dar aula para crianças em bairros muito pobres da periferia de São Paulo. Lembro-me de ensinar sobre a Trindade numa ponte de papelão grosso, estendida sobre um córrego, com medo das crianças caírem lá na água. Lembro-me da igreja que meu pai abriu em Vila Mara (e que existe até hoje), que ficava numa rua de lama e que os copinhos de Santa Ceia, depois de roubados, apareciam nas mãos das crianças da rua, que os usavam para construir castelinhos de barro.

Lembro-me de ir a um congresso de adolescentes onde, durante 5 dias , ouvimos o Rev. Jeremias Pereira, da 8ª Igreja de BH, por 3 horas durante a manhã e mais 3 durante a tarde...E NINGUÉM saia da igreja...E tínhamos de 12 a 17 anos...

Lembro-me de ler o Berkhof lá pelos 11 anos e de estudar espanhol para ler as Institutas do Calvino do meu pai (se elas fossem em francês, provavelmente eu teria estudado francês...rs..). Lembro-me de querer estudar inglês por causa da Confissão de Westminster e por causa de toda literatura inglesa que passei a descobrir quando fui estudar no Mackenzie e passei a desbravar a Biblioteca George Alexander ( o amor da minha vida na Universidade e a maior de todos os culpados pelo meu amor pela Literatura, eu fantasio colocar uma cama no último andar e morar nela para sempre...rs..). Da minha vida no Mackenzie, especialmente da época de escola e da faculdade de Psicologia, lembro da ABU, da equipe de louvor e do Coral da Capela, lembro do Rev. Antônio Carlos Menezes, nosso único e sensacional capelão (hoje em dia tem uns 12 e a gente nem sabe o nome deles...rs...) que era todo tatuado, inclusive com uma Nossa Senhora Aparecida no braço, porque tinha sido motoqueiro antes de se converter. Adorava ouvir seus sermões! Hoje em dia não canto mais no coral da Capela e mal entro nela, mas continuo achando um cantinho muito lindo...

Lembro-me da excessiva preocupação e austeridade do meu pai quando entramos na adolescência (três meninas....poor man..rs..) e de ter nas mãos exemplares de livros do Jaime Kemp sobre namoro e sobre sexo (Não recomendo muito, não...kkk..). Lembro-me de um em especial que recomendava cronometrar o beijo para garantir um ‘namoro puro’ e confesso nunca ter me lembrado de olhar para o relógio quando envolvida com o fato em si...Coisas da vida...

Lembro-me de conhecer muita gente e de ter sempre a casa cheia. Também de ter muitos pretendentes, a maioria seminaristas, provavelmente por considerarem que minha experiência prévia como filha de pastor seria útil aos seus ministérios ou talvez retomando a cultura judaica em que sacerdote só se casa com filha de sacerdote...rs...Lembro-me de meninos pedindo a gente em namoro para o meu pai e do mesmo fazer o guri aguardar muuuuito tempo por uma resposta satisfatória. Lembro-me de meninos indo pedir oração por mim em reuniões de oração quando eu terminava o namoro com eles...rs...

Lembro-me de ter feito um projeto missionário no interior do nordeste e de ver e ouvir coisas que só quem está no campo pode experimentar - de cabras sendo curadas ao milagre da alfabetização de toda uma cidade, precisaria de outro texto para contar. De verdade foi só lá que o fato de que o Espírito Santo sopra onde bem quer saiu da teoria para mim. Voltei no avião chorando muito, sabia que nunca mais poderia ser tão útil quanto fui naquele lugar, durante aqueles meses.

Lembro-me de ter sido a primeira presidente mulher da União de Jovens Presbiterianos de uma igreja centenária (sinal dos tempos...rs..) e também de ter feito uma palestra lá sobre sexualidade, diante de pastores e presbíteros, quando nem sequer havia começado a ter uma vida sexual. Lembro-me de começar minha carreira como psicóloga clínica atendendo principalmente pessoas das igrejas e de começar a compreender que a vida protegida em que fui criada podia ter uma beleza imensa em sua candura, mas não tinha me preparado para a realidade de um mundo vazio, violento, confuso e feio.

Lembro-me de me mudar para o Sul e de encontrar uma igreja presbiteriana fraca e esquisita (não sei como estão as coisas hoje). Lembro-me de ficar muito encantada e edificada com a Igreja Luterana que nunca tinha sequer conhecido aqui. Lembro-me de sentir a amplitude de TODAS as coisas aumentar conforme minha experiência inter-denominacional acontecia.

Lembro-me de enfrentar um divórcio e de ver minha vida virar do avesso. Também de comprovar na pele o que ouvia na teoria: o divórcio é algo absurdamente traumático e doloroso. Ele desestrutura sua vida completamente, te deixa completamente à deriva. Quando você olha para frente, para o seu futuro, não consegue ver NADA. Quando você olha para trás, passa a questionar todas as coisas que de alguma forma te levaram àquele lugar de terror. Lembro-me de viver aos 30 anos outra adolescência, de ter que olhar para dentro de mim e nomear tudo de novo, algumas coisas pela primeira vez.

Embora eu jamais recomende isso para ninguém, sei que precisei dessa experiência para saber quem eu era e, principalmente, do que era feita a minha fé, a minha minúscula e defeituosa fé, que eu cresci achando que era forte e bem resolvida.

Lembro-me de estar chorando numa madrugada, uma das muitas em que chorei nessa época, e, depois de chorar até cansar e de brigar mais uma vez com Deus, que, supostamente, tinha permitido toda aquela confusão onde eu tinha me metido e que ainda se dava ao luxo de não me responder nada, desisti.... Magérrima, doente, com dificuldades para comer e dormir, no auge de um quadro depressivo miserável, me sentindo completamente sozinha e constrangida, sendo difamada por todo lado, sem amigos, sem irmãos da igreja (ninguém de igreja costuma ser muito generoso com as mulheres nos casos de divórcio, vocês sabem...), sem trabalho, sem casa e contando apenas com o apoio da minha família (que nunca me abandonou), me vi esgotada ao extremo, daquele esgotamento que faz todo corpo relaxar indefeso, a dor era insuportável, eu estava sendo esmagada por dentro e por fora. Reconheci então que tinha chegado ao meu limite, só silenciei a mente e o coração, fechei os olhos e esperei, esperei nem sei pelo quê....

O que aconteceu naquele instante vai muito além do que qualquer palavra minha possa contar, o que me tocou, o que eu vi e ouvi, não tem como ser explicado. Apenas me peguei cantando baixinho:  ‘Louvado seja, Senhor, Teu nome, entronizado entre as nações./ Exaltarei a ti, Senhor, pelo que Tu és, eu te adorarei/ Recebe a minha adoração que é fruto da Tua Graça em mim/ e do Teu Amor que restaura em mim/ o meu amor, por ti, Jesus./ Engrandecerei e exaltarei Teu Nome/ Diante dos Reis e dos Poderosos/ Eu louvarei a ti, Senhor.’ Cântico este que eu não cantava fazia muitos anos.

Depois desta noite minha vida começou de novo.

Não vou mentir a vocês e dizer que ficou fácil frequentar igrejas, que não vejo falhas, hipocrisias ou que não me chateiam as fofocas, as ambiguidades, as burrices, as neuroses e as crises das comunidades.  Mas por outro lado, quem sou eu para criticar qualquer um, né? Eu, este minúsculo vasinho complicado, confuso e frágil.

Não vou esconder que me irritam as respostas fáceis, a maneira como as pessoas usam a religião como muletas, como o cristianismo tem sido absurdamente mal interpretado por muitos e mal utilizado por outros tantos. Mas e os meus próprios equívocos? E as vezes em que eu usei e uso a fé como muletas para fugir de mim mesma e da vida?

Não vou negar que tenho dúvidas teológicas, que vivo numa paquera muito sincera com igrejas católicas e até ortodoxas, que aprecio as missas e o canto gregoriano, que fico embasbacada com a arte sacra, encantada com as histórias dos santos, comovida com velas acesas e com a tradição. Por outro lado, como negaria que as verdades mais profundas da minha história com Deus foram alicerçadas dentro de Igrejas Protestantes, através da Bíblia, dos cânticos e dos exemplos de tantos cristãos fiéis e sinceros que conheci no decorrer do caminho?

Se no momento mais crítico da minha existência, não havia templo, doutrina, irmãos na fé, sacramentos ou qualquer outra coisa que exista em nossas rotinas religiosas, mas apenas a presença inefável d’Aquele a quem todos nós invocamos, por que eu precisaria escolher??

Hoje, no dia em que se comemora os 500 anos da Reforma Protestante, minha celebração e meu exercício está em observar as senhorinhas octagenárias das igrejas cristãs. Poucas delas se ocupam de tratados teológicos ou cismas. Eu as vejo SEMPRE na prática da caridade e da oração, algumas com rosários nas mãos, outras com suas Bíblias, todas invocando a Cristo, cada uma a seu modo, pedindo por suas famílias, por seus filhos, por suas comunidades, raramente por si mesmas, exceto se vão pedir perdão e aperfeiçoamento. Essas velhinhas, provavelmente, são o motivo pelo qual ainda estamos aqui! Elas são o que eu quero ser. Lembro particularmente da oração da minha nonna Bruna, católica que se tornou protestante para poder frequentar a igreja do filho, quando da época da doença grave do meu pai: “Tira os anos da minha vida, Senhor, e dá ao meu filho Wanderley. Ele é um bom homem, um bom filho, um bom marido e um bom pastor. Eu já vivi bastante, Senhor. Me leva no lugar dele.”

De forma bastante resumida, quando eu penso em igreja e em cristianismo, é disso que me lembro! Desse tipo de vida que é imenso em experiências reais e relevantes. Peço perdão aos mais dogmáticos pelo mau jeito, mas pra mim, o resto é purpurina...



Ps: Aos não-cristãos que talvez se perguntem se eu gostaria de ter tido uma vida diferente, com outro tipo de experiência e conhecimento, talvez com maior liberdade e diversidade, devo confessar que já refleti muito sobre isso também no decorrer do tempo. Minha resposta, olhando minha jornada e o mundo em que vivemos hoje, é que apesar da disciplina mais rígida e de algum despreparo para a vida aí fora (reconheço que fui bastante super protegida), não existe nada em crescer no meio cristão que tenha me prejudicado, me castrado ou reprimido, muito pelo contrário. Tive oportunidades mil para adquirir conhecimento (com total liberdade), conhecer pessoas interessantes, me divertir e desenvolver talentos, habilidades humanas e virtudes. Qualquer um que cresceu em igrejas e negue isso, não está enxergando as coisas corretamente ou teve muito azar!