‘Um coração duro não é uma
proteção infalível contra um miolo mole.’
C.S.Lewis – A Abolição do
Homem
‘À certa velocidade do barco,
a onda torna-se tão dura quanto um muro de mármore.’
Giles Deleuze – A Dobra
‘The human heart is like a
night Bird. Silently waiting for something, and when the times comes, it flies
straight toward it.’
Haruki Murakami – Colorless
Tsukuru and his Years of Pilgrimage
‘Na noite, desprotegido
E em estupor vive o mundo;
No entanto irônicas luzes
Aqui e ali mostram seu
brilho,
Onde quer que troquem os
Justos as suas mensagens:
Possa eu, como eles composto
De Eros e pó e assediado
Por negação e desespero,
Ser também iluminado.’
W.H.Auden – ‘1º. de setembro
de 1939’
Ao nascerem, os bebês percebem o
mundo com o corpo todo.
Diferente dos adultos, quase completamente absorvidos
pelas sensações dos cinco sentidos básicos e, exatamente por ainda não tê-los
desenvolvidos, os recém- nascidos contam com cada parte de seu corpo, interna e
externa, para sentir e interpretar o mundo. Bebês contam com no máximo 20
centímetros de visão quando nascem, por exemplo, distância aproximada entre o
seio e o rosto da mãe, também apresentam extrema sensibilidade à luz e aos
barulhos fortes, o que os inabilita inicialmente a este tipo de registro de
experiência, que pode inclusive ser bastante traumática. Dizem os estudos na
área Neonatal, Psicossomática, da Psicanálise Infantil e da Teoria da
Intersubjetividade Inata, que a primeira vez que experimentamos a sensação de
fome, a percepção é a de um aniquilamento iminente e que aqueles sonhos que
passamos a vida tendo, sobre estar caindo, são reflexos do terror de cair do
colo que nos segurava. Discussões
psicológicas a parte, o fato é que, no que diz respeito à percepção, parece que
partimos de um início em que cada célula é suscetível a estimulação e percepção,
para a construção de uma espécie de couraça corporal que nos limita a cinco
canais básicos de aquisição, registro e transmissão de informação: Visão,
Audição, Tato, Olfato e Paladar, sendo que esses dois últimos, devido à péssima
condição atmosférica e do alimento que alguns são obrigados a aceitar
diariamente, tendem a enfraquecer, até por serem os mais sutis.
Obviamente, a pós-modernidade é
absurdamente visual, a consequência disso está na redução do toque e da
presença física como manifestação afetiva e de troca concreta em qualquer
esfera (mensagens de texto tomando lugar do encontro, num sentido amplo), na redução
da expressão sexual, condicionada ao voyeurismo da indústria pornográfica (mais
lucrativa do mundo), e como ressaltarei aqui, no comprometimento da
possibilidade de ouvir, tanto no quesito sonoro, propriamente dito, como no
cultural e no relacional. Num mundo dominado pelo Visual, tudo se torna
abstração e imagem, fantasia e forma – mundo fantasmático e, por isso mesmo, do
campo da loucura.
Hoje cedo li sobre um estudo feito
em universidades americanas comprovando algo que há tempos venho observando em
pacientes e amigos – o uso contínuo de antidepressivos acaba por reduzir não
apenas a libido, mas também o desejo de relacionar-se afetivamente com outros
seres humanos e de vivenciar novas experiências. Essa obsessão analgésica de
nossa geração sempre me remete ao Admirável
Mundo Novo do Huxley ou ao ‘soma’ - droga utilizada como condicionador
comportamental por toda a população no livro, lembrando que a palavra soma vem do grego antigo e significa
corpo, termo que em si só já merece um futuro post exclusivo. Só para ter-se
uma ideia, a venda de antidepressivos cresceu 44,8% ano passado, apenas no
Brasil, segundo dados da OMS.
Sendo, pois, todos os animais, racionais ou
não, idealizados e produzidos como seres perceptivos e relacionais, o homem desde
o útero percebendo o que acontece ao seu redor, fazendo tentativas de se
comunicar, de compreender seu entorno e respondendo a toda essa experiência de
forma expressiva, qualquer pesquisador do comportamento humano e animal, seja
qual teoria for que fundamente seu trabalho, concorda que é inerente e indispensável
aos seres vivos a troca de informações com o meio - em todos os níveis e de
todas as formas possíveis. Filmes como ‘O Naufrágo’, ‘Gravidade’ ou ‘Perdido em
Marte’ (entre outros) estão aí para ilustrar o quanto pode ser mortal a
impossibilidade dessa troca. Assim, o
‘desligamento’ sensorial e, consequentemente intelectual e afetivo, tende a nos
trazer consequências escabrosas, comprometendo de forma irreversível um equilíbrio
mental e corporal, desnecessário dizer social, que é, em si, exigência básica
para a manutenção da vida.
Sobre o silêncio que nos
ensurdece...
Mês passado refiz meu ritual de
férias e fui passar oito dias de frente para o mar (qualquer mar funciona para
mim, o de Mongaguá, o de Acapulco ou o da Cote D’Azur, o que me importa é a
coisa em si, o bom e velho mar, seja verão ou inverno, se estou sozinha ou
acompanhada), experiência das mais lindas e revigorantes desse mundo, algo que
uma das minhas autoras prediletas descreve como ninguém[1].
Chego lá sempre ansiosa pela purificação que o vento grosso de sal e o som
específico do movimento das ondas sempre oferecem, de forma gratuita e sem
critério de seleção, disponível para qualquer ser vivo sensível e um pouco
sincero. Esse pequeno oásis emocional, aperfeiçoado pela luz do sol da manhã
(filtrado pelo protetor 70, exigência da minha ascendência caucasiana, hoje em
dia tão execrada por aí...rs..) sempre foi capaz de reabastecer a energia que
preciso para mais um ano de trabalho, estudos, exercícios, relacionamentos, experiências,
trocas e riscos, energia para mais um ano de alegrias indizíveis e, certamente
também de privações desanimadoras – ano de vida, ano de luta, ano de escuta.
Dessa vez, porém, após varias
tentativas frustradas de apenas ‘ouvir o
mar’, dei-me por vencida diante de um fenômeno que aqui chamarei de ‘El pueblo’, algo que entope meus canais
de comunicação com o meio e me impede de entrar na frequência que desejo e
preciso, algo que me absorve e me desespera, causando um sentimento de tempo
perdido e um enorme cansaço.
‘El
pueblo’ aqui não tem nada a ver com elitismos ou preconceito (essa palavra
que de tão dita por aí, tornou-se vazia e saída fácil de demagogo sem mais
discurso). Fui criada no meio do povo, princesinha cigana, filha de pai pastor
de comunidades menos favorecidas e mãe professora de história, ambos sempre
ocupados em atender os mais carentes e os incompreendidos. Dei aula de Bíblia
em cima de tábuas colocadas sobre córregos imundos nos confins da zona leste de
São Paulo, dividida entre explicar para as crianças sobre a Trindade e prestar
atenção se alguém não estava caindo no rio...rs...’El pueblo’ aqui é tirado mais do sentido espanhol mesmo do termo,
de bairro ou vizinhança, das pessoas que vivem ao nosso redor, nossos ‘conterrâneos’, ‘El pueblo’ revela os detalhes nada discretos da atitude geral das
pessoas com quem vivemos e convivemos, nossas pessoas, pessoas que fazem parte
de nós e que são frutos também de nossa influência (ou da falta dela). Nesse
caso em específico, ‘El pueblo’ fala de
uma tara pelo ruído, pela necessidade visceral que temos pelo barulho, por algo
sonoro (nada sutil) que preencha os espaços do ar e, inclusive, entre as
moléculas que nos circundam - um abraço vocal que nos entorpeça e entulhe
qualquer possibilidade de vazio interno ou externo, qualquer buraco que nos cause
angústia, que nos obrigue a enfrentar nossa dor e a refletir. Essa ânsia por
preencher o vazio é a gênese de todo consumismo, de todo exagero perceptivo ou
sensorial e é a mãe de todas as obsessões.
Diante do som dos quiosques –
altíssimo e raramente composto por boa música (e olha que tenho um gosto
musical até que bem eclético...rs..) aos gritos dos ambulantes e dos pais (que
não conseguem se alegrar com o saltitante burburinho das crianças), passando
pelo ‘chaka-chaka’ das caixas de som dos carros turbinados dos mocinhos-bobocas
de plantão, pelas conversas escandalosas das matronas-gralhas que calam o
grasnar das gaivotas, ou pelo ronco dos aviões com propagandas de políticos, de bebida e de camisinha, tudo isso em proporção tão
desmedida que o mar se cala e seu silêncio, para quem percebe, é ensurdecedor.
À nuvem de poluição sonora se unem as angústias e questionamentos de meu
próprio peito, agitado e insone, sempre lutando por um pouco de paz, geralmente
adquirida com enorme esforço racional e, então, todos juntos, silenciamos as
ondas, as conspurcamos com um sorriso cúmplice de trevas soltas. Só me resta
uma playlist de Spotify – talvez ‘sons da natureza’? Sinto-me protagonista em
um episódio de Black Mirror.
O fato de perder algo para mim
sempre tão certo e prazeroso me chateou demais. Aproveitando a pendência de
trabalho de minha amiga, a chuva e a distração dos meus pais com meus
sobrinhos, me enfiei no quarto com um bom livro e só dei por mim, uns dois dias
depois, quando minha mãe, que me compreende não com a cabeça, mas com as
vísceras, com o sangue e com o coração, abriu a porta e disse: - Precisa sair
da toca, senão vai virar tatu..rs...
O resultado do silêncio assombroso do mar em
mim foi uma espécie de dissociação – Ambos estávamos lá, mas não estávamos! Não
conseguia integrar a experiência ao fato, mal enxergava a praia, nem mesmo
quando enfiada até os joelhos dentro da água, insistindo em caminhadas tensas
pelo pavor de ter perdido de vez algo fundamental, algo que durante anos tinha
sido a mola mestra da minha serenidade, esse ponto de contato garantido com o
sublime, com o indizível, com o incomensurável, com a natureza criada por Deus.
Alguns talvez achem tudo isso
engraçado e um tanto dramático (embora eu não seja lá de muitos dramas...rs..).
Outros dirão que devo escolher melhor as praias que ando frequentando. Ainda
outros me tirarão de chata inveterada, esquisitona e misantropa, o que não é
inteiramente falso, já que desde a infância vivo todas as idades ao mesmo
tempo, menina-velha, moça-mulher. A verdade escondida atrás de ‘El Pueblo’,
porém, é que perdemos a serenidade como possibilidade, como escolha, como
exercício de liberdade e o fizemos em massa. Com essa perda, foi-se também o
espaço necessário para o pensamento e com ele a esperança da reflexão. O
silêncio não carrega mais em si a quota de alívio que sempre nos prometeu, nos
antecipamos a ele e a qualquer possibilidade de desconforto que o ‘vazio’ dessa
espera possa trazer – ainda que tal sofrimento possa ser fruto de pura paranoia
coletiva. Calamos a ‘voz do mar’ e seu silêncio é uma faca no peito.
Essa vida que decidimos viver é um
amálgama de excessos: excesso de sons, excesso de imagens, excesso de pessoas,
excesso de possibilidades de escolha em todos os aspectos. A voracidade nos
domina, nos engolfa, nos entala e, na impossibilidade de engolir e digerir todo
um universo de uma vez, estamos constipados, desnutridos, famintos e
desesperados. Abrimos mão de organizar nossa vida e nosso consumo em um tempo e
em um espaço possíveis para a existência humana e terrena, com isso, desistimos
do som de nossas próprias consciências, desejos e sonhos, cada vez mais
despalavrados, mais primitivos, mais inconscientes. Junto do silêncio, dia a
dia sepultamos a ideia de privacidade – não se chupa mais um único picolé sem
se exibir a língua roxa no Instagram, manda-se ‘nudes’ para gente que mal se
conhece, ideias, sentimentos e fatos
íntimos são explorados pelo voyeurismo de qualquer um. Viramos o circo de todo
mundo e para alguns ‘ser falado’ é sinônimo de importância, talento e
celebridade. Fico pensando quando foi que a vida dos outros ficou tão mais
interessante que a nossa própria. O que será que existe de tão divertido,
desafiador, edificante ou belo na sunga branca encardida que o vizinho posta no
Facebook, fazendo poses de ioga em cima de uma prancha de Stand-Up? E o que de
tão erótico existe na vida sexual alheia (afinal, se é a alheia, não é a nossa,
né?)? Depois eu sou a estranha..rs...
Voltei para casa triste, cansada e
desanimada.
Graças aos céus, alguns dias depois,
visitando o sul de Minas e enfiada no coração da Serra da Mantiqueira, muito
bem instalada numa cabana praticamente dentro do rio, passei dias respirando um
ar fino, impregnado de eucalipto e capim-limão. O friozinho delicioso – mesmo
no alto verão – acalmou meu pensamento e embalou meus sentimentos. E pude enfim
gozar do silêncio e do som (som de água de rio, de água na pedra, de água
corrente e constante, de água transparente, de água pura e doce, beijo gelado
num coração fervente).
Eh, as estações seguem passando, só
não se transforma quem não está vivo. Prestes a começar o segundo tempo da
vida, volto a ser garota de montanha, de frio, de hortênsias, de trilhas, de beija-flores e
de vagalumes. Visto minha camisa de flanela, as botas de caminhada, prendo o
cabelo longo e assumo em sorrisos soltos essa atmosfera tão mais leve e tão
mais fresca. Tempo de acolhimento e do conforto simples de uma colcha de lã e
de lenha queimando na lareira – essa imagem tão bela do fogo que crepita aqui
dentro, enquanto o vento frio refresca lá fora. Em uma palavra: adorável!
Sentada na varanda da cabana,
caderno, caneta e livros me fazem companhia. Penso, entre sapeca e irônica, se
devo ceder a mais um copinho de pinga de alambique. Bem agasalhada,
deixo os pés descalços para sentir o clima e dou risada da brisa fria que me
gela o nariz. Diante de mim, apenas o balcão e o rio. Árvores enormes nos
protegendo de tudo e de todos. ‘El pueblo’ é sereno aqui. Ouço o ‘chuá’
constante da água que desce suave numa cadência decidida, compasso perfeito com
a percussão que levo no peito. Sinto a pele limpa e fresca, me sinto bonita e
delicada como as flores que preenchem todos os cantos e todos os caminhos. O
esmalte verde-militar que trago nas unhas combina com os outros mil tons de
verde que vejo por todo lado e numa segunda voz, inúmeros passarinhos, pequenos
e médios, vivos, próximos e confiantes entoam sua toada encantada, aboletados
nos milhares de galhos das araucárias disponíveis – machos e fêmeas, tanto as
árvores quanto os pássaros. Devagar vou ouvindo a garoa fina, um véu de noiva,
flauta doce completando a composição. Encosto a cabeça sobre a cadeira, inspiro
fundo o ar cristal da serra, meu coração treme e se expande: penso em todas as
pessoas que eu amo e oro por elas com a insistência que Deus já conhece – tão
pouco o que tenho para oferecer, mas o amor aqui dentro é sempre grande. Minha
alma se solta e se estende como vela de navio em pleno mar, estou pronta para a
vida outra vez. Novamente atravessei a névoa de morte que sempre ameaça e a
venci. Penso em todas as coisas que quero fazer, penso em meus gatos, penso em
meus maiores sonhos e desejos e aos poucos me reconfiguro, pedaço por pedaço.
São tão raros os momentos realmente vivos dessa nossa existência terrena –
ainda assim são a causa de continuarmos existindo.
Dias desses assisti ao filme
‘Novíssimo Testamento’ e, entre outras coisas que achei interessante, existe
essa revelação da data de morte para todas as pessoas e a partir dessa contagem
regressiva, numa perspectiva um tanto previsível e bem kantiana da coisa, todos
começam a repensar a vida e tomar atitudes mais conscientes e, por que não
dizer, mais autênticas, mais valentes. Será mesmo que só a perspectiva da morte
nos oferece subsídio para a coragem e para a suplantação das nossas neuroses e
covardias? Será necessária uma vida inteira de amargura e solidão para nos
tornar aptos a apenas abrir o peito e a boca, admitindo o óbvio? As algemas
impostas por nossas racionalizações, medos, culturas, ídolos, falsos amigos,
maus pais, maus mestres, afetos equivocados, invejas, baixa autoestima e
escolhas ruins bastam para nos prender ao silêncio ensurdecedor eterno? Será
que só a terceira idade liberta? E se liberta, liberta pra quê? Pra uma morte
confortável? Espero sinceramente ser bem mais esperta que isso...
Liberdade – conceito tão discutido,
defendido, argumentado, equivocado e tão pouco experimentado. Sempre que alguém
me diz que é livre, que temos escolhas, que livre arbítrio existe,
automaticamente surge em meu palco mental uma imagem e uma música – a imagem é
a da telinha dos murais do Facebook e de todas as outras redes sociais, a
música é a parte de um refrão do Titãs “...Você tem fome de quê?”
Barulho, bagulho, mau cheiro, mau
gosto, lixo, poluição (sonora, visual, afetiva, cultural, ideológica, etc...etc)
. Por enquanto, bastam alguns dias ouvindo o som da água pura do rio, do vento, das
folhas, dos esquilos, dos pássaros (...) até os últimos sons daquilo que
sentimos como VIDA e tudo volta ao lugar certo, isso servindo como uma espécie
de espelho para minha voz mais íntima, para o caminho da intuição que tão
poucos ainda conhecem, mas que quando encontrado sempre remete a algo maior,
mais verdadeiro, melhor.[2]
Por que você não para e deixa essa voz falar com você só um pouquinho? Do
sussurro da brisa ao ronco gutural do mar, certamente ela tem muitas coisas a
contar sobre esse amor que todos os dias arrebenta e refaz seu coração.
Encerro com um poema da Sylvia Plath que, com sua voz sempre febril, louva a
intensidade de uma vida não anestesiada, sem silêncios ensurdecedores, aberta e
arriscada, ainda que dolorosa. Sylvia pagou um preço alto por sua intensidade,
mas não se escondeu nela ou dela. Vivemos nessa geração eugênica, tão porca em
seu higienismo, tão estúpida em sua pseudo-intelectualidade, tão desumana em
sua luta por igualdades, tão louca em suas racionalizações, tão vazia em seus excessos e tão vulnerável em
sua ausência de sentimentos. Geração que pune as emoções e castra as paixões, que
faz da sensibilidade um defeito, da capacidade de contemplação uma fraqueza, da
sexualidade uma moeda de manipulação e que torna o consumo seu valor
absoluto. Nesse mundo criogênico eu fico com os poetas e suicidas.
Olmo
Conheço o fundo, ela diz.
Conheço com minha própria raiz:
Você temia isso.
Eu não: Eu estive lá.
É o mar que você ouve em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada, era essa
sua loucura?
O amor é uma sombra.
Como você mente e chora por
ele.
Ouça: esses são seus cascos:
se foram, como um cavalo.
Vou galopar a noite inteira,
impetuosamente,
Até que sua cabeça vire
pedra, seu travesseiro vire turfe,
Ecoando, ecoando.
Ou devo lhe trazer o som das
poções?
Isso é chuva agora, esse
silêncio imenso.
E esse é seu fruto:
branco-metálico, como arsênico.
Sofri a atrocidade dos
poentes.
Queimada até a raiz
Meus filamentos ardem e
resistem, emaranhado de arames.
Agora me quebro em pedaços
que voam como clavas.
Um vento assim violento
Não tolera testemunhas:
preciso gritar.
A lua, também, não tem pena
de mim: me arrastaria
Cruelmente, sendo estéril.
Seu esplendor me fere. Ou
talvez eu a tenha pego.
Eu a deixo fugir. Eu a deixo fugir
Minguada e chata, como se depois de uma cirurgia radical.
Como seus pesadelos me possuem e me adornam.
Sou habitada por um grito.
Toda noite ele voa
À procura, com suas garras, de algo para amar.
Tenho medo desta coisa escura
Que dorme em mim;
O dia todo sinto seu roçar suave e macio, sua maldade.
Nuvens passam e se dispersam.
São essas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
É por isso que agito meu coração?
Sou incapaz de mais conhecimento.
O que é isto, esta face
Assassina em seus galhos sufocantes?
Seus venenosos ácidos sibilam.
Petrifica o desejo. Estas são os erros, isolados, lentos
Que matam, matam, matam.
Eu a deixo fugir. Eu a deixo fugir
Minguada e chata, como se depois de uma cirurgia radical.
Como seus pesadelos me possuem e me adornam.
Sou habitada por um grito.
Toda noite ele voa
À procura, com suas garras, de algo para amar.
Tenho medo desta coisa escura
Que dorme em mim;
O dia todo sinto seu roçar suave e macio, sua maldade.
Nuvens passam e se dispersam.
São essas as faces do amor, pálidas, irrecuperáveis?
É por isso que agito meu coração?
Sou incapaz de mais conhecimento.
O que é isto, esta face
Assassina em seus galhos sufocantes?
Seus venenosos ácidos sibilam.
Petrifica o desejo. Estas são os erros, isolados, lentos
Que matam, matam, matam.
[1] O
sol ainda não nascera. O mar não se distinguia do céu, exceto por estar um
pouco encrespado, como um tecido que se enrugasse. Gradualmente, conforme o céu
alvejava, uma linha escura assentou-se no horizonte, dividindo o mar e o céu, e
o tecido cinza listrou-se de grossas pulsações movendo-se uma após a outra, sob
a superfície, perseguindo-se num ritmo sem fim.
Aproximando-se da praia, cada uma dessas ondas
erguia-se, acumulava-se, quebrava e varria pela areia um tênue véu de água
branca. A onda parava, partia novamente, suspirando como um ser adormecido cuja
respiração vai e vem inconscientemente. Aos poucos, a faixa escura no horizonte
clareou como se a borra numa velha garrafa de vinho se tivesse acomodado,
deixando transparecer o verde de seu vidro. Ao fundo, também o céu se fez
translúcido, como se ali baixasse um sedimento branco, ou como se o braço de
uma mulher deitada sob o horizonte erguesse uma lâmpada, e faixas brancas,
verdes e amarelas se espraiassem pelo céu como as varetas de um leque. Depois,
a mulher ergueu a lâmpada mais alto, e o ar pareceu tornar-se fibroso,
apartando-se da superfície verde, bruxuleando e chamejando em fibras vermelhas
e amarelas, como flamas enfumaçadas que se alçam de uma fogueira. Pouco a
pouco, as fibras fundiram-se numa só brasa incandescente, e a pesada cobertura
cinza do céu levantou-se e transformou-se num milhão de átomos de um macio
azul. Lentamente, transluziu a superfície do mar, fremindo e cintilando, até
que as linhas escuras apagaram-se quase completamente. Devagar, o braço que
sustinha a lâmpada ergueu-a mais alto, e uma larga chama apareceu enfim. Um
disco de fogo ardeu na fímbria do horizonte e o mar inteiro acendeu-se.
Virgínia Woolf – As Ondas
[2]
Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as
vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei
coração novo e porei dentro de vós espírito novo; e tirarei de vós o coração de
pedra e vos darei coração de carne. (Ezequiel 36.25-26)