O filme “A Garota da Agulha”, do diretor sueco Magnus Von Horn, para se dizer o mínimo, é uma obra impressionante.
Von
Horn, diretor e roteirista sueco-polonês, parece extrair da mítica de sua
própria ascendência uma veia trágico-épica que descreve seu trabalho sem
destituí-lo de uma lírica sensível e contundente. O interesse no tema da
violência surgiu de sua própria experiência pessoal com ela e inaugura em seu
terceiro longa metragem uma maneira toda especial de se resgatar o passado com
perfeição sem tentar dar explicações fáceis para temas do presente. Não à toa,
sua película vem numa jornada fértil de discussões, elogios e premiações.
A história do filme, contada através
de um olhar nada anacrônico, verdadeiro respiro para o universo da Arte
higiênica de hoje em dia, consegue articular por meio da utilização magistral
de aspectos da estética gótica toda a pungência de uma sequência de fatos
sinistra, bem como todas as denúncias que a compõe. A retratação de uma
Copenhague pós-1ª. Grande Guerra, assolada pela crise econômica, política e
moral que tomou a maior parte da Europa da época, é feita pelo viés da vida
daqueles que realmente ficam com a conta das guerras: os elos mais frágeis da
corrente, a saber, as mulheres e as crianças. Locada em espaços sombrios, nos
cenários sujos e fumacentos da Revolução Industrial, encontra-se Karoline, uma
operária da área da tecelagem e costura, cujo marido desapareceu há um ano em
combate e que não tem mais condições que manter seu já paupérrimo apartamento...
É de particular interesse a forma como os espaços são trabalhados em todo o filme, nos levando ao gênio narrativo e crítico de George Orwell, que em “O Caminho para Wigan Pier”, fruto de seu convívio de dois meses com os mineiros de carvão do norte da Inglaterra, começa com:
“O primeiro som da manhã eram as batidas dos tamancos as moças da fábrica de tecidos, caminhando pela rua de pedras. (ORWELL, 2010, p.25)
Os cenários do filme de Von Horn, assim como os do livro de Orwell, são compostos por ambientes
escuros e pouquíssimo arejados, nota-se, inclusive, a ênfase na cena da única
janela emperrada na segunda moradia de K, ainda mais precária que a primeira,
janela bloqueada que também é lugar comum nos relatos do autor inglês. No
trabalho de ambos, escritor e cineasta, os espações são frios, degradantes e
degradados, provisórios, organizados de forma precária, sujos, com móveis feios
e pesados em entalhes, com penicos explícitos, improvisados em baldes, e
administrados por concierges maléficos
que se assemelham a carcereiros. No filme, a função de tais figuras parece ser
a de manter diante de K. e do espectador a total condição de indigência da
personagem.
As torres pontiagudas e esguias e a
predominância de construções longilíneas expressam uma total inacessibilidade a
qualquer aspecto do transcendente aos que habitam o chão. O poder é manifestado
por uma força fálica espicaçante, inflexível e hermética. Diante dela, os seres
humanos na base são meros insetos encerrados em caixas ásperas e
desconfortáveis. Inclusive as camas são sempre mostradas como pequenas demais
para seus ocupantes, como as da época; a água da limpeza é sempre parca e suja;
a comida é repugnante e escassa; os dias são todos de trabalho; as pessoas são
grosseiras e abestalhadas; para todo lugar que se olha não existe nenhum
alívio. O aspecto sombrio constante deforma o contorno dos rostos e muitas
vezes tem-se impressões terroríficas na contemplação dos personagens; mesmo as
crianças são retratadas como bonecas quebradas do século XIX ou, até mesmo,
como mortos retratados, como era costume naquele tempo. O marido sem rosto de
Karoline parece não ser o único em sua condição.
A miríade de cinzas é utilizada no
filme de maneira a tornar os cenários amargurados e sufocantes, jamais há um
alívio, uma lufada de ar fresco, mesmo durante as tomadas externas. O entorno
nos condena a um artificialismo mecânico que fala por si mesmo ao destacar toda
a insalubridade de uma era fabril, onde a existência foi reduzida a um bestial
e o sentido da vida é a manufatura com suas vicissitudes. O produto da
miscigenação dos seres humanos com o fumacento carvão do início do século XX é
a desumanização, condição essa que é
ilustrada no filme na forma do grotesco através das máscaras deformadoras da
abertura que ressurgem mais adiante, na noite de pesadelos de Karoline após o
retorno do marido sem rosto, cheio de traumas, mas com bom coração. A realidade
constituída a partir dessa desumanização tem sua expressão máxima na forma de
nossas duas grandes guerras, cujo saldo de mortos ultrapassa aos 70 milhões,
cerca de um terço da população do Brasil de hoje. Em proporções, nunca antes a
vida humana valeu tão pouco ou foi tão fácil e brutalmente descartada. Não
sabemos o que será depois, para alguns estudiosos, o mundo ainda vive na
depressão do pós-guerras.
No aspecto mais intimista vemos no
filme uma jovem costureira, completamente desvalida, trabalhando de sol a sol
por migalhas, tentando, sem muito sucesso, colocar um teto sobre a cabeça,
mesmo que esse teto seja pulguento, escuro e sem janelas. Dentro da Oficina de
Costura, constituída no formato de um formigueiro, vemos centenas de
mulheres-operárias uniformizadas, costurando grosseiros uniformes de guerra
onde antes se faziam os mais finos tecidos. O vai-e-vem das mulheres-formiga,
metáfora perfeita do vampirismo de um mundo colonial aniquilador de
subjetividades, que envia os homens para sangrar nos campos de batalha enquanto
explora a força de trabalho de suas mulheres e mata suas crianças de fome, de
doenças, de violência. Não à toa, a agulha que costura, que tricota, que tece
proteção, também aborta.
O tom fortemente niilista do filme,
que o tempo todo nos solapa com a denúncia evidente da desvalorização e da
falta de propósito da existência humana, incomoda tanto que nos prende à uma
esperança pungente de que exista alguma redenção para Karoline; é quase
insuportável assistir o vertiginoso progresso de sua miséria, nos identificamos
com sua fragilidade diante de uma desgraça tão visceral que se torna
inominável, sem código, sem palavras. Tudo em Karoline deságua em um instinto
bruto de sobrevivência que nem ela mesma parece conseguir acessar para criticar
ou compreender – condição de animal ferido, primitivo, infantil. Karoline,
diante da vida e da sociedade que a cerca, é tão vulnerável quanto os bebês que
ajuda a matar sem saber!
As relações de Karoline surgem na
atmosfera de um romantismo sombrio, gótico. Completamente desamparada com a
perda da casa e sem conseguir se declarar viúva, o que lhe daria um parco
auxílio-financeiro, solitária e com medo, a jovem, a despeito de seus parcos
atributos pessoais, se vê diante do “ombro-amigo” de um possível redentor, que na
verdade é um homem infantilizado, irresponsável, mais deficiente de caráter do
que no corpo e capturado pelos valores de uma sociedade elitista que privilegia
alguns e defrauda a todos. Tal sociedade é magnificamente representada pela
figura da mãe de seu amante, cuja aparência remente muito a um Nosferatu e que
trata Karoline como uma égua sem pedigree, a humilha e expõe suas intenções de
aborto do próprio neto com uma franqueza e objetividade chocantes. O próprio
relacionamento amoroso é apresentado de forma precária, a intimidade dos dois é
crua, precipitada, vivenciada inclusive em público, em plena luz do dia, num
beco sujo, onde podiam ser vistos por qualquer um, como meros animais de rua.
Até mesmo a parca tentativa do dono da fábrica de tornar aquele vínculo algo
mais afetivo é desajeitada, artificial, inadequada e extravagante como bem
ilustra o vestido espalhafatoso com o qual presenteia Karoline em uma Natal
gélido.
O total abandono de uma Karoline
grávida, que além de ter suas estapafúrdias esperanças de redenção e alegria
irem para o ralo, ainda por cima é demitida com um “...seu trabalho não é mais
necessário...”, ficando, portanto sem renda alguma para se sustentar, traz à
tona um tema nunca discutido o suficiente nas bolhas sociais que é o Aborto
Masculino. A relação direta que o cineasta estabelece entre a rejeição e
abandono de Karoline à própria sorte por seu amante rico e a agulha, que compõe
o título e também nos recorda todos os outros elementos cênicos pontiagudos do
filme, revela a chaga social causada por valores (ou desvalores) de um
masculino infantilizado, egoísta e irresponsável que explora, abandona, rejeita
e fez guerras. A agulha longa, pontuda, rígida, retratada quase como dourada
num contexto de pretos e brancos, expressa o poder masculino (o phallus psicanalítico) que atravessa, às
vezes para dar prazer e gerar família, às vezes para sangrar a mulher e
despedaçar o filho, matando a ambos simbolicamente, às vezes também
materialmente.
O também chamado “aborto
estatutário ou financeiro” é a capacidade (ou devíamos chamar de direito?) do
homem (pai biológico), antes do nascimento da criança (seu filho), de optar por
não exercer quaisquer deveres, privilégios e responsabilidades em relação à
criança, incluindo o financeiro. A Ciência Social relaciona o aborto masculino
com a manutenção da desigualdade social [1] em países pobres, mas isso
é assunto para outro texto. O filme trata de algumas possíveis relações diretas
desse fenômeno (que no Brasil, inclusive, tem índices alarmantes), sobretudo no
contexto de guerra.
A primeira consequência direta do
aborto masculino é a tentativa de aborto de Karoline. Momento crítico de sua
existência precária e que resulta em seu encontro com Dagmar. Após a deserção
do amante, vemos a mulher entrar em um banho público, assistimos ao desfile de
corpos nus de um realismo equalizador, seus olhos apavorados já anunciam ao
público mais uma desgraça, acompanhamos seus movimentos ao entrar na banheira
de lata, assistimos o desembrulhar da agulha e numa tensão cada vez mais
constrita acompanhamos suas mãos introduzindo desajeitadamente a agulha em seu
corpo, como se não fosse seu e observamos seu grito mudo e todas as mulheres
que assistirem ao filme sentirão no corpo uma reação ancestral de repulsa e
medo diante do corpo invadido, diante da dor e da consequente hemorragia. Só um
homem muito apaziguado com seu feminino interior, que teve boas relações com as
mulheres de sua vida é capaz de compreender a brutalidade de um ato como esse.
E no ponto nevrálgico da narrativa
eis que surge uma promessa de redenção; não da forma tradicional de um homem
amoroso e provedor, mas na figura de uma mulher mais idosa, com uma menina e um
saber. Essa mulher se mostra empática e maternal em seus gestos, sua voz é
acolhedora e propõe uma solução mais humana, mais virtuosa e menos dolorida,
diz que sabe como fazer para doar a criança para famílias abastadas que não
podem ter filhos; o sonho secreto de toda mãe miserável é, sem dúvida, ver seu
filho ter uma vida muito melhor do que a dela. Karoline pega seu endereço e
segue sua vida desgraçada, trabalhando pesado para si e agora também para um
marido deformado e transtornado pela Guerra, mas que não a rejeita pelo
adultério e nem tripudia seu abandono.
As cenas de Karoline trabalhando no
meio das beterrabas com uma grande barriga de gravidez avançada são se uma
crueldade ímpar. A horda de pessoas em situação de pobreza extrema implorando
por trabalho e, ao fim, seu parto em cima do monturo de beterrabas, a comida de porcos
que alimentava ela e seu marido, tornam a decisão pela doação do bebê uma
decisão inevitável.
Vale aqui destacar que o homem
deformado e emasculado pela guerra é o único personagem capaz de real
sensibilidade e afeto. Ao acolher a criança que sequer é sua e dispor-se a
cria-la com amor nos oferece uma lufada de ar fresco em meio ao fumarento
destino das pessoas ao seu redor e revela um outro masculino possível, todo
constituído de empatia e de perdão, aspectos inéditos dentro de uma sociedade
patriarcal avarenta de afeto e de compartilhamento, próspera em vinganças e
jornadas de herói. A fragilidade desse marido traído e machucado torna-se a
fresta para os aspectos de uma humanidade latente, não mais aquela da condição
caída, mas a refeita das cinzas, purificada, renascida. De forma semelhante, ao
final, são os artistas do circo mambembe, a maioria páreas da sociedade,
deficientes e anormais, que oferecem, finalmente, alguma possibilidade de lar
para Karoline, proteção e segurança, precárias é fato, como as que eles mesmo
gozam, como as que temos vivendo nesse mundo, ainda assim melhor do que ela
tinha tido até então.
Do ponto de vista da Arte, o
espetáculo circense é sim decadente, bastante coerente com o que se pode
esperar daquele período, ainda assim, a deformidade do marido é apresentada com
verdade, como resultado da guerra - ou da falência da inteligência e do diálogo
frente ao progresso da ganância e da estupidez. A mensagem é trágica e de
crítica social, não cômica e isso fica evidente no pouco riso nervoso de uma
plateia em si mesma brutalizada pela realidade ao seu redor. Muito embora a
horrível deformação no rosto do soldado pareça representar toda a desumanização do
período retratado, também abundantemente expressa nos comportamentos vis da
maioria dos personagens, ao fim e ao cabo é o homem-monstro sem rosto e seus pares
artistas-aberração os que melhor demonstram atitudes próprias daquilo que se
pode esperar da dignidade de um ser humano tido como criado à imagem de Deus.
Mesmo diante do apelo do marido
para que ficassem com a criança, o que move Karoline no momento do nascimento
da criança é a necessidade de algum tipo de libertação de todo confinamento em
que vive: físico, social, moral, emocional e existencial. Ela deseja se livrar
do fardo de criar um filho ilegítimo de um homem que lhe abandonou sem ter peso
na consciência. Quer abandonar a filha como quem lhe faz um favor. Quer se
entregar ao erro como quem se enche de virtude.
Dagmar, a vendedora de doces
resgatadora de moças pobres e desesperadas em situações devastadoras, que
aceita os fardos dessas mulheres por alguns trocados e garante uma vida
auspiciosa para suas crias malditas é inspirada em uma mulher real homônima,
dinamarquesa, que no período da Primeira Guerra Mundial, por cerca de sete
anos, assassinou de 9 a 25 crianças (não se conseguiu apurar de forma
apropriada), incluindo seu próprio filho. Seu julgamento foi tão notável que
gerou mudanças nas leis de proteção à criança na Constituição da Dinamarca.
Dagmar Johanna Amalie Overby tornou-se tão emblemática no imaginário popular de
seu país que inspirou um livro (The Angel Maker, de Karen Sondergaard Koldst) e
uma peça de teatro cujo título faz um trocadilho entre a palavra mãe (mutter,
do alemão) e assassinato (murder, do inglês).
A aversão despertada pela
personagem ao nos depararmos com a real natureza da ajuda que prestava àquelas
mulheres desesperadas é resposta comum do íntimo de qualquer ser humano que se
pretenda como tal, mas em poucos segundos de uma reflexão mais profunda, nos
deparamos ainda mais perplexos, que os crimes de Dagmar, se não são
compreensíveis, podem ser categorizados ao menos como “tragédias anunciadas”. A
sabedoria popular já dizia que “a corda sempre rompe no elo mais fraco”, o
óbvio apregoa que o preço da guerra ou de qualquer outro desequilíbrio de uma
sociedade sempre será pago pelos mais vulneráveis. O sintoma da doença de uma
civilização sempre se manifestará através do comportamento de seus indivíduos
mais desvalidos (e isso em qualquer sentido).
O significado do nome Dagmar,
‘Glória do Dia’, ganha um tom bastante irônico se pensarmos que é comum
chamarem o trabalho de parto de “dar à luz uma criança”. É através de seus
feitos obscuros que Dagmar terá seu Dia de Glória. As cenas de seu julgamento
são bastante pungentes e a forma aguerrida com que defende sua causa nos revela
uma consciência heroica, um papel de vingadora daquelas mulheres abandonadas
que não se furta de desempenhar. Dagmar era “aquela que ajuda quando ninguém
mais quis ajudar”. A verdade particular de Dagmar nos remete à uma feiticeira
mítica, não a uma simples bruxa moderna. Ela se revela uma Medeia revisitada,
uma vingadora pós-Revolução Industrial, punindo com ser areté[2] macabro um Jasão coletivo,
por ter abusado, traído e abandonado todas as mulheres, trocando-as por
ambições e cobiças. Assim como em Medéia a morte das crianças, filhas dela com
Jasão, é brutal e irredimível; assim como em Medéia o horror da ingratidão e o
descaso dos homens (eles mesmos desfigurados pelas guerras) com o sofrimento
das mulheres e de seus filhos tornam seus crimes inevitáveis diante da
calamidade do mundo. A frase que Dagmar usa mais de uma vez no filme para
convencer a si mesma, mais do que aos outros, da justiça de seus crimes é: “o
mundo é um lugar horrível”.
Existem inúmeras discussões em
torno da possibilidade de que comportamentos brutais, inclusive e,
principalmente, assassinatos em série surjam como sintomas de doenças sociais.[3] A Europa durante e depois
das guerras mundiais parece ter sido um celeiro dessas manifestações. Deixando
de lado os aspectos relacionados a genocídios, que falam por si, o caso
particular de Dagmar não foi o único onde pessoas comuns fizeram coisas medonhas,
também não foi o maior, talvez seja, sem dúvida, um dos mais chocantes, devido
ao fato das vítimas serem bebês, mas outros casos, como os da cidade de
Nagyrév, na Hungria, também nos chocam bastante, pela duração e banalidade de
motivos.
A série de crimes de Nagyrév[4], ocorrido entre 1914 e
1929, ficou conhecida como “O Caso das criadoras de anjos de Nagyrév”. Aqui
observamos uma situação de sororidade letal, onde durante quase duas décadas
ocorreram homicídios deliberados, lentos e repetidos, sem quase nenhuma
investigação realmente interessada.
Os crimes começaram a ser
investigados de fato a partir de uma carta anônima endereçada a um pequeno
jornal húngaro chamado Szolnok Gazette, em
junho de 1929, que afirmava haver “algo de podre em Nagyrév”, a cidade vizinha.
Referências Shakesperianas à parte, os assassinatos dessa pequena comunidade
húngara, como todos os assassintatos, narram histórias de loucura, de
corrupção, de ódio, de vingança, de traição e de tantas outras chagas morais e
existências próprias da raça humana. Raça essa da qual todos fazemos parte.
Alguns mais do que outros.
Duas curiosidades sobre a série de
assassinatos saltam aos olhos e se relacionam na elucidação do ocorrido: As
principais suspeitas eram todas mulheres por volta dos 55 anos e Nagyrév era
uma cidadezinha isolada, de difícil acesso, sem estações de trem ou acesso a
médicos, sem possibilidade de progresso e pouco contato com o mundo sem
tecnologia digital da época. Os homens, nesse período, estavam retornando da
Guerra, mutilados, irritados e sofrendo de estresse pós-traumático. A crise
agrícola empobreceu a população que não se sentia confortável para compartilhar
seus dramas pessoais e econômicos com os poucos abastados e com os que detinham
o poder. Uma porcentagem gigantesca dos homens combalidos de Nagyrév se tornou
alcoólatra e maltratava suas famílias regularmente. Devido às dificuldades
socioeconômicas, muitos casais iam viver com os sogros e outras pessoas da
família o que gerava ambientes domésticos hostis onde os rígidos papéis de
gênero contribuíam para a tolerância de abusos de toda espécie, o mesmo fator
econômico impedia muitas mulheres de cogitar o divórcio.
Num contexto como esse, as crianças
eram vistas como fardos, vide “A Garota da Agulha”, uma boca a mais para
alimentar e tempo a menos para a mulher trabalhar. Métodos anticoncepcionais
perigosos eram utilizados, abortos caseiros letais e, em último caso, os
infanticídios eram tão comuns que os pais suspeitos de matar seus filhos sequer
eram denunciados.
Bela Bodó, historiador húngaro,
escreve em A Social History of a Murder
Epidemic que quanto mais marginalizada é uma comunidade, mais frustrados
serão seus habitantes com sua condição de isolamento e pobreza e maior será a
probabilidade de se voltarem para um comportamento deturpado e corrompido.
O vórtice da série de assassinatos foi
uma parteira, Zsuzsanna Fazekas, que assim como Dagmar, se propunha ajudar
quando ninguém mais ajudava e não hesitava em sugerir a possibilidade dos
assassinatos às suas clientes desesperadas, distribuindo veneno e métodos para
sua fabricação como se fosse aspirina. Através das orientações da sempre
disponível comadre matou-se maridos abusivos, bebês indesejados, filhos
doentes, pais e mães inconvenientes e quaisquer uns que se tornassem um fardo
pesado demais para mulheres que não suportavam mais nada para carregar. Foram
42 assassinatos, cometidos por 24 pessoas, durante mais ou menos 20 anos.
Aquela geração de mulheres exauridas e enlouquecidas matou por desespero, por
vingança, também por ganância ou luxúria, todas emoções dessa nossa condição
humana, demasiada humana.
Durante as investigações tentaram
atribuir a Zsuzsanna a fonte principal da rede de assassinatos, é muito mais
palatável acreditar que um único e, portanto mais controlável, demônio foi
capaz de tal façanha, do que reconhecer aqueles crimes como o que realmente
eram: um fenômeno sinistro e imprevisto, nascido e cultivado por amplas e
complexas questões sociais. As origens daqueles assassinatos, bem como dos
infanticídios de Dagmar, retratados em A
Garota da Agulha, ou menos os delitos menores relatados do tragicômico Pequenas Cartas Obscenas (2023), também baseado
em fatos reais, é a infelicidade generalizada diante da falência da condição
humana (como deveria ser) representada pelas guerras e suas consequências
opressoras, mas também por todo tipo de chaga social fruto da ganância, do
autoritarismo, da exploração dos semelhantes. A dureza da vida cauteriza a
sensibilidade, brutaliza a existência. Todas essas mulheres assassinas mal
enxergavam seus crimes como tal. Num tempo em que a vida humana passou a valer
tão pouco (vide mais adiante o livro Noite, de Elie Wiesel sobre as agruras dos
judeus nos campos de concentração da 2GM), em que a condição de vida na Terra
passou a ser selvagem, talvez tenham apenas se convencido de que estavam
antecipando um processo cruel fadado a existir de qualquer maneira. A principal
causa para esse enlouquecimento coletivo parece se relacionar a um niilismo
cultural gerado por um processo de desumanização social pelo modo animalesco em
que viviam, por um primitivismo anímico absoluto que as tornava leoas famintas
por qualquer conforto que pudessem conseguir, ainda que a custa de outras
pessoas.
Em A Garota da Agulha, são tantas as demandas não atendidas gerando
vampiros que até a pequena menina loura, ao se ver privada de seu único momento
de conforto, se torna homicida em potencial. A infantilização da menina,
mantida no peito mesmo tendo idade para se alimentar de outra forma, com a
intenção de manter Karoline produzindo leite, pode ser compreendida como uma
metáfora da perpetuação da miséria em sociedades devastadas nas quais nunca se
dão oportunidade de redenção, todo continente africano que o diga.
Na cena final, Karoline, (cujo nome
é um diminutivo de Carla, feminino de Carlos, que significa “homem livre do
senhor feudal”) ela mesma acolhida pelo marido sem rosto e seus amigos artistas
decadentes, consegue recursos internos suficientes para redimir-se adotando a
menina loura, não mais como um bebê, mas como uma menina de 7 anos, aspecto que
a cena faz questão de ressaltar. Karoline deixa de ser alguém sugada para se
tornar alguém capaz de se doar no cuidado de uma menina que não mais suga, mas
existe para se desenvolver.
Os horrores das duas grandes
guerras, duas das muitas só para falar do século XX são apenas destaques
incandescentes dos horrores que acontecem todos os dias nas ruas, nas casas,
nos becos e nos guetos da vida...
Seriam os homens menos suscetíveis
aos desvios de uma coletividade enlouquecida por neuroses ou psicoses de massa?
Cito aqui só um caso para ilustrar
o meu NÃO categórico.
No filme Entre Mulheres, de 2022, vemos os gêneros mudarem de lugar e
observamos horrorizados a história de uma comunidade cristã isolacionista, em
Manitoba, na Bolívia, de credo ultra-conservador, onde, entre 2005 e 2009, mais
de 150 mulheres e meninas, incluindo idosas e crianças pequenas, são sistematicamente
estupradas por homens da própria comunidade que para conseguir seus intentos
drogavam suas comidas com tranquilizantes para vacas. Corpos dilacerados, abusos,
estupros, doenças venéreas, gravidezes indesejadas e seus algozes eram seus próprios
irmãos, pais, maridos, filhos e amigos – todos irmãos em Cristo. Essa
comunidade fechada para o mundo lá fora, centrada numa interpretação radical
das Escrituras Sagradas que apregoava um retorno aos “bons tempos antigos” e
aos papéis tradicionais de gênero, onde mulheres eram sequer alfabetizadas e
vivam suas vidas submetidas à autoridades masculinas ditas representantes de
Deus na Terra, se tornaram presas fáceis de um sistema social absurdamente
opressor, injusto e maléfico. A loucura coletiva torna homens e/ou mulheres em
seres baixos e cruéis. A maldade é inerente ao ser humano, coloque-nos num
contexto propício e qualquer um de nós virará monstro. Vide Hanna Arendt, em A Banalidade do Mal.