A pele que habito

A pele que habito

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A Garota da Agulha e a Banalidade do Mal

           



    O filme “A Garota da Agulha”, do diretor sueco Magnus Von Horn, para se dizer o mínimo, é uma obra impressionante.

            Von Horn, diretor e roteirista sueco-polonês, parece extrair da mítica de sua própria ascendência uma veia trágico-épica que descreve seu trabalho sem destituí-lo de uma lírica sensível e contundente. O interesse no tema da violência surgiu de sua própria experiência pessoal com ela e inaugura em seu terceiro longa metragem uma maneira toda especial de se resgatar o passado com perfeição sem tentar dar explicações fáceis para temas do presente. Não à toa, sua película vem numa jornada fértil de discussões, elogios e premiações.

            A história do filme, contada através de um olhar nada anacrônico, verdadeiro respiro para o universo da Arte higiênica de hoje em dia, consegue articular por meio da utilização magistral de aspectos da estética gótica toda a pungência de uma sequência de fatos sinistra, bem como todas as denúncias que a compõe. A retratação de uma Copenhague pós-1ª. Grande Guerra, assolada pela crise econômica, política e moral que tomou a maior parte da Europa da época, é feita pelo viés da vida daqueles que realmente ficam com a conta das guerras: os elos mais frágeis da corrente, a saber, as mulheres e as crianças. Locada em espaços sombrios, nos cenários sujos e fumacentos da Revolução Industrial, encontra-se Karoline, uma operária da área da tecelagem e costura, cujo marido desapareceu há um ano em combate e que não tem mais condições que manter seu já paupérrimo apartamento...

            É de particular interesse a forma como os espaços são trabalhados em todo o filme, nos levando ao gênio narrativo e crítico de George Orwell, que em “O Caminho para Wigan Pier”, fruto de seu convívio de dois meses com os mineiros de carvão do norte da Inglaterra,  começa com:

“O primeiro som da manhã eram as batidas dos tamancos as moças da fábrica de tecidos, caminhando pela rua de pedras. (ORWELL, 2010, p.25)

            Os cenários do filme de Von Horn, assim como os do livro de Orwell, são compostos por ambientes escuros e pouquíssimo arejados, nota-se, inclusive, a ênfase na cena da única janela emperrada na segunda moradia de K, ainda mais precária que a primeira, janela bloqueada que também é lugar comum nos relatos do autor inglês. No trabalho de ambos, escritor e cineasta, os espações são frios, degradantes e degradados, provisórios, organizados de forma precária, sujos, com móveis feios e pesados em entalhes, com penicos explícitos, improvisados em baldes, e administrados por concierges maléficos que se assemelham a carcereiros. No filme, a função de tais figuras parece ser a de manter diante de K. e do espectador a total condição de indigência da personagem.

            As torres pontiagudas e esguias e a predominância de construções longilíneas expressam uma total inacessibilidade a qualquer aspecto do transcendente aos que habitam o chão. O poder é manifestado por uma força fálica espicaçante, inflexível e hermética. Diante dela, os seres humanos na base são meros insetos encerrados em caixas ásperas e desconfortáveis. Inclusive as camas são sempre mostradas como pequenas demais para seus ocupantes, como as da época; a água da limpeza é sempre parca e suja; a comida é repugnante e escassa; os dias são todos de trabalho; as pessoas são grosseiras e abestalhadas; para todo lugar que se olha não existe nenhum alívio. O aspecto sombrio constante deforma o contorno dos rostos e muitas vezes tem-se impressões terroríficas na contemplação dos personagens; mesmo as crianças são retratadas como bonecas quebradas do século XIX ou, até mesmo, como mortos retratados, como era costume naquele tempo. O marido sem rosto de Karoline parece não ser o único em sua condição.

A miríade de cinzas é utilizada no filme de maneira a tornar os cenários amargurados e sufocantes, jamais há um alívio, uma lufada de ar fresco, mesmo durante as tomadas externas. O entorno nos condena a um artificialismo mecânico que fala por si mesmo ao destacar toda a insalubridade de uma era fabril, onde a existência foi reduzida a um bestial e o sentido da vida é a manufatura com suas vicissitudes. O produto da miscigenação dos seres humanos com o fumacento carvão do início do século XX é a desumanização, condição essa que é ilustrada no filme na forma do grotesco através das máscaras deformadoras da abertura que ressurgem mais adiante, na noite de pesadelos de Karoline após o retorno do marido sem rosto, cheio de traumas, mas com bom coração. A realidade constituída a partir dessa desumanização tem sua expressão máxima na forma de nossas duas grandes guerras, cujo saldo de mortos ultrapassa aos 70 milhões, cerca de um terço da população do Brasil de hoje. Em proporções, nunca antes a vida humana valeu tão pouco ou foi tão fácil e brutalmente descartada. Não sabemos o que será depois, para alguns estudiosos, o mundo ainda vive na depressão do pós-guerras.

            No aspecto mais intimista vemos no filme uma jovem costureira, completamente desvalida, trabalhando de sol a sol por migalhas, tentando, sem muito sucesso, colocar um teto sobre a cabeça, mesmo que esse teto seja pulguento, escuro e sem janelas. Dentro da Oficina de Costura, constituída no formato de um formigueiro, vemos centenas de mulheres-operárias uniformizadas, costurando grosseiros uniformes de guerra onde antes se faziam os mais finos tecidos. O vai-e-vem das mulheres-formiga, metáfora perfeita do vampirismo de um mundo colonial aniquilador de subjetividades, que envia os homens para sangrar nos campos de batalha enquanto explora a força de trabalho de suas mulheres e mata suas crianças de fome, de doenças, de violência. Não à toa, a agulha que costura, que tricota, que tece proteção, também aborta.

            O tom fortemente niilista do filme, que o tempo todo nos solapa com a denúncia evidente da desvalorização e da falta de propósito da existência humana, incomoda tanto que nos prende à uma esperança pungente de que exista alguma redenção para Karoline; é quase insuportável assistir o vertiginoso progresso de sua miséria, nos identificamos com sua fragilidade diante de uma desgraça tão visceral que se torna inominável, sem código, sem palavras. Tudo em Karoline deságua em um instinto bruto de sobrevivência que nem ela mesma parece conseguir acessar para criticar ou compreender – condição de animal ferido, primitivo, infantil. Karoline, diante da vida e da sociedade que a cerca, é tão vulnerável quanto os bebês que ajuda a matar sem saber!

            As relações de Karoline surgem na atmosfera de um romantismo sombrio, gótico. Completamente desamparada com a perda da casa e sem conseguir se declarar viúva, o que lhe daria um parco auxílio-financeiro, solitária e com medo, a jovem, a despeito de seus parcos atributos pessoais, se vê diante do “ombro-amigo” de um possível redentor, que na verdade é um homem infantilizado, irresponsável, mais deficiente de caráter do que no corpo e capturado pelos valores de uma sociedade elitista que privilegia alguns e defrauda a todos. Tal sociedade é magnificamente representada pela figura da mãe de seu amante, cuja aparência remente muito a um Nosferatu e que trata Karoline como uma égua sem pedigree, a humilha e expõe suas intenções de aborto do próprio neto com uma franqueza e objetividade chocantes. O próprio relacionamento amoroso é apresentado de forma precária, a intimidade dos dois é crua, precipitada, vivenciada inclusive em público, em plena luz do dia, num beco sujo, onde podiam ser vistos por qualquer um, como meros animais de rua. Até mesmo a parca tentativa do dono da fábrica de tornar aquele vínculo algo mais afetivo é desajeitada, artificial, inadequada e extravagante como bem ilustra o vestido espalhafatoso com o qual presenteia Karoline em uma Natal gélido.

            O total abandono de uma Karoline grávida, que além de ter suas estapafúrdias esperanças de redenção e alegria irem para o ralo, ainda por cima é demitida com um “...seu trabalho não é mais necessário...”, ficando, portanto sem renda alguma para se sustentar, traz à tona um tema nunca discutido o suficiente nas bolhas sociais que é o Aborto Masculino. A relação direta que o cineasta estabelece entre a rejeição e abandono de Karoline à própria sorte por seu amante rico e a agulha, que compõe o título e também nos recorda todos os outros elementos cênicos pontiagudos do filme, revela a chaga social causada por valores (ou desvalores) de um masculino infantilizado, egoísta e irresponsável que explora, abandona, rejeita e fez guerras. A agulha longa, pontuda, rígida, retratada quase como dourada num contexto de pretos e brancos, expressa o poder masculino (o phallus psicanalítico) que atravessa, às vezes para dar prazer e gerar família, às vezes para sangrar a mulher e despedaçar o filho, matando a ambos simbolicamente, às vezes também materialmente.

O também chamado “aborto estatutário ou financeiro” é a capacidade (ou devíamos chamar de direito?) do homem (pai biológico), antes do nascimento da criança (seu filho), de optar por não exercer quaisquer deveres, privilégios e responsabilidades em relação à criança, incluindo o financeiro. A Ciência Social relaciona o aborto masculino com a manutenção da desigualdade social [1] em países pobres, mas isso é assunto para outro texto. O filme trata de algumas possíveis relações diretas desse fenômeno (que no Brasil, inclusive, tem índices alarmantes), sobretudo no contexto de guerra.

A primeira consequência direta do aborto masculino é a tentativa de aborto de Karoline. Momento crítico de sua existência precária e que resulta em seu encontro com Dagmar. Após a deserção do amante, vemos a mulher entrar em um banho público, assistimos ao desfile de corpos nus de um realismo equalizador, seus olhos apavorados já anunciam ao público mais uma desgraça, acompanhamos seus movimentos ao entrar na banheira de lata, assistimos o desembrulhar da agulha e numa tensão cada vez mais constrita acompanhamos suas mãos introduzindo desajeitadamente a agulha em seu corpo, como se não fosse seu e observamos seu grito mudo e todas as mulheres que assistirem ao filme sentirão no corpo uma reação ancestral de repulsa e medo diante do corpo invadido, diante da dor e da consequente hemorragia. Só um homem muito apaziguado com seu feminino interior, que teve boas relações com as mulheres de sua vida é capaz de compreender a brutalidade de um ato como esse.

E no ponto nevrálgico da narrativa eis que surge uma promessa de redenção; não da forma tradicional de um homem amoroso e provedor, mas na figura de uma mulher mais idosa, com uma menina e um saber. Essa mulher se mostra empática e maternal em seus gestos, sua voz é acolhedora e propõe uma solução mais humana, mais virtuosa e menos dolorida, diz que sabe como fazer para doar a criança para famílias abastadas que não podem ter filhos; o sonho secreto de toda mãe miserável é, sem dúvida, ver seu filho ter uma vida muito melhor do que a dela. Karoline pega seu endereço e segue sua vida desgraçada, trabalhando pesado para si e agora também para um marido deformado e transtornado pela Guerra, mas que não a rejeita pelo adultério e nem tripudia seu abandono.

As cenas de Karoline trabalhando no meio das beterrabas com uma grande barriga de gravidez avançada são se uma crueldade ímpar. A horda de pessoas em situação de pobreza extrema implorando por trabalho e, ao fim, seu parto em cima do monturo de beterrabas, a comida de porcos que alimentava ela e seu marido, tornam a decisão pela doação do bebê uma decisão inevitável.

Vale aqui destacar que o homem deformado e emasculado pela guerra é o único personagem capaz de real sensibilidade e afeto. Ao acolher a criança que sequer é sua e dispor-se a cria-la com amor nos oferece uma lufada de ar fresco em meio ao fumarento destino das pessoas ao seu redor e revela um outro masculino possível, todo constituído de empatia e de perdão, aspectos inéditos dentro de uma sociedade patriarcal avarenta de afeto e de compartilhamento, próspera em vinganças e jornadas de herói. A fragilidade desse marido traído e machucado torna-se a fresta para os aspectos de uma humanidade latente, não mais aquela da condição caída, mas a refeita das cinzas, purificada, renascida. De forma semelhante, ao final, são os artistas do circo mambembe, a maioria páreas da sociedade, deficientes e anormais, que oferecem, finalmente, alguma possibilidade de lar para Karoline, proteção e segurança, precárias é fato, como as que eles mesmo gozam, como as que temos vivendo nesse mundo, ainda assim melhor do que ela tinha tido até então.

Do ponto de vista da Arte, o espetáculo circense é sim decadente, bastante coerente com o que se pode esperar daquele período, ainda assim, a deformidade do marido é apresentada com verdade, como resultado da guerra - ou da falência da inteligência e do diálogo frente ao progresso da ganância e da estupidez. A mensagem é trágica e de crítica social, não cômica e isso fica evidente no pouco riso nervoso de uma plateia em si mesma brutalizada pela realidade ao seu redor. Muito embora a horrível deformação no rosto do soldado pareça representar toda a desumanização do período retratado, também abundantemente expressa nos comportamentos vis da maioria dos personagens, ao fim e ao cabo é o homem-monstro sem rosto e seus pares artistas-aberração os que melhor demonstram atitudes próprias daquilo que se pode esperar da dignidade de um ser humano tido como criado à imagem de Deus.

Mesmo diante do apelo do marido para que ficassem com a criança, o que move Karoline no momento do nascimento da criança é a necessidade de algum tipo de libertação de todo confinamento em que vive: físico, social, moral, emocional e existencial. Ela deseja se livrar do fardo de criar um filho ilegítimo de um homem que lhe abandonou sem ter peso na consciência. Quer abandonar a filha como quem lhe faz um favor. Quer se entregar ao erro como quem se enche de virtude.

Dagmar, a vendedora de doces resgatadora de moças pobres e desesperadas em situações devastadoras, que aceita os fardos dessas mulheres por alguns trocados e garante uma vida auspiciosa para suas crias malditas é inspirada em uma mulher real homônima, dinamarquesa, que no período da Primeira Guerra Mundial, por cerca de sete anos, assassinou de 9 a 25 crianças (não se conseguiu apurar de forma apropriada), incluindo seu próprio filho. Seu julgamento foi tão notável que gerou mudanças nas leis de proteção à criança na Constituição da Dinamarca. Dagmar Johanna Amalie Overby tornou-se tão emblemática no imaginário popular de seu país que inspirou um livro (The Angel Maker, de Karen Sondergaard Koldst) e uma peça de teatro cujo título faz um trocadilho entre a palavra mãe (mutter, do alemão) e assassinato (murder, do inglês).

A aversão despertada pela personagem ao nos depararmos com a real natureza da ajuda que prestava àquelas mulheres desesperadas é resposta comum do íntimo de qualquer ser humano que se pretenda como tal, mas em poucos segundos de uma reflexão mais profunda, nos deparamos ainda mais perplexos, que os crimes de Dagmar, se não são compreensíveis, podem ser categorizados ao menos como “tragédias anunciadas”. A sabedoria popular já dizia que “a corda sempre rompe no elo mais fraco”, o óbvio apregoa que o preço da guerra ou de qualquer outro desequilíbrio de uma sociedade sempre será pago pelos mais vulneráveis. O sintoma da doença de uma civilização sempre se manifestará através do comportamento de seus indivíduos mais desvalidos (e isso em qualquer sentido).

O significado do nome Dagmar, ‘Glória do Dia’, ganha um tom bastante irônico se pensarmos que é comum chamarem o trabalho de parto de “dar à luz uma criança”. É através de seus feitos obscuros que Dagmar terá seu Dia de Glória. As cenas de seu julgamento são bastante pungentes e a forma aguerrida com que defende sua causa nos revela uma consciência heroica, um papel de vingadora daquelas mulheres abandonadas que não se furta de desempenhar. Dagmar era “aquela que ajuda quando ninguém mais quis ajudar”. A verdade particular de Dagmar nos remete à uma feiticeira mítica, não a uma simples bruxa moderna. Ela se revela uma Medeia revisitada, uma vingadora pós-Revolução Industrial, punindo com ser areté[2] macabro um Jasão coletivo, por ter abusado, traído e abandonado todas as mulheres, trocando-as por ambições e cobiças. Assim como em Medéia a morte das crianças, filhas dela com Jasão, é brutal e irredimível; assim como em Medéia o horror da ingratidão e o descaso dos homens (eles mesmos desfigurados pelas guerras) com o sofrimento das mulheres e de seus filhos tornam seus crimes inevitáveis diante da calamidade do mundo. A frase que Dagmar usa mais de uma vez no filme para convencer a si mesma, mais do que aos outros, da justiça de seus crimes é: “o mundo é um lugar horrível”.

Existem inúmeras discussões em torno da possibilidade de que comportamentos brutais, inclusive e, principalmente, assassinatos em série surjam como sintomas de doenças sociais.[3] A Europa durante e depois das guerras mundiais parece ter sido um celeiro dessas manifestações. Deixando de lado os aspectos relacionados a genocídios, que falam por si, o caso particular de Dagmar não foi o único onde pessoas comuns fizeram coisas medonhas, também não foi o maior, talvez seja, sem dúvida, um dos mais chocantes, devido ao fato das vítimas serem bebês, mas outros casos, como os da cidade de Nagyrév, na Hungria, também nos chocam bastante, pela duração e banalidade de motivos.

A série de crimes de Nagyrév[4], ocorrido entre 1914 e 1929, ficou conhecida como “O Caso das criadoras de anjos de Nagyrév”. Aqui observamos uma situação de sororidade letal, onde durante quase duas décadas ocorreram homicídios deliberados, lentos e repetidos, sem quase nenhuma investigação realmente interessada.

Os crimes começaram a ser investigados de fato a partir de uma carta anônima endereçada a um pequeno jornal húngaro chamado Szolnok Gazette, em junho de 1929, que afirmava haver “algo de podre em Nagyrév”, a cidade vizinha. Referências Shakesperianas à parte, os assassinatos dessa pequena comunidade húngara, como todos os assassintatos, narram histórias de loucura, de corrupção, de ódio, de vingança, de traição e de tantas outras chagas morais e existências próprias da raça humana. Raça essa da qual todos fazemos parte. Alguns mais do que outros.

Duas curiosidades sobre a série de assassinatos saltam aos olhos e se relacionam na elucidação do ocorrido: As principais suspeitas eram todas mulheres por volta dos 55 anos e Nagyrév era uma cidadezinha isolada, de difícil acesso, sem estações de trem ou acesso a médicos, sem possibilidade de progresso e pouco contato com o mundo sem tecnologia digital da época. Os homens, nesse período, estavam retornando da Guerra, mutilados, irritados e sofrendo de estresse pós-traumático. A crise agrícola empobreceu a população que não se sentia confortável para compartilhar seus dramas pessoais e econômicos com os poucos abastados e com os que detinham o poder. Uma porcentagem gigantesca dos homens combalidos de Nagyrév se tornou alcoólatra e maltratava suas famílias regularmente. Devido às dificuldades socioeconômicas, muitos casais iam viver com os sogros e outras pessoas da família o que gerava ambientes domésticos hostis onde os rígidos papéis de gênero contribuíam para a tolerância de abusos de toda espécie, o mesmo fator econômico impedia muitas mulheres de cogitar o divórcio.

Num contexto como esse, as crianças eram vistas como fardos, vide “A Garota da Agulha”, uma boca a mais para alimentar e tempo a menos para a mulher trabalhar. Métodos anticoncepcionais perigosos eram utilizados, abortos caseiros letais e, em último caso, os infanticídios eram tão comuns que os pais suspeitos de matar seus filhos sequer eram denunciados.

Bela Bodó, historiador húngaro, escreve em A Social History of a Murder Epidemic que quanto mais marginalizada é uma comunidade, mais frustrados serão seus habitantes com sua condição de isolamento e pobreza e maior será a probabilidade de se voltarem para um comportamento deturpado e corrompido.

O vórtice da série de assassinatos foi uma parteira, Zsuzsanna Fazekas, que assim como Dagmar, se propunha ajudar quando ninguém mais ajudava e não hesitava em sugerir a possibilidade dos assassinatos às suas clientes desesperadas, distribuindo veneno e métodos para sua fabricação como se fosse aspirina. Através das orientações da sempre disponível comadre matou-se maridos abusivos, bebês indesejados, filhos doentes, pais e mães inconvenientes e quaisquer uns que se tornassem um fardo pesado demais para mulheres que não suportavam mais nada para carregar. Foram 42 assassinatos, cometidos por 24 pessoas, durante mais ou menos 20 anos. Aquela geração de mulheres exauridas e enlouquecidas matou por desespero, por vingança, também por ganância ou luxúria, todas emoções dessa nossa condição humana, demasiada humana.

Durante as investigações tentaram atribuir a Zsuzsanna a fonte principal da rede de assassinatos, é muito mais palatável acreditar que um único e, portanto mais controlável, demônio foi capaz de tal façanha, do que reconhecer aqueles crimes como o que realmente eram: um fenômeno sinistro e imprevisto, nascido e cultivado por amplas e complexas questões sociais. As origens daqueles assassinatos, bem como dos infanticídios de Dagmar, retratados em A Garota da Agulha, ou menos os delitos menores relatados do tragicômico Pequenas Cartas Obscenas (2023), também baseado em fatos reais, é a infelicidade generalizada diante da falência da condição humana (como deveria ser) representada pelas guerras e suas consequências opressoras, mas também por todo tipo de chaga social fruto da ganância, do autoritarismo, da exploração dos semelhantes. A dureza da vida cauteriza a sensibilidade, brutaliza a existência. Todas essas mulheres assassinas mal enxergavam seus crimes como tal. Num tempo em que a vida humana passou a valer tão pouco (vide mais adiante o livro Noite, de Elie Wiesel sobre as agruras dos judeus nos campos de concentração da 2GM), em que a condição de vida na Terra passou a ser selvagem, talvez tenham apenas se convencido de que estavam antecipando um processo cruel fadado a existir de qualquer maneira. A principal causa para esse enlouquecimento coletivo parece se relacionar a um niilismo cultural gerado por um processo de desumanização social pelo modo animalesco em que viviam, por um primitivismo anímico absoluto que as tornava leoas famintas por qualquer conforto que pudessem conseguir, ainda que a custa de outras pessoas.

Em A Garota da Agulha, são tantas as demandas não atendidas gerando vampiros que até a pequena menina loura, ao se ver privada de seu único momento de conforto, se torna homicida em potencial. A infantilização da menina, mantida no peito mesmo tendo idade para se alimentar de outra forma, com a intenção de manter Karoline produzindo leite, pode ser compreendida como uma metáfora da perpetuação da miséria em sociedades devastadas nas quais nunca se dão oportunidade de redenção, todo continente africano que o diga.

Na cena final, Karoline, (cujo nome é um diminutivo de Carla, feminino de Carlos, que significa “homem livre do senhor feudal”) ela mesma acolhida pelo marido sem rosto e seus amigos artistas decadentes, consegue recursos internos suficientes para redimir-se adotando a menina loura, não mais como um bebê, mas como uma menina de 7 anos, aspecto que a cena faz questão de ressaltar. Karoline deixa de ser alguém sugada para se tornar alguém capaz de se doar no cuidado de uma menina que não mais suga, mas existe para se desenvolver.

Os horrores das duas grandes guerras, duas das muitas só para falar do século XX são apenas destaques incandescentes dos horrores que acontecem todos os dias nas ruas, nas casas, nos becos e nos guetos da vida...

Seriam os homens menos suscetíveis aos desvios de uma coletividade enlouquecida por neuroses ou psicoses de massa?

Cito aqui só um caso para ilustrar o meu NÃO categórico.

No filme Entre Mulheres, de 2022, vemos os gêneros mudarem de lugar e observamos horrorizados a história de uma comunidade cristã isolacionista, em Manitoba, na Bolívia, de credo ultra-conservador, onde, entre 2005 e 2009, mais de 150 mulheres e meninas, incluindo idosas e crianças pequenas, são sistematicamente estupradas por homens da própria comunidade que para conseguir seus intentos drogavam suas comidas com tranquilizantes para vacas. Corpos dilacerados, abusos, estupros, doenças venéreas, gravidezes indesejadas e seus algozes eram seus próprios irmãos, pais, maridos, filhos e amigos – todos irmãos em Cristo. Essa comunidade fechada para o mundo lá fora, centrada numa interpretação radical das Escrituras Sagradas que apregoava um retorno aos “bons tempos antigos” e aos papéis tradicionais de gênero, onde mulheres eram sequer alfabetizadas e vivam suas vidas submetidas à autoridades masculinas ditas representantes de Deus na Terra, se tornaram presas fáceis de um sistema social absurdamente opressor, injusto e maléfico. A loucura coletiva torna homens e/ou mulheres em seres baixos e cruéis. A maldade é inerente ao ser humano, coloque-nos num contexto propício e qualquer um de nós virará monstro. Vide Hanna Arendt, em A Banalidade do Mal.

 

 

 

 



[2] Do grego Areté, virtude ou excelência em sua área de atuação

[4] TELFER, Tori. Lady Killers: Assassinas em série.2019.

Nenhum comentário:

Postar um comentário