A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Escritora de vila

Dia desses, numa dessas minhas caminhadas sem rumo pelo bairro (eu adoro caminhar sem hora para voltar...), encontrei na avenida uma amiga de infância, já não nos víamos há anos e ela ficou surpresa de me ver por ali depois de saracotear de norte a sul por tanto tempo.

Começamos a rir lembrando de nossas brincadeiras, dos batismos de bonecas, concursos de miss, peças de teatro, escolinhas, chás da cinco, maquiagens, oficinas de costura, e todas essas coisas construtivas que as meninas fazem quando estão sozinhas entre si.

- E aí, continua escrevendo? – Perguntou ela com aquela esperança nostálgica de que alguém tenha realizado seus sonhos de criança, ela própria cantora frustrada com bela voz, filho na adolescência e carreira promissora como enfermeira padrão em um bom hospital.


Respondi sorrindo com minha timidez característica de toda vez que falo de mim, escrevo sim, mas do meu jeito quase anônimo. Ela riu muito, dizendo que isso era mesmo a minha cara, que era um desperdício, que eu escrevia tão bem, que devia investir e ganhar dinheiro com isso.


- Fora que como vai ter idéias nessa vila?


Nessa hora lembrei do Érico Veríssimo e da cidade de Cruz Alta/RS onde nasceu e viveu um bom tempo. Fiz questão de conhecer depois de ter lido toda a saga dos Rodrigo Cambará, confesso ter ficado um pouco perplexa diante dela, poeirenta, feiosa, meio sem graça mesmo, pensei muito sobre a questão da inspiração, do que nos faz ser criativos, do que nos dá imaginação. Recordo que sentei na pracinha meio capenga, fiquei parada esperando que algo acontecesse e segundos depois, as coisas realmente se revelaram, estava tudo ali: a igrejinha escura no centro da praça, palco de tantos casamentos, batizados e funerais, palco da revolução farroupilha,e de tantas outras brigas de lenços da política gaúcha, a velhinha beata de véu preto e sombrinha rendada dos tempos de moça em que havia se apaixonado pelo padre, o peão segurando o arreio do cavalo imponente que comandava a boiada, até o ricaço meio brega, de família tradicional que dava em cima das mocinhas pobres e tolas que trabalhavam na lojinha de quinquilharias do centro. Muitas histórias pra ouvir e pra contar. Tudo ali apenas esperando uma pena habilidosa!


Embora eu goste muito de viagens e reconheça seu potencial enriquecedor, ninguém precisa viajar pelo mundo (ou para fora dele) para ter imaginação; diz-se que Balzac tinha uma vida social ínfima, quase não ia a festas e trocava tudo para estar em casa escrevendo, Proust mal saiu do quarto durante toda sua vida, o que dizer de Jane Austen e das irmãs Brontë, filhas de pastor na era vitoriana? Aliás, filhas de pastor costumam ser muito talentosas, conheço várias poetizas, escritoras, musicistas. Talvez seja o ambiente um tanto metafísico em que somos criadas, sei lá...rs...


Ninguém precisa chafurdar nas drogas pra ser criativo, ou mesmo vestir máscaras na vida real para interpretar personagens, ninguém precisa se suicidar para se tornar um gênio, ou passar por overdoses para imortalizar sua música. A única coisa necessária é talento! Van Gogh podia ter cortado as duas orelhas, pés e mãos e se não fosse um grande pintor, não teria sido reconhecido como é hoje...


Gosto de ser escritora amadora de vila, gosto de ser simples e anônima, gosto de ter uma vida normal (ou quase), gosto de ser pequena e livre, gosto de ser reconhecida e admirada pelas pessoas que realmente me conhecem, gosto de escrever para quem eu amo (cartas, histórias, reflexões), para quem eu - pessoa - realmente importo.


Amo os grandes escritores, sou grata por eles terem se feito grandes, e amplamente divulgados, porque assim posso lê-los! Quanto a mim, meu real talento é cuidar, também cuido quando escrevo, cuido da alma, assim como quando atendo na clínica ou na loja. Prefiro tocar nas pessoas individualmente, toque sutil, profundo e para sempre, às vezes dura anos, às vezes minutos, mas sempre causam algum efeito, em geral, benéfico...rs...


No final, o que realmente importa é quem somos de verdade, aquele cara no espelho de antes de dormir, e o que fizemos por aqueles que atravessaram nosso caminho. Fico um pouco surpresa comigo mesma por ser jovem e ter consciência plena dessas coisas, por não me deslumbrar com as futilidades fúteis do dia-a-dia, dou todo o mérito aos meus pais e avós, pela sensatez de terem nos ensinado sobre seus próprios erros e acertos com tanta honestidade.
Pequena homenagem ao meu avô, o herói de guerra anônimo mais famoso que já conheci: Nossa vila te adora, Nono! Todo mundo comenta sobre você quando paro nas mercearias, bazares e docerias...