A pele que habito

A pele que habito

quarta-feira, 25 de março de 2020

Abstinência...




A inspiração é a incógnita da equação,
A musa que assola na hora oculta. As setas voam e não se
percebe o impacto, nem se percebe que todo um elenco de catalisadores,
uns independentes dos outros, reuniu-se de modo clandestino
para formar um sistema singular, dissolvendo o indivíduo com as vibrações
de uma doença incurável – ao mesmo tempo profana e divina.
O que se há de fazer com os impulsos então gerados,
com essas terminações nervosas que cintilam como um mapa iluminado
de constelações desonestas?
As estrelas pulsam.
A musa busca ganhar vida.
Mas a mente é também musa.
Busca ser mais inteligente que seus gloriosos oponentes,
Reestruturar tais forças de inspiração.
Um riacho de cristal que súbito seca.
Um coisa de beleza, exânime, conspurcada.
Por que o criador retorce o drama todo?
   A pena se ergue, guiada pela musa estilhaçada.
Sem dissonância, ela registra, não se percebe a harmonia,
sem dissonância ela continua, Abel se dissolve em não mais que um pastor esquecido.
Patti Smith – Devoção



Enquanto o mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que tudo isso é normal
Eu finjo ter paciência...
Lenine – Paciência


Sou uma pessoa de cafés.

Adoro sentar e pedir o cappuccino ou o coado da vez, ler ou conversar, daquelas conversar compridas, com alguém cuja voz gosto de ouvir, cujo raciocínio gosto de acompanhar, cuja vida me desperta o mais honesto e curioso interesse.

Sempre fui assim.

Minha mãe conta que já na primeira série, contando com apenas 6 anos, um dia demorei a chegar em casa da escola (...e sim, eu voltava sozinha, morávamos literalmente na frente da unidade escolar) e ela me encontrou sentada no bar ao lado, tomando Fanta laranja com uma amiga, no maior dos papos, como se eu fosse uma quarentona alegre, um pouco metida a intelectual e cheia de histórias para contar, o que acabei, de fato, me tornando.

As histórias me animam e me inspiram. Histórias inventadas ou vividas, histórias escritas e histórias contadas. A vida das pessoas, suas pequenas e grandes façanhas na rotina do dia-a-dia. Algumas pessoas nem sabem, mas tomam parte em um romance digno do cânone literário, cada vez que levantam da cama, pela manhã e tocam os mandos de desmandos da sua existência quase anônima. Somos todos personagens nas histórias que a vida nos permite protagonizar.

A espontaneidade, em minha pequena opinião, é um sinônimo de saúde mental. Articulada àquilo que no século XVII ficou conhecido como discreción[1], faria de um ser humano, se não feliz, ao menos bem mais satisfeito consigo mesmo. Desse modo, que mais ambicionaremos na vida do que nos tornarmos a melhor versão de nós mesmos que pudermos ser? Para tanto, abrir mão de certas inibições vazias, de restrições alheias  sem sentido e de cobranças internas neuróticas seria condição sine qua non.

Vivemos hoje uma situação de exceção que começou de forma tão rápida e avassaladora que mal tivemos tempo de perceber onde fomos atingidos. De um dia para outro, nos trancaram em casa, nos afastaram do trabalho in loco, nos privaram da maioria das nossas fontes de lazer e também da grande maioria das pessoas que amamos ou com quem costumamos conviver. Pouco somos capazes de apenas exercer nosso direito de ir e vir. De repente não há mais igrejas, escolas, manicures, cinemas, shoppings, livrarias, restaurantes e cafés. Mal conseguimos sair para caminhar em parques ou pelo menos levar o cão para fazer suas necessidades na calçada. Gente que não lavava a própria cueca há tempos, se vê tendo que faxinar a casa inteira para não se contaminar com o Covid19[2] da periferia, onde vive sua empregada doméstica. Mesmo com trabalhos online e tarefas passíveis de um home office, nos sobra mais tempo e nesse excesso de tempo e de pouco espaço, se ampliam os silêncios, esse longos silêncios que nos abrem espaços mentais gigantescos, everéticos[3] para refletir e ouvir as vozes que teimamos em calar por décadas em nossas bolhas existenciais movidas a excesso de trabalho, excesso de lazer, excesso de relações superficiais, excesso de atividade de toda ordem. Excesso! Excesso que nos esvazia.

Desde o final do meu doutorado, sentia que a voz que me levava a escrever, ou estava exaurida ou silenciada. Nada me fazia sentar e dizer, ainda que minha cabeça continuasse acelerada e as ideias seguissem pululando. Parecia que nenhum assunto, nenhum pensamento, nenhum sentimento meu mais merecia ser tocado, articulado, registrado. Encerrei com diários, com cartas, com textos de blog, com poemas, com contos, com ensaios, com qualquer palavra escrita que pudesse ter algum significado para mim ou para outros. Enfiei a cabeça na areia e assumi que um novo constrangimento interno ou um mero desgaste fatal tinham extinguido minha pequena chama e que eu não teria mais nada meu para compartilhar pela via das palavras.
Bastou uma semana em casa e a rolha saltou.

Bastaram algumas horas a mais, alguns silêncios a mais, a oportunidade de ler alguns livros a mais, de conversar via online com algumas pessoas a mais com quem eu não falava há muito e toda avalanche de estudos, rigores e mudanças que ameaçaram me mutilar dissolveram. Ainda posso escrever, ainda tenho sobre o que falar, ainda penso, ainda desejo, ainda me alegro no simples compartilhar.

O dicionário online diz que abstinência significa o ato de abster-se, de privar-se do uso de algo ou, apenas, conter-se.

Tenho descoberto nesses dias, na prática, que a abstinência de qualquer coisa que nos ocupe o tempo, a vida e a existência a tal ponto de nos impedir de viver uma vida viva, autêntica, expressiva, verdadeira, é um ato de legítima defesa.

É necessário que aproveitemos essa GIGANTE oportunidade para ressignificarmos as nossas vidas, para redescobrir (ou descobrir, pela primeira vez) o que realmente nos importa, o sentido de nossa existência, a substância inequívoca da nossa essência. 

Precisamos aproveitar essa parada obrigatória para reavaliar nossos valores: individuais e coletivos, pessoais e familiares, particulares e gerais. Precisamos aprender com essa desaceleração imposta a organizar e aproveitar melhor o nosso tempo. Precisamos valorizar, com essa ausência involuntária, a presença daqueles que nos são caros e indispensáveis. Precisamos mergulhar, graças a essa introspecção inevitável, no nosso mais íntimo e redescobrir os lugares secretos onde podemos encontrar o Sagrado, o Espírito de Deus, o centro de toda razão da nossa espiritualidade. Precisamos aproveitar! A quarentena não durará para sempre e essa pode ser nossa última oportunidade de encontrarmos a nós mesmos em meio aos desencontros desse mundo, em meio à falta de sentido dessa geração.

Precisamos...Precisamos...

Essa necessidade me instiga tanto e de tal forma, que chego a sentir a urgência na pele, nas vísceras, nos dedos..






[1] Ou a arte de ‘ler’ um ambiente e um contexto e saber como se portar dentro dele, sem abrir mão de suas intenções, mas sem ofender as ‘regras’ sociais ali vigentes.
[2] Ou o vírus que paradoxalmente nos obriga a fazer contato, exatamente ao não fazê-lo.
[3] Palavra inventada para definir coisas tão grandes e desafiadoras quanto subir ou Everest ou fazer um doutorado.