A pele que habito

A pele que habito

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Alexandria e Espiritualidade

Vou aproveitar o exemplo da Hipátia e me meter em “assunto de homens”, assim do jeito feminino de fazer as coisas, de forma despretensiosa e cheia da ironia de quem sangra todo mês e não morre e, exatamente por isso não se preocupa muito com normas estabelecidas e, com o que deveria ou não ser, já que dentro de nós tudo se move em ciclos imperfeitos e imprevisíveis o tempo todo e o equilíbrio muitas vezes só é encontrado no meio do caos interior.

A primeira grande questão que tomou conta de mim de forma obsessiva, isso lá pelos 5 anos de idade, foi a seguinte: - Será que todo mundo enxerga as cores como eu enxergo? No afã de achar uma resposta razoável, fiz como toda criança curiosa (e somos cientistas e filósofos brilhantes quando pequenos) e saí colhendo dados por todo lado, queria que as pessoas me explicassem como era o azul para elas, depois o vermelho e assim por diante, e a conclusão que cheguei e ainda penso assim, tantos anos depois, é que cada um percebe as cores e o mundo de forma diferente dos demais.

Sendo assim, por que insistimos em obrigar os outros e muitas vezes até matamos (grande ironia para os religiosos, afinal em especial, para judeus e cristãos o sexto mandamento é “Não Matarás”) pessoas por querer que todos vejam as cores da mesma forma que vemos?

Aprendi tanto sobre Deus e cristianismo durante toda a minha vida, nisso sou eternamente grata ao meu pai e à sua agora não mais tão vasta biblioteca, porque quanto mais eu lia e ouvia, mais amava a Deus, mais louvava a Deus por sua infinita grandeza e, exatamente por isso, mais perguntava e quanto mais perguntava mais coisas aprendia ( e aprendo) e sinto Deus guiando este processo de aprendizagem, de aquisição de conhecimento, mesmo quando algumas questões são espinhosas e acabam por transformar dogmas em verdadeiros paradoxos intransponíveis, pelo menos por agora... Não sou, nem nunca fui de aceitar resposta pronta, porta fechada, assunto encerrado! Não está em mim isso, minha curiosidade é infinita e afinal, por que isso seria errado? Não foi Deus quem me fez assim?

O filme Alexandria traz um pouco da história dos conflitos ardentes entre religiões, e entre a religião e a filosofia. Confesso que me emocionei quando a biblioteca foi queimada por cristãos totalmente equivocados e ensandecidos, ouvi um som pesaroso na alma, numa paráfrase respeitosa, me peguei pensando: “- Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem...”. Alguém com fé mais infantil que a minha dirá: - Mas Dani, Deus é soberano, Ele não permitiria que coisas realmente importantes se perdessem! Ao que eu responderia: - Sempre assumiremos as consequências de nossos erros, ou jamais evoluiríamos...A destruição daquela biblioteca, assim como todas as malditas fogueiras santas de todos os tempos, sejam de que religião tenham sido, são atrocidades próprias do homem sem razão e dominado por uma única emoção, a saber, o ódio, algo que Cristo condenou ao extremo.

Outro assunto abordado no filme que me toca em especial é a questão da mulher, tenho só uma pergunta a fazer: - Se não era pra gente pensar e oferecer nossa contribuição, por que afinal Deus nos daria um cérebro pensante e no caso explicíto de muitas, um cérebro MUITO pensante??? Será que o apóstolo Paulo pode ter escrito aquelas coisas especificamente para o contexto das igrejas para quem as cartas se destinavam (e mesmo assim eu o questionaria se estivesse lá...)? Será que tem cabimento mulher não cortar o cabelo e não se depilar? Em que nossos pelos nos fazem mais santas? Será que nossa menstruação nos faz indignas de falar com Deus se foi ele mesmo quem nos deu essa natureza? Será que Eva é mais culpada que Adão? Onde estava esse distinto cavalheiro quando ela estava sendo engabelada pelo chaveco da serpente??? ...rsrs...Enfim, sou mulher, penso, sinto e falo (e pra ficar ainda mais perigosa, escrevo) e não há nada no mundo capaz de me impedir de perguntar as coisas que pergunto, inclusive para Deus...Existem muitos homens que respeito, alguns que admiro e amo, mas nunca deixarei de ser eu mesma, de ser livre, de pensar, ou de me sentir tão digna de ser ouvida e de existir do que qualquer um deles. DEUS NÃO FAZ ACEPÇÃO DE PESSOAS, SEJA POR SEXO OU RAÇA...Isso está na Bíblia, em claro e bom tom !!! No filme a inteligência liberta a mulher até certo momento, após o qual a escravidão se lança sobre ela com ferocidade, exatamente pelo medo que tal inteligência provocava, e que coisa medonha é a escravidão! Em qualquer tempo e época, nada destrói mais o espírito/alma do ser humano do que perder a liberdade (e sim, sou dicotomista, nisso sou Calvino...rsrs..).

E afinal, o que seria o espírito/alma do ser humano?

Sendo muito singela, fui ao Dicionário Aurélio, que nos dá o seguinte:

Princípio de vida. Entidade a que se atribuem, por necessidade de um princípio de unificação, as características essenciais à vida e ao pensamento. Princípio espiritual do homem concebido como separável do corpo e imortal(Aristóteles puro isso...rsrs...).

O conjunto das funções psíquicas e dos estados de consciência do ser humano que lhe determina o comportamento, embora não tenha realidade física ou material; espírito. Sede dos afetos, dos sentimentos, das paixões. Sentimento, generosidade, coração. Condição primacial. Essência.

Para C.S.Lewis, esse meu querido, “...você não tem alma. Você é uma alma. Você tem um corpo.”

E para mim, pequena Dani, nós somos seres humanos com alma e corpo integrados, somos um inteiro híbrido e nisso até a Bíblia me apóia, uma vez que fala de corpos transformados na eternidade e em ressurreição dos corpos, nunca vi alma penada e tenho sérias objeções sobre essa idéia de espíritos humanos vagando por aí, de modo que pra mim SOMOS ALMA E CORPO, as afecções psicossomáticas estão aí para comprovar isso o tempo todo, é científico, e mais uma vez apelo: Deus nos fez assim e achou muito bom (pouco importa se tenha levado 7 dias ou 7 eras fazendo isso...rsrs...).


Sendo assim, o que seria a tal espiritualidade?

De todas as definições teóricas que andei lendo, achei essa a mais simples, didática e despretensiosa:

"A espiritualidade é o processo de um desenvolvimento pleno,
adequado, apropriado e harmônico das capacidades espirituais
do homem. As capacidades espirituais são aquelas relacionadas com
(a) O intelecto ou a compreensão; i.e., raciocínio, memória,
percepção e imaginação,
(b) O sentimento ou do "coração"; i.e., amor, intuição,
compaixão e bondade.
(c) A vontade ou volição; capacidade de iniciar e continuar uma ação.
William Hatcher

Idéia que parece ecoar naturalmente no íntimo das pessoas, pois a síntese das contribuições de amigos leigos que recebi foi esse:
Espiritualidade é tudo o que dá sentido à vida do homem.
Espiritualidade é estar conectado.
A Espiritualidade é o ponto em que nossa razão e emoção se fundem a este "ser" transcendente que muitos chamam de Deus, de modo tão harmonioso, que sabemos ou intuímos que o que pensamos e sentimos anda em unidade com a "filosofia" daquilo em que acreditamos.

Para mim essa tal filosofia se baseia na idéia de consciência e aí uso Jung duas vezes:

“ Em várias ocasiões Jung equiparava a consciência com conscientização, intuição e APERCEPÇÃO, ressaltando a função de REFLEXÃO em sua consecução. A obtenção da consciência pareceria ser o resultado da recognição, reflexão sobre a experiência psíquica e retenção desta, possibilitando ao indivíduo combiná-la com o que ele havia aprendido, a sentir emocionalmente sua relevância e seu significado para sua vida”

e

“A base essencial de nossa personalidade é a afetividade. Pensar e agir são, por assim dizer, meros sintomas da afetividade. Os elementos da vida psíquica, sentimentos, idéias e sensações apresentam-se à consciência sob a forma de certas unidades que, numa analogia a química, poderiam ser comparadas às moléculas.”

Compreendendo as coisas desta forma faz todo sentido a afirmação de Pascal:

“..é o coração que sente Deus, não a razão.”
Crer em Deus não é pensar Deus (ou ainda melhor, não apenas pensar), mas sentir Deus a partir da totalidade do ser.

Encerro com Ruben Alves e uma palavrinha sobre a religião, para ele a religião é (ou deveria ser) a voz de uma consciência que não pode encontrar descanso no mundo tal qual ele é, e que tem como seu projeto transcendê-lo. Deste modo, que me perdoem os fundamentalistas, mas em Alexandria, Hipátia e seus círculos são o que de mais religioso aconteceu.