“O belo é sempre
espantoso...”
Baudelaire
“O Amor não inveja”
I Coríntios 13
“...a Criatividade é a causa
mais profunda da Inveja”
Melanie Klein
“...o Talento é imperdoável”
Diderot
“ A inveja habita no
fundo de um
vale onde jamais se vê o
sol.
Nenhum vento o atravessa;
Ali reinam a tristeza e o frio
Jamais se acende o fogo,
Há sempre trevas espessas
...A palidez cobre seu rosto,
Seu corpo é descarnado,
o olhar não se fixa em parte
alguma.
Tem os dentes manchados de tártaro,
O seio esverdeado pela bile,
A língua úmida de veneno.
Ela ignora o sorriso,
Salvo aquele que é excitado pela visão da dor
...Assiste com despeito aos sucessos dos
homens,
E este espetáculo a corrói;
Ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si
mesma,
E este é o seu suplício.”
Ovídio
No Paraíso Perdido de Milton, vemos recontado o drama do Éden,
no qual Satã com inveja do Deus Criador e na tentativa de estragar o gozo da
vida celestial declara guerra e cai, construindo com outros caídos o inferno
como rival do céu e tornando-se a força destrutiva que visa destruir o que Deus
cria. Desde Santo Agostinho a vida vem sendo descrita como uma força criativa
em oposição à inveja, tida como força destrutiva. Desta forma reconhece-se a
inveja - expressão da maldade, como uma das emoções primárias no ser humano,
desde o pecado original, quando o homem escolhe dar ouvidos à serpente.
De lá para cá seguimos acompanhando sua
manifestação como força motriz de diversos dramas e personagens, sejam eles
reais ou fruto do imaginário: Caim matando Abel, a madrasta da Branca de Neve
pedindo seu coração para comê-lo, Yago enganando Otelo, Caifás pedindo a pena
máxima para Cristo, Mussolini aprisionando Gramsci por toda a vida por
discursar melhor que ele no parlamento italiano. Inveja e destruição, o casal
infernal, unido e atuante, desde que o mundo é mundo.
Do mesmo modo que sua manifestação, o
conceito de que a inveja é um sentimento negativo também é universal, nos
circuitos psicológicos e psicanalíticos atribui-se a ela inclusive, dependendo
da intensidade, o caráter de sintoma patológico.
O invejoso é, em geral, alguém que não é
capaz de tolerar o prazer do outro, sua fruição, assim não consegue suportar
também que algo de bom lhe seja dado por esse outro. Não pode usufruir esse
outro, não reconhece ou admite de má vontade as qualidades alheias, o valor de
outra pessoa e se mostra incapaz de experimentar e de expressar gratidão. O
invejoso não reconhece que o outro tenha algo de bom a lhe oferecer e não é
capaz de receber informações ou ajuda, pois tem grandes dificuldades com o
saber do outro, saber que o faz sentir-se sempre humilhado – não tolera ver,
ouvir ou vivenciar coisas novas e prazerosas, experiências positivas e
pensamentos interessantes que venham de outra pessoa. Não é capaz de aguentar e
assimilar a ideia da felicidade alheia.
Nesse
sentido, o indivíduo que empalidece frente a felicidade alheia pode atuar de
forma destrutiva, chegando ao ponto de fazer o outro de fato entristecer-se.
(Mezan, 1987)
Nessa compreensão, podemos dizer que a
inveja sempre se apresenta como um sentimento que esteriliza a curiosidade e,
portanto, acaba por determinar uma espécie de indigência psíquica.
Se para Melanie Klein a inveja é uma
manifestação primitiva do psiquismo ligada à agressividade e a um
desenvolvimento capenga do narcisismo para a plena percepção do outro - falha
essa que gera no sujeito a sensação de que nada pode ser por ele apropriado,
nada lhe pertence por direito, tornando-se o invejoso vítima perene de um
sentimento de falta arrasador, diante da qual tudo que é seu se mostra
inadequado e insuficiente, enquanto que tudo que é alheio surge como melhor –para
Nietzsche, em sua tipologia, quando fala do “fraco”, do “escravo” ou do
“doente”, os caracteriza antes de qualquer outra coisa como ressentidos e invejosos.
Na concepção do filosofo, o “fraco” não se apresenta apenas como uma antítese
do “forte”, mas como alguém que tem uma ferida aberta no peito, algo que o sangra dia e
noite: a inveja. O invejoso não aparece, ele se esconde, se resguarda em seu
nome como numa capa, ninguém sabe quem ele é, pois nunca fez de fato nada, como
um inseto que muda de cor para se parecer com a paisagem. Segundo Nietzsche, a
inveja e a covardia são irmãs.
Diderot foi o primeiro a qualificar a inveja
pelo que mais a incomoda – o talento. O invejoso não inveja o outro por ter
dinheiro ou bens materiais, inveja pelo talento que ele mesmo não possui. Vemos
muito isso ilustrado no mundo cultural e acadêmico: um livro não publicado, uma
ideia censurada, uma crítica ácida descabida, um não injustificado, uma
proibição sem sentido.
O invejoso nunca debate, nunca discute ou
se abre para comparar opiniões, em geral agride e se esconde evitando o
confronto aberto num terreno de disputa justa, pois tem medo do confronto,
mesmo sabendo que não perderá nada, já que nada tem a perder – afinal é ciente
que o talento do invejado é o algo que ele não tem. Esse nada que habita o
cerne do invejoso é o que alimenta e perpetua sua inveja.
A verdade é que seja o sujeito invejoso
vítima de um desenvolvimento psíquico falho, ou de uma fraqueza de caráter,
leva uma vida dolorosa de constante e abjeta comparação com o outro – cativo de
um sentimento perene de insuficiência, o invejoso nunca é feliz. Em geral se
trata de alguém de difícil convívio social e com seus entes queridos, cuja
presença é marcada por comportamentos agressivos e por um olhar de constante crítica,
assim como também é constante sua recusa em revelar e vivenciar afeto. O ódio
inconsciente costuma ser tão violento que o leva a atacar o outro o tempo todo,
visando destruir aquilo que neste outro existe e que ele não encontra em si
mesmo. O invejoso é espoliador, não inveja o que precisa para si, mas algo que
precisa tirar do outro. (Joseph, 1992)
Nossa sociedade contemporânea, caracterizada
pela ética de mercado, parece ter encontrado numa neurose o combustível para
sua existência e manutenção. Ao nos tornarmos seres de comparação, assinamos
nosso contrato com o descontentamento e angústia perpétuos.
A política consumista se nutre das imensas e
irreais expectativas daqueles que se sentem vazios de si mesmos e perpetua um
estado invejoso tanto nas escolhas de estilo de vida, quanto nos
relacionamentos. A tragédia habita no fato de que se a inveja – que diferente
da voracidade não visa incorporação, mas destruição – se tornar um aspecto
dominante em nossa maneira de viver no e de ver o mundo, colecionaremos
relações disfuncionais, recheadas de afastamentos e intrigas e isso em todas as
dimensões relacionais. A inveja materializa o vazio do cotidiano, intensifica o
sentimento de desilusão, torna o criar, um destruir, unindo de forma bizarra
dois conceitos excludentes e nos condenando ao nada existencial.
Muito se tem falado a respeito da nossa Era
do Vazio, tempo de imediatismo, tempo de individualismo hedonista, tempo de
apatia, tempo de sedução generalizada sem eros
nenhum, tempo de legitimação de todas as formas de vida sem que haja de fato um
sentimento de viver em nenhuma delas, tempo de banalização da violência social,
da co-existência fake de contrários, tempo de inversão de ideais e de analgesia
emocional completa, de uma mente gravemente alterada, incapaz de conter coisa
alguma – tempo de um sujeito incapaz de aprender seus próprios sentimentos na
relação com o outro porque não tolera que o outro exista. Em toda parte reina
uma solidão doentia e uma dificuldade de ser transportado para fora de si
mesmo. NÃO HÁ PONTES.
Na era do vazio, a ilusão predomina sobre o
fato, não apenas mascarando o fato, mas o substituindo. O consumismo é
performático, fetichista, se torna um ser poderoso que ao ser colocado sobre o
indivíduo o transforma, o preenche, pelo menos até o próximo “sonho de
consumo”.
A própria produção artística de nossos dias
denota uma incrível redução da vida interior (Kristeva, 1993). Quem hoje ainda
tem alma? As patologias do vazio revelam a perda progressiva da capacidade de
simbolizar, seu sintoma na arte se expressa no foco temático contemporâneo na
relação primordial do homem com tudo que nega a existência, no transitório, na
precariedade e parcialidade de todas as perspectivas.
Tanto nas salas de aula quanto nas clínicas
psicológicas e psiquiátricas constata-se a inibição da curiosidade por tudo
aquilo que vem do outro em indivíduos marcadamente invejosos, cujo mundo mental
é empobrecido. Essa falta de interesse pelo que os cerca reflete-se numa
indiferença com relação ao funcionamento de suas próprias mentes, de seus
pensamentos e estados emocionais, o que os leva sempre a um saber abstrato e a
uma racionalidade estéril e onipotente. A falta de curiosidade pode ser
entendida como uma defesa contra a inveja, evitando o impacto com experiências
novas e com elas as dores da inveja, da sensação de vazio e do rancor.
Sem curiosidade e abertura para o mundo não
há possibilidade de criação. Espoliar o ser da possibilidade de criar é retirar
dele a própria vida. Sendo assim, a inveja é um sentimento que ao não suportar
a diferença e a criação, ataca as fontes da vida. Logo, como manifestação
psíquica da maldade, a inveja não tolera a alteridade, pois o outro exige de
nós uma atitude criativa que nos possibilite a experiência. (Merleau-Ponty, 1971)
Encerro essa reflexão desafiando os que ainda
seguem despertos a jamais dormirem e a buscarem maneiras de semear no deserto
para um resgate do homem no homem.
“Sim, o seu olhar é sem inveja: e é
por isso que o honrais?
Preocupa-se pouco com as vossas honras;
Tem o olho da águia, olha para o que está longe,
Não vos vê!... Apenas vê os astros e as estrelas!”
Preocupa-se pouco com as vossas honras;
Tem o olho da águia, olha para o que está longe,
Não vos vê!... Apenas vê os astros e as estrelas!”
Texto muito interessante. Uma boa reflexão sobre a inveja e, principalmente, a contraposição com a curiosidade. Entretanto, esperei uma desenvolvimento maior do conceito de "CURIOSIDADE" que você desenvolve em contraposição a INVEJA, ou seja, a sua voz. Claro que as vozes que você entrelaça em seu texto de outros autores, só o engrandece. Mas pelo caráter do artigo-de-opinião, pelo curto espaço, não teve tempo para desenvolver mais a tese proposta com sua própria voz. Em suma, um texto maduro e mais reflexivo, o que denota um caráter excepcionalmente crítico e voltado para o seu tempo. Gostei. De longe, o melhor texto crítico-reflexivo que já li escrito por você. FORÇA SEMPRE!
ResponderExcluirPS. faltou as referências bibliográficas. Por exemplo, você cita uma passagem do MERLEAU-PONTY de 1971, eu acho que você está usando como base a obra "O visível e o Invisível". Aconselho citar a obra no corpo do texto ou no final, por exemplo: (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 229 - O visível e o Invisível). Eu ainda conheço um pouco o filósofo francês e outros pensadores que você citou, já outros leitores, podem ficar perdidos com as referências, e querendo saber de qual obra, livro ou artigo você utilizou para construir seus argumentos.
Adriano Barros
Eh verdade, faltou espaço...rs..Pode deixar escreverei mais sobre a curiosidade e sim, fiquei devendo as referências! Fico feliz que tenha gostado. Abraço enoooorme!
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