A pele que habito

A pele que habito

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O Lamento do Ipê

 


“Eras um poema/ cujas palavras/cresciam dentre mistérios e lágrimas/ * / Serás silêncio, / tempo sem rastro, / de esquecimentos atravessado.” Cecília Meireles

“Sempre, nunca, palavras absolutas que não podemos compreender, sendo como somos: pequenas criaturas presas em nosso breve tempo.” Rosa Montero

 

Está seco.

Seco como só acontece no segundo semestre de cada ano, mas mais seco do que de costume. Olhos ardem, narizes se ressentem, lábios trincam como se fizesse um frio glacial, usamos tubos e mais tubos de hidratantes variados, nenhum cumprindo muito o que promete.

No ar o cheiro de fumaça é triste. Triste porque sabemos que vem das queimadas, a maioria intencional. Árvores morrem, animais morrem e nossa alma morre, sabedora da condição nefasta da alma humana. Maldito materialismo!

No contexto temos eleições para prefeito. Sempre mais do mesmo? Não, pode piorar, temos bufões como Pablo Marçal arrotando vitória com seu mar de desinformação. Diante dele até os Datena da vida se tornam opções atraentes. Para combatê-los no pleito temos um esquerdo-macho e uma guria de Maria-Chiquinhas. Isso só para falar de São Paulo capital, mas, como sempre digo, eu não voto, só justifico e me sinto cada vez mais justificada por não votar.

No âmbito cultural geral, vez ou outra, bem outra, surge alguma surpresa interessante, uma Rosa Montero da vez que acalenta nosso coração sedento das boas letras, dos assuntos interessantes, das discussões férteis...No mais é só poeira, poeira dessa fumaça podre das queimadas mentais! A Arte agoniza com as matas e eiras.

Sobra o Artesanato e meus dedos buscam nas linhas e nas cores um acalento feminino perdido na raiva das minhas ancestrais diante de seus homens tiranos e sociedades castradoras. Vamos nos redescobrir algum dia? Poderemos ser homens e mulheres serenos, acalmados em nossas sedes de poder?

Rosa Montero diz que “A tristeza aguda é uma alienação. Você se cala e se fecha.” E assim como Fernando Pessoa e Oscar Wilde, ela defende o caráter redentivo da beleza. Será que parei de escrever por que fiquei triste demais? Triste de uma tristeza tão íntima e tão profunda que sequer me permito tocar nela no nível da minha vida do dia-a-dia? É fato que perdi meu pai e meu filho com apenas um mês de diferença entre essas mortes. É fato também que perdi minha cidade, que depois da pandemia nunca mais será a mesma, assim como nada será o mesmo. É fato também que fomos vítimas de uma loucura coletiva da qual acho melhor nem mencionar para não constranger ainda mais aqueles que tiveram a sorte de se recuperar dela. Foram tantas dores acumuladas, tantas dores de amores. Compreendo meu mecanismo de defesa adjacente. As palavras secaram em meus dedos, mas não no meu coração.

Setembro abre como esse versículo na folhinha: “Eu sou a flor que nasce na planície de Sarom, o lírio que cresce no vale.” (Cantares 2;1) E enquanto escrevo isso, ouço o barulho da boca do fogão sendo acesa, logo o cheio de café inunda a cozinha e sei que meu marido, que viveu todo esse turbilhão comigo, está fazendo café. Café, essa bebida forte e aromática, sempre tão vívida e tão vivificadora. O amor constante e fiel cura!

Anteontem mesmo vi um Ipê Branco florido. Eles são sempre sublimes. O Ipê Amarelo é energia pura, aquela cor vibrante alegra qualquer coração. O Ipê Roxo é puro romance, seus tons de lilás a púrpura lembram tardes aleatórias de vestidos brancos leves, fitas de cetim no cabelo, doces com chantilly e beijinhos roubados. O Ipê Branco, porém, é pura magnificência; é um mar de pureza e transcendência, uma chuva de neve quente e sedosa, um alô do infinito, um portal para Deus.

Assim que eu o vi o fotografei. As fotos nunca ficam tão bonitas quando o Ipê vivo na nossa frente. No ato pensei em escrever esse texto, falar sobre a efemeridade da vida e da beleza e em como é exatamente esse caráter frágil que as torna tão fortes. Será isso o feminino? Será que precisei sofrer as dores mais pungentes para me purificar de toda sucata ideológica que eu carregava? Será que vou conseguir compartilhar isso com outras pessoas?

Cheguei a pensar que era o clima que não me deixava escrever, ou   a correria de nossa rotina cheia de atividades e coisas importantes para fazer, achei até que meus dois surtos de COVID tinham afetado meu cérebro e minha memória, ainda acho um pouco isso. Seria a meia-idade? A Rosa Montero teve um bloqueio criativo de quatro anos por causa de uma história que encruou e ficou entupindo seus canais criativos. Sabe-se lá que mecanismo misterioso é esse que faz nossos dedos correrem pelo teclado de um computador ou de uma máquina de escrever, ou mesmo nos obriga a pegar numa caneta e encher com ela folhas e folhas antes brancas. A dor verdadeira nos cala, não nos faz escrever. A dor que nos faz escrever não é a nossa, é a dos outros. O Poeta é um fingidor.

 O Ipê floresce e em poucos dias está novamente nu em talo. Passa a maior parte do ano feio, apenas na promessa de sua beleza fulgaz. Ainda assim nós o esperamos ansiosos, muito pela beleza perturbadora de suas copas amplas e generosas e de suas flores magníficas e delicadas, mas também porque sua floração anuncia o final do período de estiagem, depois dela, a floração, dia menos dia e a chuva chega. Chuva econômica e melindrosa é fato, como é econômico e melindroso o afeto da maioria da goianada, mas ainda assim é chuva. Chuva com a qual o cerrado faz festa, acostumado como está com pouca água! Aprenderei eu a ser como o cerrado e fazer da pouca chuva uma grande tromba d’água? Leia-se inspiração.

Entro nessa terceira página de texto com o coração aos pulos, estou escrevendo, meu Deus! Estou escrevendo! Texto curto, mas sincero! Coisa boa essa sensação de pensar e dizer, de ter coisas dentro de mim para aparecer! Não morri como escritora, não estou velha demais para nada nessa vida! Palavras ainda são palavras! Minhas linhas de bordado verbais! Com elas eu teço um mundo! Desculpem o mar de exclamações, mas é sempre rica de riso a restauração!

Chore não, Ipê imortal em sua mortalidade! O fim da seca se aproxima.

Um comentário:

  1. Lindo o seu texto, Dani! Parabéns por voltar a escrever! Eu já estava com saudade... Não pare mais, por favor, pois seus textos me ajudam a alimentar minha alma com doçura e esperança

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