A pele que habito

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domingo, 22 de junho de 2025

EMMA BOVARY x MARIA: uma reflexão sobre a Identidade Feminina à Imagem de Deus

 

Texto Básico: Lucas 1:26-42

 

Introdução: Emma Bovary, o protótipo da mulher sem Deus

O arquétipo[1] gerado a partir da protagonista criada por Gustave Flaubert é atemporal e transcultural. Pode ser traduzido como uma espécie de buraco negro existencial e espiritual. O buraco negro que todos somos antes de conhecer a Cristo. Alienados complemente daquilo que Deus nos criou para ser, vagamos em desespero, na busca que algo nos diga quem somos (seres criados para a eternidade, mas que caíram em desgraça) e do que precisamos (da Glória de Deus para voltarmos a ser quem fomos criados para ser).

Bovary representa essa insatisfação aguda e crônica, sua derrocada fatal resulta de sua tentativa de compreender quem é do que precisa por meio das influência e ideologias em voga em sua própria época e contexto. Única fonte de esclarecimento disponível para quem não busca a Deus.

É bastante nítido para qualquer pessoa que lê o livro de Flaubert ou vê o filme, que Emma tem uma concepção de si e da vida completamente equivocada. Sua formação cultural empobrecida (vida rural de uma mulher no século XIX e de leitura de romances ruins) e destituída de qualquer ideia de transcendência a tornam refém de um ego infantil e inflado que nutre fantasias de superioridade e a tornam fútil, vazia, desesperada por se dar uma condição de vida mais adequada aos seus desejos, culpando os outros por suas escolhas cruéis e egoístas, ferindo todos aos seu redor, destruindo seu caráter, sua família e, por fim, sua própria vida. No caso de Emma e de muitos de nós:

“O Ego é um falso self que se identifica com o que ele possui (ou quer possuir), com o que faz (ou deseja fazer) e com o que os outros pensam sobre ele.” Eckhart Tolle

Ao contrário do que dizem alguns teóricos, Emma não é uma feminista tentando se satisfazer sexualmente, mas busca no adultério e no consumismo meios de realizar a vida fantasiosa que acha que merece viver a partir de sua consciência equivocada de si mesmo.

Emma não se conhece, não se vê, não identifica suas reais necessidades, potenciais ou talentos, mas como o SER é inerente ao seu humano, busca construir sua identidade naquilo que lhe foi oferecido – o mundo. E esse mundo a devora!

 

1)    O QUE É IDENTIDADE?

Para as Ciências Humanas, a ideia de Identidade é um conceito MULTIFACETADO.

Para o psicólogo Erik Erikson, a identidade de cada ser humano se desenvolve ao longo de várias etapas da vida, sendo a adolescência um período crítico desse processo, que pode ser retomado sempre que traumas ou mudanças dramáticas nos levam a recomeçar.

O conceito de identidade se traduz em um senso integrado e contínuo de quem somos e ele se forma a partir de:

a)     Definições individuais e coletivas (ou de como eu me percebo somado a como as pessoas ao meu redor me percebem)

b)    Classe social, nível cultural, etnia, gênero

c)     Tradições culturais e familiares, práticas, histórias coletivas e individuais

d)    Elementos de formação ao longo da vida, fatores de desenvolvimento biopsicossocial, experiências pessoais.

e)     Relacionamentos

 

“meus livros, meus discos e minhas pessoas”

 

·        IDENTIDADE BEM CONSTRUÍDA:

Entendimento claro e forte de quem a pessoa é, baseado em uma compreensão e integração saudável de suas experiências, crenças, valores e influências.

Consciência de Si: Pessoa compreende de forma real e profunda suas características, habilidades e limitações.

Valores e Crenças: Pessoa tem clareza sobre esse tema e guia suas escolhas e atitudes a partir dele.

Coerência Interna: Alinhamento coeso entre como a pessoa se percebe e como ela age no mundo.

Capacidade de Adaptação: Porque sua consciência de si é sólida, pode evoluir e se adaptar em resposta a novas experiências e contextos sem se desestruturar.

Relacionamentos Saudáveis: Reflexo das anteriores, gerando real senso de pertencimento.

Autoconfiança: Enfrenta desafios com segurança e se comunica de forma assertiva.

Reflexão e Crescimento: Compreende que o SER é algo em constante desenvolvimento, algo orgânico, vivo

 

·        IDENTIDADE HUMANA E O EVANGELHO DE CRISTO:

Para nós cristãos a principal fonte de elementos para a construção de nossa identidade está na Palavra de Deus, na compreensão daquilo que nosso Criador deseja que sejamos e a apropriação desse conhecimento se dá através de um relacionamento profundo, constante e verdadeiro com Seu Espírito que nos transforma, de Glória em Glória.

Sabemos que fomos criados à imagem dEle:

IMAGO DEI – Todo ser humano possui dignidade, valor intrínseco e capacidade de refletir características divinas como a razão, a moralidade, a criatividade...

Com a QUEDA, embora cada indivíduo continue tendo um valor inato diante de seus semelhantes, a alienação de Deus e a natureza pecaminosa impactaram a construção de nossa identidade, pois perdemos nosso relacionamento com Deus, que é a fonte de toda a perfeição.

Com a REDENÇÃO, nossa identidade caída é transformada pela ação do Espírito por meio da fé em Cristo (1 Coríntios 5.17)

REDIMIDAS podemos outra vez nos tornar a MELHOR NÓS MESMAS QUE PUDERMOS SER EM CRISTO, porque refletiremos o caráter de Cristo através de nossas qualidades singulares. (PRISMAS)

Nossa NOVA IDENTIDADE de FILHAS DE DEUS inclui: novo sendo de pertencimento e de valor, novo modo de viver-pensar-sentir-agir, uma nova vocação particular que nos traz um senso de propósito e realização, um aspecto coletivo ao nos tornar parte do Corpo de Cristo, coisas que influenciam em todas as áreas de nossa vida e relacionamentos.

·        IDENTIDADE DA MULHER EM CRISTO – UMA PECULIARIDADE:

 

No que tange especificamente ao Feminino, recebemos uma revelação extra e particular sobre quem somos. Em Gênesis 2.18, portanto, antes da QUEDA, encontramos:

“O Senhor Deus disse ainda: Não é bom que o homem esteja só, farei para ele uma AUXILIADORA QUE SEJA SEMELHANTE A ELE.” (NVA)

Ou AUXILIADORA IDÔNEA (VAA)

 

No hebraico original temos EZER KENEGDO:

EZER – Conotação de auxílio, ajuda, fortalecimento. Termos usado várias vezes no AT para descrever não a mulher, mas Deus, em especial em sua relação com o povo de Israel. Ajudador = EZER (Oséias 13.9) Deus é o EZER, sem Ele o povo de Israel não consegue sobreviver ou prosperar.

KENEGDO: Que é com ele ou está diante dele. Indica relação de complemento e parceria. É a mesma ideia de SUBMISSÃO, que significa auxiliar na missão de alguém, abraçar como sua, apoiar, suprir, fortalecer.

Ser EZER KENEGDO para o homem, portanto, NÃO TEM NADA A VER com ser subalterna, inferior ou subordinada. Deus fez a mulher para ser a AJUDA que o homem necessitava para cumprir os MANDATOS que Ele deu à humanidade.

 

Na interpretação da nossa própria Língua Portuguesa há um equívoco, muitos tem compreendido a palavra AUXILIDORA (aquela que auxilia, ajuda, fortalece, possibilita) com AUXILIAR (subalterno para tarefas menores). NÃO É A MESMA COISA!

As vezes penso que assim como a liderança masculina deve se espelhar no modelo de Jesus; nosso trabalho de auxílio deve se espelhar no modelo de ação do Espírito Santo. Quem é maior na Trindade: Jesus ou o Espírito Santo? A Missão de nos reconciliar com Deus poderia acontecer sem algum dos dois?

Qualquer Teologia que considere homem e mulher diferentes no que tange à importância e posição diante de Deus é, portanto, equivocada.

 

2)    TRÊS ASPECTOS DA IDENTIDADE DA MULHER CRISTÃ: EMMA X MARIA

 

Na Bíblia são vários os momentos em que pedaços da verdade de Deus sobre a Identidade Ideal que planejou para suas filhas aparecem. Textos como o da Mulher Virtuosa, em PV. 31.10-31, sob o qual nos debruçaremos a tarde revelam várias nuances de projeto de Deus para cada uma de suas filhas; as várias histórias bíblicas onde mulheres aparecem como protagonistas ou coadjuvantes significativas nos mostram muitas dessas características que ele espera que sejam formadas em cada uma de nós através da ação do Seu Espírito.

Escolhi três dessas características que considero seminais e cuja importância cabal acaba nos sendo ilustrada na narrativa de Bovary, exatamente porque ela não as possuía.

 

a)    EMOTIVIDADE X REFLEXÃO:

 

As emoções e sentimentos não são boas ou más em si mesmas. Fazem parte da nossa vida, são importantes na forma como sentimos o mundo e reagimos a ele, mas emoção sem reflexão é sinônimo de estupidez.

“MULHERES SÃO MAIS EMOTIVAS DO QUE OS HOMENS” (Verdade ou Mito?)

Esse estereótipo deriva de uma combinação de fatores sociais, culturais, psicológicos, históricos e biológicos. Pesquisas, no entanto, revelam que homens e mulheres processam e expressam emoções de formas diferentes. Embora mulheres possam ser mais propensas a relatar emoções ou expressá-las de forma mais direta, isso não significa que os homens não experimentem emoções intensas. Assim como o fato de os homens se expressarem, em geral, de forma mais lógica e objetiva, não significa que mulheres não sejam aptas para o raciocínio e a reflexão. Inclusive a Bìblia diz que a “A MULHER SÁBIA EDIFICA A SUA CASA” (PV 14.1); não diz a “mulher emocionada”.

Aqui, a palavra SÁBIA, no hebraico original, é CHOKMAH , se traduz em INTELIGÊNCIA PRÁTICA (conhecimento teórico + habilidade de aplicação eficaz no cotidiano); INTELIGÊNCIA MORAL (capacidade de discernimento e de fazer julgamentos éticos corretos, compreensão dos caminhos de Deus e do comportamento justo); HABILIDADE ARTISTÍCA E PROFISSIONAL e OPOSIÇÃO DIRETA À TOLICE E INSENSATEZ.

Já vimo na história de Bovary que todas as suas escolhas se basearam no oposto disso. Nunca houve ali reflexão, ponderação, consciência ou lógica; apenas reatividade, desejos mal compreendidos e entregas inconsequentes.

No texto básico com o qual começamos nossa reflexão observamos o encontro de Maria jovem (que viria ser a mãe de Jesus) com o Anjo que lhe anuncia o Evangelho e sua participação nesse  processo. A resposta dela à essa abordagem nos traz algumas informações muito interessantes sobre o que é a identidade que Deus deseja para cada uma de suas filhas.

Maria era uma adolescente de uns 14 anos, devia ser muito pobre (o que a oferta dela e de José no ato da circuncisão de Jesus revela), era uma menina camponesa que enfrentará desgraça aparecendo grávida sem ser casada. No entanto, essa pobre menina grávida se tornou um dos seres humanos mais famosos e evocados da história. O que a tornou tão extraordinária? A resposta que ela deu ao anjo e que revela muito de quem ela era e do exemplo que deixa para nós.

A primeira coisa que Maria faz após ouvir o anjo é PENSAR. (Lc 1.29) Não se deixa levar pelo temor ou pelo espanto de ser abordada por um ser sobrenatural. Ela reflete sobre o que está ouvindo e QUESTIONA o anjo de forma perspicaz, como alguém que compreende a realidade da vida e intui também a realidade da transcendência. A palavra grega para ‘perturbou-se’ é diatarassó que se refere a um estado de preocupação, de inquietude. Maria se espanta, mas essa agitação interna não a desorienta, ao invés disso a leva a refletir. Maria estava lutando para compreender e crer no que estava ouvindo com sua inteligência. E além de inteligente, Maria era honesta e transparente acerca de suas incertezas e questionamentos.

“Dúvidas sinceras permitem aprendizagem, informações e bons argumentos.” (Keller, T. 2015, p.233)

Foi, inclusive, exatamente sua pergunta direta que nos permitiu receber a maravilhosa declaração: “Para Deus nada é impossível.” (Lc 1.37)

Lucas confirma essa característica de reflexão e inteligência de Maria em 2:19 - “Maria, porém, guardava todas essas coisas, conferindo-as em seu coração...” Aqui o original grego para conferir é Syballo, que significa conectar diferentes pensamentos e informações na mente, ponderar, considerar, meditar, contemplar. Parece ser da natureza de Maria essa consideração cuidadosa e deliberada, o uso de suas faculdades mentais para viver de forma sábia. Encontramos eco desse traço em outras mulheres da Bíblia.

Há outros exemplos de mulheres inteligentes e ponderadas na Bíblia, entre elas estão Débora e Abigail. Ao conduzir suas escolhas e decisões com inteligência são aprovadas por Deus e honradas por Ele.

A juíza Débora é descrita como sábia ao julgar e sua habilidade não só como orientadora, mas como estrategista militar é louvada por seus comandantes, homens de guerra experimentados; seu discernimento espiritual e encorajamento a tornavam indispensável até nos campos de batalha.

Abigail, com sua sabedoria e prudência, resposta rápida e objetiva diante das dificuldades e sua diplomacia não só salvou a vida de muitos como lhe angariou reconhecimento público a ponto de torná-la esposa do Rei Davi.

Se nossa identidade como Filhas de Deus inclui uma vocação para o auxílio e fortalecimento eficazes, então a inteligência, a sabedoria, a reflexão e a ponderação, em detrimento do emocionalismo, são características que devemos buscar. Lembrando de Tiago 1.5, devemos pedir sabedoria diretamente a Deus. Quanto mais dispostas estivermos para ponderar e expressas nossas dúvidas, opiniões e questionamentos de forma sincera e transparente, mais longe nós mesmas e as pessoas ao nosso redor chegarão.

b)    Desorientação x Senso de Propósito:

“A liberdade é o que você faz com o que foi feito de você.” Sartre

Algo que marca a trajetória de Bovary é a desorientação. A forma errática como conduz sua vida, reagindo de forma irrefletida aos estímulos ilusórios, que ia interpretando apenas pelas vias de uma percepção viciada e do emocionalismo, criou um caos irreversível dentro dela mesma e ao seu redor. Ao não ter nenhuma clareza sobre quem era, sobre o que queria e precisava, se perdeu em um ciclo de eventos sem sentido que a destruíram por completo e tornaram sua vida irrelevante. Emma não tinha raízes onde se apoiar, suas referências são fracas e subjetivas, sua noção de eu é efêmera, sua compreensão de vida é focada em aparências, ostentação e paixões voláteis.

Maria, ao contrário, ao compreender a verdade de que “para Deus nada é impossível” e ponderar naquele argumento com todo ser, revisita suas crenças e valores. Se há um Deus capaz de criar um mundo, de libertar o povo judeu e o proteger de tantas perseguições por séculos, por que Ele não poderia fazer o que o anjo anuncia? Isso FAZ SENTIDO PLENO para Maria, em vez de desorientá-la, aquela mensagem lhe deu perspectiva e ela não titubeia:”...Aqui está a serva do Senhor; cumpra-se em mim a tua palavra...” (Lucas 1.38) Havia uma realidade transcendente maior do que tudo, maior do que o mundo, maior do que ela mesma. Havia um Alguém infinitamente superior e mais perfeito a quem ela poderia se dirigir e em quem confiar; havia um Algo maior para o que dedicar sua vida.

Como Filhas de Deus devemos compreender que existe um propósito maior em nossa existência que vai muito além das escolhas do cotidiano dessa vida efêmera e precisamos nos entregar para essa missão, dispostas a pagar o preço pelo cumprimento dela, sabendo que em Deus nosso trabalho nunca é vão. Quando Deus nos revela Seu propósito singular para a nossa vida, exige que abramos mão de determinar nós mesmos a melhor maneira de viver.

“Quem tem um porquê para viver suporta quase qualquer como.” Nietschie

No ‘modus operandi’ Bovary não se ouve ninguém além do próprio ego, somos escravas de nossas próprias demandas imaturas e egoístas, refém de demandas confusas e contraditórias que nos desorientam e não satisfazem, o resultado é o vazio.

No ‘modus operandi’ Maria existe um alvo definido; um propósito claro a alcançar; um Pai a quem prestar contas, honrar, adorar e obedecer; um caminho a percorrer e uma recompensa garantida a nos esperar. Nosso coração é calibrado de forma perfeita, não há confusão ou desperdício.

Outra mulher da Bíblia que nos ensina muito sobre esse Senso de Propósito é Ester com seu conhecido “...se perecer, pereci.” (Ester 4.16) A história de Ester é, muitas vezes, compreendida de forma muito romântica. Assuero não era nenhum príncipe encantado, era um rei ímpio e colonizador; vaidoso de suas conquistas e riquezas a ponto de ficar meio ano se gabando delas, bebia muito e era dado a festas e orgias; sua esposa era alguém que ele considerava parte dessas riquezas a serem exibidas. Vasti se recusou a essa humilhação, naquela época era comum reis exibirem as esposas nuas, inclusive) e foi punida por medo de que outras esposas também se rebelassem. Na busca por uma esposa para o rei, “muitas moças foram levadas”(v.8), ninguém estava se inscrevendo num concurso de beleza. Ester sequer podia falar, inicialmente, a que povo pertencia. Só se apresentava ao rei se ele quisesse, podia facilmente ser morta por ordem de um soberano que tinha um Hamã como melhor amigo. Ao invés de lamentar a sorte, Ester se entregou, no momento oportuno àquilo que reconhecia ser, provavelmente, o propósito de Deus para sua vida. Estava disposta a pagar o preço. Maria aceitou o Chamado, Abrão aceitou o Propósito, Ester aceitou a Missão, Paulo aceitou a Vocação. Tudo o que estivermos dispostos a fazer por Cristo será sempre menor do que Ele se propôs a fazer por cada um de nós!

 

c)     Individualismo x Vida de Relacionamentos:

Os únicos relacionamentos aos quais Emma Bovary se dedicou, na narrativa de Flaubert, foram aqueles que estavam a serviço de tentar satisfazer as demandas de seu EGO, utilitários para a manutenção de suas manias de grandeza. Emma não tinha amigas, parentes ou mentores, não amava o marido ou a filha, seus amantes não eram de fato amados como sujeitos. Ninguém a tocou realmente.

Maria, por outro lado, assim que se encontra com o anjo e se entrega ao propósito revelado de Deus paras sua existência, procura sua prima Isabel, que também tinha sido tocada pelo Espírito Santo. Fica com ela 3 meses e esse encontro é tão edificante que a faz irromper no maravilhoso Cântico de Lucas 1.46-55. Maria compreende ainda melhor tudo que está lhe acontecendo após conversar com outra irmã madura na fé e adorarem juntas.

Não há como perseverarmos sem amigos de confiança.

Segundo o maior estudo sobre estudo sobre a felicidade já realizado, feito ne Universidade de Harvard, o segredo para a vida longa e feliz está na qualidade de nossas amizades. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxe3pgjzj3no .

Como já dizia o fabuloso poeta inglês do século XVI, conhecido por suas Meditações, “Nenhum homem (ou mulher) é uma ilha.”

Alguns evitam compartilhar suas lutas e sentimentos, vivendo de aparência e ostentando felicidade falsa em redes sociais, mas isso também é egolatria. Deus nos chamou para amarmos e suportarmos uns aos outros. Ninguém será vencedor sozinho no Reino de Deus. Dependemos de Cristo e uns dos outros. A convivência real, profunda e saudável nos ensina empatia, nos faz ouvir opiniões alheias, nos obriga a colocar nosso Ego no lugar dele ( ou seja, ao lado dos nossos amigos, não acima deles), também nos nutre de afeto, de risadas, de lágrimas compartilhadas, de compreensão, abraços e momentos curativos. Tal qual a Trindade é um relacionamento, fomos criados para nos relacionar.

A Bíblia inclusive, insta as mulheres mais velhas a ensinar as mais jovens e o jeito feminino de ensinar e aprender é na RODA, de conversar, de artesanato, de oração. Na RODA somo todas iguais e diferentes, ninguém fica para fora e a comunhão nunca termina.

“Em todo tempo ama o amigo e na angústia nasce o irmão.” Provérbios 17.17

Outra mulher da Bíblia que nos ensina sobre amizade é Ruth. A forma como ela se conecta à sua sogra Noemi e decide acompanhá-la em seu destino é comovente. Em Moabe, terra natal de Ruth, sua condição de viúva, inclusive, seria muito menos sofrida do que em Israel. Por conta de questões culturais e religiosas, a condição de viúva, de mulher solitária e/ou idosa tinha um papel menos indigente e mais vantajoso, mas Ruth escolhe acompanhar sua sogra mesmo em situação mais penosa e mesmo sendo uma estrangeira. Sua entrega de amor por sua sogra foi reconhecida e honrada por Deus que não somente mudou sua sorte, mas a colocou na linhagem do Salvador.

 

CONCLUSÃO:

A mulher segundo o coração de Deus, que tem como referência para si mesma o caráter de Cristo e Sua Palavra, obtém de sua relação com o Pai a fonte primordial para a construção de sua Identidade. Ela é como um prisma a refletir, através de suas características peculiares, experiências singulares, formação individual e história pessoal, a Luz de Cristo, tornando-se “a melhor ela mesma” que ela puder ser nEle. Dentro das características gerais pensadas por Deus para suas filhas temos: Ser uma auxiliadora idônea, sábia e reflexiva, capacidade de se entregar ao propósito de Deus e capacidade de se conectar com outras pessoas.

 

E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
- Romanos 12:2 

 

Oração: “Senhor, nos ensina a cantar suas graças porque o barulho desse mundo é perigoso...”

 



[1] Arquétipo: Modelo primário a partir do qual outros seres, objetos e ideias são criados. Podem representar padrões de comportamentos, símbolos ou imagens universalmente compreendidos.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

A Garota da Agulha e a Banalidade do Mal

           



    O filme “A Garota da Agulha”, do diretor sueco Magnus Von Horn, para se dizer o mínimo, é uma obra impressionante.

            Von Horn, diretor e roteirista sueco-polonês, parece extrair da mítica de sua própria ascendência uma veia trágico-épica que descreve seu trabalho sem destituí-lo de uma lírica sensível e contundente. O interesse no tema da violência surgiu de sua própria experiência pessoal com ela e inaugura em seu terceiro longa metragem uma maneira toda especial de se resgatar o passado com perfeição sem tentar dar explicações fáceis para temas do presente. Não à toa, sua película vem numa jornada fértil de discussões, elogios e premiações.

            A história do filme, contada através de um olhar nada anacrônico, verdadeiro respiro para o universo da Arte higiênica de hoje em dia, consegue articular por meio da utilização magistral de aspectos da estética gótica toda a pungência de uma sequência de fatos sinistra, bem como todas as denúncias que a compõe. A retratação de uma Copenhague pós-1ª. Grande Guerra, assolada pela crise econômica, política e moral que tomou a maior parte da Europa da época, é feita pelo viés da vida daqueles que realmente ficam com a conta das guerras: os elos mais frágeis da corrente, a saber, as mulheres e as crianças. Locada em espaços sombrios, nos cenários sujos e fumacentos da Revolução Industrial, encontra-se Karoline, uma operária da área da tecelagem e costura, cujo marido desapareceu há um ano em combate e que não tem mais condições que manter seu já paupérrimo apartamento...

            É de particular interesse a forma como os espaços são trabalhados em todo o filme, nos levando ao gênio narrativo e crítico de George Orwell, que em “O Caminho para Wigan Pier”, fruto de seu convívio de dois meses com os mineiros de carvão do norte da Inglaterra,  começa com:

“O primeiro som da manhã eram as batidas dos tamancos as moças da fábrica de tecidos, caminhando pela rua de pedras. (ORWELL, 2010, p.25)

            Os cenários do filme de Von Horn, assim como os do livro de Orwell, são compostos por ambientes escuros e pouquíssimo arejados, nota-se, inclusive, a ênfase na cena da única janela emperrada na segunda moradia de K, ainda mais precária que a primeira, janela bloqueada que também é lugar comum nos relatos do autor inglês. No trabalho de ambos, escritor e cineasta, os espações são frios, degradantes e degradados, provisórios, organizados de forma precária, sujos, com móveis feios e pesados em entalhes, com penicos explícitos, improvisados em baldes, e administrados por concierges maléficos que se assemelham a carcereiros. No filme, a função de tais figuras parece ser a de manter diante de K. e do espectador a total condição de indigência da personagem.

            As torres pontiagudas e esguias e a predominância de construções longilíneas expressam uma total inacessibilidade a qualquer aspecto do transcendente aos que habitam o chão. O poder é manifestado por uma força fálica espicaçante, inflexível e hermética. Diante dela, os seres humanos na base são meros insetos encerrados em caixas ásperas e desconfortáveis. Inclusive as camas são sempre mostradas como pequenas demais para seus ocupantes, como as da época; a água da limpeza é sempre parca e suja; a comida é repugnante e escassa; os dias são todos de trabalho; as pessoas são grosseiras e abestalhadas; para todo lugar que se olha não existe nenhum alívio. O aspecto sombrio constante deforma o contorno dos rostos e muitas vezes tem-se impressões terroríficas na contemplação dos personagens; mesmo as crianças são retratadas como bonecas quebradas do século XIX ou, até mesmo, como mortos retratados, como era costume naquele tempo. O marido sem rosto de Karoline parece não ser o único em sua condição.

A miríade de cinzas é utilizada no filme de maneira a tornar os cenários amargurados e sufocantes, jamais há um alívio, uma lufada de ar fresco, mesmo durante as tomadas externas. O entorno nos condena a um artificialismo mecânico que fala por si mesmo ao destacar toda a insalubridade de uma era fabril, onde a existência foi reduzida a um bestial e o sentido da vida é a manufatura com suas vicissitudes. O produto da miscigenação dos seres humanos com o fumacento carvão do início do século XX é a desumanização, condição essa que é ilustrada no filme na forma do grotesco através das máscaras deformadoras da abertura que ressurgem mais adiante, na noite de pesadelos de Karoline após o retorno do marido sem rosto, cheio de traumas, mas com bom coração. A realidade constituída a partir dessa desumanização tem sua expressão máxima na forma de nossas duas grandes guerras, cujo saldo de mortos ultrapassa aos 70 milhões, cerca de um terço da população do Brasil de hoje. Em proporções, nunca antes a vida humana valeu tão pouco ou foi tão fácil e brutalmente descartada. Não sabemos o que será depois, para alguns estudiosos, o mundo ainda vive na depressão do pós-guerras.

            No aspecto mais intimista vemos no filme uma jovem costureira, completamente desvalida, trabalhando de sol a sol por migalhas, tentando, sem muito sucesso, colocar um teto sobre a cabeça, mesmo que esse teto seja pulguento, escuro e sem janelas. Dentro da Oficina de Costura, constituída no formato de um formigueiro, vemos centenas de mulheres-operárias uniformizadas, costurando grosseiros uniformes de guerra onde antes se faziam os mais finos tecidos. O vai-e-vem das mulheres-formiga, metáfora perfeita do vampirismo de um mundo colonial aniquilador de subjetividades, que envia os homens para sangrar nos campos de batalha enquanto explora a força de trabalho de suas mulheres e mata suas crianças de fome, de doenças, de violência. Não à toa, a agulha que costura, que tricota, que tece proteção, também aborta.

            O tom fortemente niilista do filme, que o tempo todo nos solapa com a denúncia evidente da desvalorização e da falta de propósito da existência humana, incomoda tanto que nos prende à uma esperança pungente de que exista alguma redenção para Karoline; é quase insuportável assistir o vertiginoso progresso de sua miséria, nos identificamos com sua fragilidade diante de uma desgraça tão visceral que se torna inominável, sem código, sem palavras. Tudo em Karoline deságua em um instinto bruto de sobrevivência que nem ela mesma parece conseguir acessar para criticar ou compreender – condição de animal ferido, primitivo, infantil. Karoline, diante da vida e da sociedade que a cerca, é tão vulnerável quanto os bebês que ajuda a matar sem saber!

            As relações de Karoline surgem na atmosfera de um romantismo sombrio, gótico. Completamente desamparada com a perda da casa e sem conseguir se declarar viúva, o que lhe daria um parco auxílio-financeiro, solitária e com medo, a jovem, a despeito de seus parcos atributos pessoais, se vê diante do “ombro-amigo” de um possível redentor, que na verdade é um homem infantilizado, irresponsável, mais deficiente de caráter do que no corpo e capturado pelos valores de uma sociedade elitista que privilegia alguns e defrauda a todos. Tal sociedade é magnificamente representada pela figura da mãe de seu amante, cuja aparência remente muito a um Nosferatu e que trata Karoline como uma égua sem pedigree, a humilha e expõe suas intenções de aborto do próprio neto com uma franqueza e objetividade chocantes. O próprio relacionamento amoroso é apresentado de forma precária, a intimidade dos dois é crua, precipitada, vivenciada inclusive em público, em plena luz do dia, num beco sujo, onde podiam ser vistos por qualquer um, como meros animais de rua. Até mesmo a parca tentativa do dono da fábrica de tornar aquele vínculo algo mais afetivo é desajeitada, artificial, inadequada e extravagante como bem ilustra o vestido espalhafatoso com o qual presenteia Karoline em uma Natal gélido.

            O total abandono de uma Karoline grávida, que além de ter suas estapafúrdias esperanças de redenção e alegria irem para o ralo, ainda por cima é demitida com um “...seu trabalho não é mais necessário...”, ficando, portanto sem renda alguma para se sustentar, traz à tona um tema nunca discutido o suficiente nas bolhas sociais que é o Aborto Masculino. A relação direta que o cineasta estabelece entre a rejeição e abandono de Karoline à própria sorte por seu amante rico e a agulha, que compõe o título e também nos recorda todos os outros elementos cênicos pontiagudos do filme, revela a chaga social causada por valores (ou desvalores) de um masculino infantilizado, egoísta e irresponsável que explora, abandona, rejeita e fez guerras. A agulha longa, pontuda, rígida, retratada quase como dourada num contexto de pretos e brancos, expressa o poder masculino (o phallus psicanalítico) que atravessa, às vezes para dar prazer e gerar família, às vezes para sangrar a mulher e despedaçar o filho, matando a ambos simbolicamente, às vezes também materialmente.

O também chamado “aborto estatutário ou financeiro” é a capacidade (ou devíamos chamar de direito?) do homem (pai biológico), antes do nascimento da criança (seu filho), de optar por não exercer quaisquer deveres, privilégios e responsabilidades em relação à criança, incluindo o financeiro. A Ciência Social relaciona o aborto masculino com a manutenção da desigualdade social [1] em países pobres, mas isso é assunto para outro texto. O filme trata de algumas possíveis relações diretas desse fenômeno (que no Brasil, inclusive, tem índices alarmantes), sobretudo no contexto de guerra.

A primeira consequência direta do aborto masculino é a tentativa de aborto de Karoline. Momento crítico de sua existência precária e que resulta em seu encontro com Dagmar. Após a deserção do amante, vemos a mulher entrar em um banho público, assistimos ao desfile de corpos nus de um realismo equalizador, seus olhos apavorados já anunciam ao público mais uma desgraça, acompanhamos seus movimentos ao entrar na banheira de lata, assistimos o desembrulhar da agulha e numa tensão cada vez mais constrita acompanhamos suas mãos introduzindo desajeitadamente a agulha em seu corpo, como se não fosse seu e observamos seu grito mudo e todas as mulheres que assistirem ao filme sentirão no corpo uma reação ancestral de repulsa e medo diante do corpo invadido, diante da dor e da consequente hemorragia. Só um homem muito apaziguado com seu feminino interior, que teve boas relações com as mulheres de sua vida é capaz de compreender a brutalidade de um ato como esse.

E no ponto nevrálgico da narrativa eis que surge uma promessa de redenção; não da forma tradicional de um homem amoroso e provedor, mas na figura de uma mulher mais idosa, com uma menina e um saber. Essa mulher se mostra empática e maternal em seus gestos, sua voz é acolhedora e propõe uma solução mais humana, mais virtuosa e menos dolorida, diz que sabe como fazer para doar a criança para famílias abastadas que não podem ter filhos; o sonho secreto de toda mãe miserável é, sem dúvida, ver seu filho ter uma vida muito melhor do que a dela. Karoline pega seu endereço e segue sua vida desgraçada, trabalhando pesado para si e agora também para um marido deformado e transtornado pela Guerra, mas que não a rejeita pelo adultério e nem tripudia seu abandono.

As cenas de Karoline trabalhando no meio das beterrabas com uma grande barriga de gravidez avançada são se uma crueldade ímpar. A horda de pessoas em situação de pobreza extrema implorando por trabalho e, ao fim, seu parto em cima do monturo de beterrabas, a comida de porcos que alimentava ela e seu marido, tornam a decisão pela doação do bebê uma decisão inevitável.

Vale aqui destacar que o homem deformado e emasculado pela guerra é o único personagem capaz de real sensibilidade e afeto. Ao acolher a criança que sequer é sua e dispor-se a cria-la com amor nos oferece uma lufada de ar fresco em meio ao fumarento destino das pessoas ao seu redor e revela um outro masculino possível, todo constituído de empatia e de perdão, aspectos inéditos dentro de uma sociedade patriarcal avarenta de afeto e de compartilhamento, próspera em vinganças e jornadas de herói. A fragilidade desse marido traído e machucado torna-se a fresta para os aspectos de uma humanidade latente, não mais aquela da condição caída, mas a refeita das cinzas, purificada, renascida. De forma semelhante, ao final, são os artistas do circo mambembe, a maioria páreas da sociedade, deficientes e anormais, que oferecem, finalmente, alguma possibilidade de lar para Karoline, proteção e segurança, precárias é fato, como as que eles mesmo gozam, como as que temos vivendo nesse mundo, ainda assim melhor do que ela tinha tido até então.

Do ponto de vista da Arte, o espetáculo circense é sim decadente, bastante coerente com o que se pode esperar daquele período, ainda assim, a deformidade do marido é apresentada com verdade, como resultado da guerra - ou da falência da inteligência e do diálogo frente ao progresso da ganância e da estupidez. A mensagem é trágica e de crítica social, não cômica e isso fica evidente no pouco riso nervoso de uma plateia em si mesma brutalizada pela realidade ao seu redor. Muito embora a horrível deformação no rosto do soldado pareça representar toda a desumanização do período retratado, também abundantemente expressa nos comportamentos vis da maioria dos personagens, ao fim e ao cabo é o homem-monstro sem rosto e seus pares artistas-aberração os que melhor demonstram atitudes próprias daquilo que se pode esperar da dignidade de um ser humano tido como criado à imagem de Deus.

Mesmo diante do apelo do marido para que ficassem com a criança, o que move Karoline no momento do nascimento da criança é a necessidade de algum tipo de libertação de todo confinamento em que vive: físico, social, moral, emocional e existencial. Ela deseja se livrar do fardo de criar um filho ilegítimo de um homem que lhe abandonou sem ter peso na consciência. Quer abandonar a filha como quem lhe faz um favor. Quer se entregar ao erro como quem se enche de virtude.

Dagmar, a vendedora de doces resgatadora de moças pobres e desesperadas em situações devastadoras, que aceita os fardos dessas mulheres por alguns trocados e garante uma vida auspiciosa para suas crias malditas é inspirada em uma mulher real homônima, dinamarquesa, que no período da Primeira Guerra Mundial, por cerca de sete anos, assassinou de 9 a 25 crianças (não se conseguiu apurar de forma apropriada), incluindo seu próprio filho. Seu julgamento foi tão notável que gerou mudanças nas leis de proteção à criança na Constituição da Dinamarca. Dagmar Johanna Amalie Overby tornou-se tão emblemática no imaginário popular de seu país que inspirou um livro (The Angel Maker, de Karen Sondergaard Koldst) e uma peça de teatro cujo título faz um trocadilho entre a palavra mãe (mutter, do alemão) e assassinato (murder, do inglês).

A aversão despertada pela personagem ao nos depararmos com a real natureza da ajuda que prestava àquelas mulheres desesperadas é resposta comum do íntimo de qualquer ser humano que se pretenda como tal, mas em poucos segundos de uma reflexão mais profunda, nos deparamos ainda mais perplexos, que os crimes de Dagmar, se não são compreensíveis, podem ser categorizados ao menos como “tragédias anunciadas”. A sabedoria popular já dizia que “a corda sempre rompe no elo mais fraco”, o óbvio apregoa que o preço da guerra ou de qualquer outro desequilíbrio de uma sociedade sempre será pago pelos mais vulneráveis. O sintoma da doença de uma civilização sempre se manifestará através do comportamento de seus indivíduos mais desvalidos (e isso em qualquer sentido).

O significado do nome Dagmar, ‘Glória do Dia’, ganha um tom bastante irônico se pensarmos que é comum chamarem o trabalho de parto de “dar à luz uma criança”. É através de seus feitos obscuros que Dagmar terá seu Dia de Glória. As cenas de seu julgamento são bastante pungentes e a forma aguerrida com que defende sua causa nos revela uma consciência heroica, um papel de vingadora daquelas mulheres abandonadas que não se furta de desempenhar. Dagmar era “aquela que ajuda quando ninguém mais quis ajudar”. A verdade particular de Dagmar nos remete à uma feiticeira mítica, não a uma simples bruxa moderna. Ela se revela uma Medeia revisitada, uma vingadora pós-Revolução Industrial, punindo com ser areté[2] macabro um Jasão coletivo, por ter abusado, traído e abandonado todas as mulheres, trocando-as por ambições e cobiças. Assim como em Medéia a morte das crianças, filhas dela com Jasão, é brutal e irredimível; assim como em Medéia o horror da ingratidão e o descaso dos homens (eles mesmos desfigurados pelas guerras) com o sofrimento das mulheres e de seus filhos tornam seus crimes inevitáveis diante da calamidade do mundo. A frase que Dagmar usa mais de uma vez no filme para convencer a si mesma, mais do que aos outros, da justiça de seus crimes é: “o mundo é um lugar horrível”.

Existem inúmeras discussões em torno da possibilidade de que comportamentos brutais, inclusive e, principalmente, assassinatos em série surjam como sintomas de doenças sociais.[3] A Europa durante e depois das guerras mundiais parece ter sido um celeiro dessas manifestações. Deixando de lado os aspectos relacionados a genocídios, que falam por si, o caso particular de Dagmar não foi o único onde pessoas comuns fizeram coisas medonhas, também não foi o maior, talvez seja, sem dúvida, um dos mais chocantes, devido ao fato das vítimas serem bebês, mas outros casos, como os da cidade de Nagyrév, na Hungria, também nos chocam bastante, pela duração e banalidade de motivos.

A série de crimes de Nagyrév[4], ocorrido entre 1914 e 1929, ficou conhecida como “O Caso das criadoras de anjos de Nagyrév”. Aqui observamos uma situação de sororidade letal, onde durante quase duas décadas ocorreram homicídios deliberados, lentos e repetidos, sem quase nenhuma investigação realmente interessada.

Os crimes começaram a ser investigados de fato a partir de uma carta anônima endereçada a um pequeno jornal húngaro chamado Szolnok Gazette, em junho de 1929, que afirmava haver “algo de podre em Nagyrév”, a cidade vizinha. Referências Shakesperianas à parte, os assassinatos dessa pequena comunidade húngara, como todos os assassintatos, narram histórias de loucura, de corrupção, de ódio, de vingança, de traição e de tantas outras chagas morais e existências próprias da raça humana. Raça essa da qual todos fazemos parte. Alguns mais do que outros.

Duas curiosidades sobre a série de assassinatos saltam aos olhos e se relacionam na elucidação do ocorrido: As principais suspeitas eram todas mulheres por volta dos 55 anos e Nagyrév era uma cidadezinha isolada, de difícil acesso, sem estações de trem ou acesso a médicos, sem possibilidade de progresso e pouco contato com o mundo sem tecnologia digital da época. Os homens, nesse período, estavam retornando da Guerra, mutilados, irritados e sofrendo de estresse pós-traumático. A crise agrícola empobreceu a população que não se sentia confortável para compartilhar seus dramas pessoais e econômicos com os poucos abastados e com os que detinham o poder. Uma porcentagem gigantesca dos homens combalidos de Nagyrév se tornou alcoólatra e maltratava suas famílias regularmente. Devido às dificuldades socioeconômicas, muitos casais iam viver com os sogros e outras pessoas da família o que gerava ambientes domésticos hostis onde os rígidos papéis de gênero contribuíam para a tolerância de abusos de toda espécie, o mesmo fator econômico impedia muitas mulheres de cogitar o divórcio.

Num contexto como esse, as crianças eram vistas como fardos, vide “A Garota da Agulha”, uma boca a mais para alimentar e tempo a menos para a mulher trabalhar. Métodos anticoncepcionais perigosos eram utilizados, abortos caseiros letais e, em último caso, os infanticídios eram tão comuns que os pais suspeitos de matar seus filhos sequer eram denunciados.

Bela Bodó, historiador húngaro, escreve em A Social History of a Murder Epidemic que quanto mais marginalizada é uma comunidade, mais frustrados serão seus habitantes com sua condição de isolamento e pobreza e maior será a probabilidade de se voltarem para um comportamento deturpado e corrompido.

O vórtice da série de assassinatos foi uma parteira, Zsuzsanna Fazekas, que assim como Dagmar, se propunha ajudar quando ninguém mais ajudava e não hesitava em sugerir a possibilidade dos assassinatos às suas clientes desesperadas, distribuindo veneno e métodos para sua fabricação como se fosse aspirina. Através das orientações da sempre disponível comadre matou-se maridos abusivos, bebês indesejados, filhos doentes, pais e mães inconvenientes e quaisquer uns que se tornassem um fardo pesado demais para mulheres que não suportavam mais nada para carregar. Foram 42 assassinatos, cometidos por 24 pessoas, durante mais ou menos 20 anos. Aquela geração de mulheres exauridas e enlouquecidas matou por desespero, por vingança, também por ganância ou luxúria, todas emoções dessa nossa condição humana, demasiada humana.

Durante as investigações tentaram atribuir a Zsuzsanna a fonte principal da rede de assassinatos, é muito mais palatável acreditar que um único e, portanto mais controlável, demônio foi capaz de tal façanha, do que reconhecer aqueles crimes como o que realmente eram: um fenômeno sinistro e imprevisto, nascido e cultivado por amplas e complexas questões sociais. As origens daqueles assassinatos, bem como dos infanticídios de Dagmar, retratados em A Garota da Agulha, ou menos os delitos menores relatados do tragicômico Pequenas Cartas Obscenas (2023), também baseado em fatos reais, é a infelicidade generalizada diante da falência da condição humana (como deveria ser) representada pelas guerras e suas consequências opressoras, mas também por todo tipo de chaga social fruto da ganância, do autoritarismo, da exploração dos semelhantes. A dureza da vida cauteriza a sensibilidade, brutaliza a existência. Todas essas mulheres assassinas mal enxergavam seus crimes como tal. Num tempo em que a vida humana passou a valer tão pouco (vide mais adiante o livro Noite, de Elie Wiesel sobre as agruras dos judeus nos campos de concentração da 2GM), em que a condição de vida na Terra passou a ser selvagem, talvez tenham apenas se convencido de que estavam antecipando um processo cruel fadado a existir de qualquer maneira. A principal causa para esse enlouquecimento coletivo parece se relacionar a um niilismo cultural gerado por um processo de desumanização social pelo modo animalesco em que viviam, por um primitivismo anímico absoluto que as tornava leoas famintas por qualquer conforto que pudessem conseguir, ainda que a custa de outras pessoas.

Em A Garota da Agulha, são tantas as demandas não atendidas gerando vampiros que até a pequena menina loura, ao se ver privada de seu único momento de conforto, se torna homicida em potencial. A infantilização da menina, mantida no peito mesmo tendo idade para se alimentar de outra forma, com a intenção de manter Karoline produzindo leite, pode ser compreendida como uma metáfora da perpetuação da miséria em sociedades devastadas nas quais nunca se dão oportunidade de redenção, todo continente africano que o diga.

Na cena final, Karoline, (cujo nome é um diminutivo de Carla, feminino de Carlos, que significa “homem livre do senhor feudal”) ela mesma acolhida pelo marido sem rosto e seus amigos artistas decadentes, consegue recursos internos suficientes para redimir-se adotando a menina loura, não mais como um bebê, mas como uma menina de 7 anos, aspecto que a cena faz questão de ressaltar. Karoline deixa de ser alguém sugada para se tornar alguém capaz de se doar no cuidado de uma menina que não mais suga, mas existe para se desenvolver.

Os horrores das duas grandes guerras, duas das muitas só para falar do século XX são apenas destaques incandescentes dos horrores que acontecem todos os dias nas ruas, nas casas, nos becos e nos guetos da vida...

Seriam os homens menos suscetíveis aos desvios de uma coletividade enlouquecida por neuroses ou psicoses de massa?

Cito aqui só um caso para ilustrar o meu NÃO categórico.

No filme Entre Mulheres, de 2022, vemos os gêneros mudarem de lugar e observamos horrorizados a história de uma comunidade cristã isolacionista, em Manitoba, na Bolívia, de credo ultra-conservador, onde, entre 2005 e 2009, mais de 150 mulheres e meninas, incluindo idosas e crianças pequenas, são sistematicamente estupradas por homens da própria comunidade que para conseguir seus intentos drogavam suas comidas com tranquilizantes para vacas. Corpos dilacerados, abusos, estupros, doenças venéreas, gravidezes indesejadas e seus algozes eram seus próprios irmãos, pais, maridos, filhos e amigos – todos irmãos em Cristo. Essa comunidade fechada para o mundo lá fora, centrada numa interpretação radical das Escrituras Sagradas que apregoava um retorno aos “bons tempos antigos” e aos papéis tradicionais de gênero, onde mulheres eram sequer alfabetizadas e vivam suas vidas submetidas à autoridades masculinas ditas representantes de Deus na Terra, se tornaram presas fáceis de um sistema social absurdamente opressor, injusto e maléfico. A loucura coletiva torna homens e/ou mulheres em seres baixos e cruéis. A maldade é inerente ao ser humano, coloque-nos num contexto propício e qualquer um de nós virará monstro. Vide Hanna Arendt, em A Banalidade do Mal.

 

 

 

 



[2] Do grego Areté, virtude ou excelência em sua área de atuação

[4] TELFER, Tori. Lady Killers: Assassinas em série.2019.