O
homem gostaria de ser peixe ou pássaro, a serpente gostaria de ter asas, o cão
é um leão confuso (...) mas o gato quer ser somente gato, e todo gato é um puro
gato desde o bigode ao rabo.
Pablo
Neruda
Já me acostumei à expressão chocada da
maioria das pessoas quando descobrem que vivo com 5 gatos. Por conta desta
peculiaridade da minha existência estou sempre na berlinda dos psicólogos
amadores, teólogos aspirantes, parapsicólogos de horas vagas, filósofos de
botequim, mexeriqueiros de rua e palpiteiros de profissão. Sou rotulada de
maluca-acumuladora, solteirona-carente, bruxa-protestante e outras tantas
alcunhas, algumas mais dramáticas que outras, a maioria não muito lisonjeiras, mas
todas igualmente do âmbito do insólito, do selvagem, do ‘heimlich’. Tudo isso porque entre eu e os bichanos existe essa
cumplicidade absoluta, essa compreensão mútua, esse afeto recíproco e, porque,
muitas e muitas vezes, me sinto muito mais confortável entre eles do que entre
pessoas. Acho sempre um pouco espantosa a forma fácil como se ‘compreende’
pessoas por uma ou duas impressões. Eu, que sou profissional de saúde mental,
acho sempre tão difícil fechar a Gestalt de um indivíduo...
Certa feita fui questionada com ênfase
se poderia viver sem gatos, tudo isso dentro do contexto de acusações
costumeiro, em que o fato de ser dona de gatos parece definir o fato de não ter
me casado de novo...(...rs..)...Refleti um pouco, procurei ouvir a voz interna
que todos carregam, mas poucos ousam escutar, analisei minha relação com os
felinos e respondi: - Sim, poderia, mas não gostaria nem um pouco...
Estes dias fui ao cinema com amigas
generosas o suficiente para me acompanhar em um documentário da diretora turca Ceyda Torun, sobre os
gatos de Istambul. O filme, além de trazer várias qualidades do ponto de vista
técnico, como bela fotografia, originalidade de abordagem e enquadramentos,
escolhas temáticas divertidas e tocantes, oferece ao expectador uma gama de
personagens para lá de interessante. Istambul, cidade famosa por sua beleza, é
também reconhecida como espécie de paraíso de gatos. Ali, banhada por um
mediterrâneo de verde indizível, repleta de prédios antigos e novos, povoada
por pessoas muito diferentes, mas muito parecidas conosco, a cidade acolhe
talvez milhares de gatos, de diferentes pelagens, tamanhos, raças e
temperamentos. Cada ser humano que comenta detalhes de sua
convivência com os gatos acaba por falar de si mesmo, num espelhamento próprio
que vai desde a velhinha acumuladora e o homem depressivo, ao pescador do
‘milagre’ e o dono de restaurante prático.
Na
tela iam desfilando diante de meus olhos encantados gatos, gatinhos e gatões -
lindos, não tão lindos, elegantes, desleixados, amantes, dominadores, curiosos,
comilões, carinhosos, preguiçosos, educados e folgados – e dentro de mim
crescia o prazer por me sentir compreendida, por descobrir que do outro lado do
mundo, outras pessoas também reconhecem essa conexão inusitada, privilegiada e
mística que homens e animais são capazes de desenvolver entre si e que, de
certa forma, pode abrir em nós um terceiro olho, responsável por nos sussurrar
mistérios da natureza, jamais reconhecidos pela racionalidade humana.
É fato que o homem/mulher que nunca
conseguiu se abrir ao amor por um animal permanece ignorante de um conhecimento
único e antigo, primordial e imenso, canal de intuição e instinto que outrora
nos era familiar, mas que o ‘progresso’ silenciou.
Ao contrário do que muitos pensam, não
que eu veja nisso algum problema, na verdade não foram traumas, decepções ou
carências que me levaram a essa aproximação, eu sempre gostei de bichos!
Meu primeiro animal de estimação sequer
existiu de fato. Lembro-me de tudo dele: Fox paulistinha, não muito jovem e um
pouco gorducho. Lembro que tinha certa dificuldade para correr atrás de mim no
quintal. Lembro que sua tigela era prateada e que morava na casa da minha avó Bruna.
Lembro que seu nome era Bilú, que comia salsicha e arroz,
que deitava com ele no chão do quintal em dias quentes. Lembro de tudo dele,
exceto de como morreu. Um dia, já adulta e vivendo em outro estado, pensando em
ter um bicho de estimação, duvidosa se preferia cães ou gatos, pensei em Bilú e
me dei conta que não sabia como tinha sido o fim dos seus dias. Liguei para
minha avó que muito surpresa não sabia de nenhum cachorro, segundo ela nunca
tinha tido cães na vida, ainda mais na casa do Tatuapé. Atordoada, liguei para
toda a família, meus pais, tias, primos, qualquer um que pudesse ter a mais
vaga lembrança deste meu primeiro bicho de estimação. Ninguém se lembrava dele.
Só eu!
Já mais velha, vivendo com meus pais e
irmãs numa casa com quintal, adotei uma gata branca, batizada Inga
Priscila. Naquele tempo, ainda estreante nessa coisa de ter bichos, não
me dei conta de que a gata crescia e com ela outras necessidades. Fiz meu pai
subir numa árvore de terno um dia, quando aos prantos percebi a gatinha no
topo, desesperada e sem conseguir descer. Meses depois, naquilo que parece ter
sido seu grito de liberdade e sexualidade, Inga entrou no cio e fugiu com os
gatos da região. Nunca mais a vimos e diante de uma criança magoadíssima, meus
pais optaram por um filhote de cão, que ao menos não poderia escalar muros.
Ciça Priscila (não me peçam
explicações para este segundo nome, nenhuma de nós nunca soube explicar)
escolheu os pés da minha irmã do meio quando fomos visitar sua casa e decidir
entre os dez filhotes de uma simpática vira-latas. A cor de mel de seus olhos
amáveis definiu a situação e os 15 anos vividos conosco foram simplesmente
incríveis, histórias como sua mania de esconder-se cobrindo apenas a cara ou o
dia que me salvou da surra de um assaltante na porta de casa, entre mil outras,
só aumentaram sua lenda pessoal. Quando morreu, vítima de um câncer no estômago
que a atravessava de dor, eu que já vivia fora, chorei como se tivesse 9 anos
outra vez. Até hoje é lembrada em patamar de igualdade com qualquer outro
alguém amado da família que nos deixou.
Embora eu discorde completamente do
papa Inocêncio VIII que, no século XV, incluiu os gatos pretos na lista de
seres hereges perseguidos pela Inquisição, associando-os à práticas de magia
negra e bruxaria, não posso negar que Meg, a gata preta de minha tia Elza,
possuía lá suas peculiaridades. Preta como azeviche, assim como meu Eddie,
grande e forte, dona de enormes olhos amarelos, nunca foi a rainha da simpatia,
embora sempre dormisse nos pés da minha cama quando eu estava em sua casa. Mãe
de 4 filhotes fofos - um dos quais sobrevivente de morte por congelamento, após
meu primo enfiá-lo por horas dentro do freezer - era ciumenta, protetora como
uma leoa e muito voluntariosa. Aos 14 anos, já meio grisalha e frágil, perdeu
quase toda pelagem e demos por certo que seus dias estavam por terminar, mas magicamente
recobrou todos os pêlos, novamente pretos retintos e viveu até pouco menos de
23 anos, feito notável na comunidade felina.
Apaixonada por ciências na infância,
sobretudo Biologia, tive formigas, observei pacientemente a metamorfose das
lagartas e, de longe, o tecer de teias de aranhas domésticas e os hábitos das
lagartixas. De forma ousada, capturei alguns girinos e aguardei sua
transformação, levando-os até o lago quando estavam próximos de se tornar sapos
adultos (Eca, nojento!)
Por influência do meu avô, que adorava
criar passarinhos, acabei adotando um casal de maritacas, batizados de Jove e
Juma,
por conta da novela ‘Pantanal’ (um
verdadeiro frisson em casa, quase tão
louvada quanto o Burgertime, aquele
joguinho de videogame). Este mesmo avô, irritadíssimo com a barulheira que elas
faziam, sobretudo no período da tarde quando tirava sua soneca, soltou as duas,
libertando-as. Lembro que cheguei do colégio e vi as duas no fio de luz da rua
de cima. Lembro também do intenso discurso em prol da liberdade dos pássaros
que meu avô me fez, tentando lidar com a culpa pelas lágrimas grossas que rolavam
copiosamente pelo meu rosto naquele dia. Ah,
dos martírios da infância...
Apenas em 2009, após faculdade,
especialização, casamento, mudanças, divórcio, recomeços, frustrações, tristezas,
mandos e desmandos dessa vida de meu Deus, foi que voltei a pensar em bichos...
Se é que é verdade que cada animal que
adotamos surge da necessidade de curar uma questão emocional, diria que comecei
acolhendo minha necessidade de ter alguém que realmente precisasse do meu amor
e cuidado.
Lolla, ou Lollô, como a chamo,
última filhote da Tuca, gata dos meus sobrinhos que viviam em Guararema na
época, era a menor de toda a ninhada. Franzina e desprivilegiada, notadamente
não conseguia um ‘lugar ao sol’ na disputa pelas tetas da mamys e minha irmã,
parteira e cuidadora dos filhotes, já se mostrava muito alarmada, prevendo um
desfecho trágico para a pequena. Bastou um único olhar e a decisão estava
tomada. Aproveitando minhas férias de um dos trabalhos mais extenuantes que já
tive na vida, levei-a para casa e a alimentei no conta-gotas até que pudesse
comer a ração mole de gatinhos bebês. Mal posso explicar a alegria de vê-la
crescendo e engordando, a sensação de sucesso de ver uma coisiquinha tão frágil
ficar robusta, saudável e brincalhona. Hoje em dia, senhora de meia idade, é a
chefona aqui de casa. Embora não seja a maior, com certeza é a mais roliça, tem
seu lugar cativo ao meu lado na cama e, mesmo, sendo sociável e carinhosa,
nenhum dos outros a desafia. Por duas vezes já partiu meu coração: A primeira
quando saiu para passear e não retornou por mais de 15 dias, me deixando doente
de preocupação, voltando para casa num dos episódios mais misteriosos,
acompanhada por um imenso gato amarelo que a trouxe até a porta da minha casa e
só foi embora depois que a recolhi: magra, imunda e assustada. A segunda vez
foi quando cortou a perna num gancho da janela, deixando a veia aorta
completamente exposta, passando por duas cirurgias, ficando em risco de vida
por ter que ser anestesiada duas vezes, já que por causa da dor estava cheia de
adrenalina e não dormia. Lollô é generosa, brava e tem instinto de enfermeira,
velando meu sono e cada ação mínima que faço se estou doente, de cama. Ela
também dividiu com o Eddie a tarefa de me apoiar durante o desenvolvimento do
meu mestrado. O que teria sido feito de mim sem aquela companhia gentil nas
longas noites de pesquisa, dúvidas e escrita?
Quando voltei a trabalhar, passava
muito tempo fora, Lolla, ainda bebê e acostumada com companhia e chamego
constantes, começou a ter comportamentos estranhos, parou de comer e ficou
agressiva. A solução proposta pelo VET foi adotar mais um gato, já que pelo que
parecia, ela não curtia mesmo ficar sozinha.
Encontrei a guapíssima Lana numa
gaiola com mais 5 gatinhos, todos brancos e peludos, apertados e assustados,
num PET SHOP meio caído aqui da região. Pelo que parece a mãe era uma autêntica
Angorá que seduzida por algum SRD da vizinhança, botou os pequenos no mundo,
sem que seu dono pudesse ou quisesse se responsabilizar pelas crias. Paguei por
ela meras 30 pilas e atravessei toda a Vila Ré com essa gatinha maravilhosa, eternamente
diva, com pêlos longos cor de neve e imensos olhos azuis. Lembro que ela só
parou de miar feito louca quando abri uma aba da caixa e ela olhou bem pra mim.
Lana tem temperamento arisco com estranhos, não gosta de ser acariciada por
ninguém além de mim, não tolera brincadeiras fora de hora ou ser incomodada na
hora de suas sonecas, odeia ficar suja, pede para ser escovada todos os dias e
é a responsável por manter os pratos cheios, miando insistentemente aos vê-los
vazios. Escolhi seu nome por causa de seu jeito de estrela de cinema. É muito
ciumenta e dorme toda noite com as duas patas em meu braço! Não preciso nem
dizer que a socialização entre as duas, após 2 semanas de muita briga - dias
estes em que Lana dormia escondida debaixo de uma almofada grande, com
verdadeiro pavor da Lolla - acabou sendo um sucesso. Chegava em casa todos os
dias e as encontrava dormindo juntas, abraçadas! Acho que com a Lana recuperei
com sucesso qualquer ponto de autoestima que tenha sido abalada na relação com
as misérias alheias...Lana é linda, se ama e só ama quem a ama de verdade e a
seduz com carinho e com paciência! Lana também tem o dom de prever crises
cardíacas do meu pai e morte de vizinhos ou parentes. Isso é um fato
comprovado!
Satisfeita e feliz com minhas gatinhas
estelares, acreditava que minha família felina estava completa e ia adequando
as coisas da casa para que todas nos sentíssemos bem. Como a gente faz planos e
Deus faz outros, no Natal do ano seguinte recebi de presente de uma tia uma
caixinha engraçada e ao abrí-la quase cai para trás. Com imensos olhos azuis
turquesa e pelagem característica, uma minúscula e excitadíssima filhote de
siamês, saltou do meio de um cobertorzinho. Seu jeito de bailarina, sempre
leve, delicada e elegante, me conquistou de pronto. Dei a ela o nome de Lizzie
em homenagem a todas as Elizabeths que admiro...Esperta e rápida, não se furta
de caçar qualquer inseto que se atreva a aparecer por aqui, também fez algumas
excursões sem sucesso na busca por passarinhos. Nunca envelhece, está sempre
metida em encrencas, adora brincar de morder e de esconder, também de dormir
encostada em minhas pernas. Lizzie devolveu uma alegria pueril aqui para casa,
até hoje insta as outras a brincarem com ela, irritando as velhotas e agitando
a já super ansiosa Lara.
Com a família crescendo, comecei a me
policiar no sentido de não me tornar alguma espécie de ‘resgatadora de animais’
ou ‘crazy cat lady’. Não deixava que
me mostrassem filhotes, não ia à feira de doações e nem tinha contado com esse
pessoal envolvido com salvamento de bichos. O fato é que criar bichos é uma
grande responsabilidade se vc se propõe a fazer a coisa direito: afeto
constante, ração boa, VET decente, banhos eventuais, brinquedos e remédios acabam
pesando na receita mensal e uma psicóloga clínica re-iniciante e outra vez estudante,
minha situação na época, não contava com muitos recursos. De uma maneira
inexplicável, meus pets iam se tornando mais e mais minha família e esse
sentimento acaba colocando as coisas em nova perspectiva. Amadureci com eles e
por causa deles.
Ano e meio depois, já fora da Livraria
Cultura e empregada em uma clínica psicológica, a vida outra vez aprontou das
suas e decidiu colocar alguém em meu caminho. Atendendo 12 horas por dia, seis
dias por semana, casos dos mais inusitados e graves, incluindo pacientes
psiquiátricos e agressivos, não raro chegava aos finais de semana extenuada e
sem vontade alguma de conviver com pessoas.
Numa manhã gelada de junho, sentindo
toda a gravidade de meu novo trabalho e a solidão a que ele me condenaria a
médio prazo, comecei a ouvir um miadinho agudo e fraco vindo do telhado. Com a
experiência de ‘mãe de 3’ seria capaz de identificar um recém-nascido em
qualquer lugar. Eu e uma colega, cada vez mais desesperadas por aquilo que
parecia ser um som de sofrimento, passamos a manhã chamando o bichaninho que
nem sequer conseguíamos ver. No fim da tarde, já desesperançada, fui
surpreendida na lavanderia da clínica por aquilo que me pareceu quase um salto
suicida. Um gatinho preto minúsculo, o menor que tinha visto até então, se
jogou do telhado exatamente na minha cabeça, se agarrando ao meu cabelo para
não espatifar-se no chão.
Obviamente, ao vê-lo, já senti de
imediato o coração bombear mais forte e mais quente que o normal.
Impressionante esse feitiço dos gatos de provocar ‘paixões à primeira vista’. Eddie,
então ainda anônimo, era preto luzidio, magricelo, daquele pelo bagunçado e
ralo de alguns filhotes e estava com os olhinhos ainda meio grudados e sujos.
Um gatinho feio, fraco e doente.
Tentando
acionar toda a minha racionalidade libriana, enrolei-o num pano de prato da
cozinha da clínica, atravessei a rua e toquei a campainha da clínica
veterinária que existia em frente. O VET, sempre muito gente boa, acolheu o
pequeno, ouviu toda a história e se comprometeu a cuidar de seu destino. Deixei
o pequeno lá e voltei ao trabalho, satisfeita comigo mesma por aparentemente
ter feito o que era certo, pra mim e pra ele. Na hora de ir embora, avistei uma
gaiolinha na frente da clínica com a emblemática placa ‘doa-se gatinhos’. Eddie
estava ali dentro, enrolado num macacão de soft azul de bebê humano, encolhido
como um caracol. Fui embora. Tudo isso aconteceu numa terça- feira.
Na quarta, na quinta, na sexta e no
sábado a mesma cena se repetiu. Eddie dentro da gaiolinha, enrolado no soft
azul, encolhido por causa do frio de junho. Cada dia foi retirando alguns
tijolos da muralha de racionalidade que mantinha meu orçamento um pouco mais
seguro. No sábado eu soube que o gato era meu. Lembro que pensei “onde comem 3,
comem 4” e nunca fiquei tão feliz na vida quando toquei aquela campainha e
avisei o VET que iria levá-lo para casa. Obviamente ouvi cobras e lagartos de
toda a família. Minha mãe estava particularmente alarmada. Acho que pensou que
eu estava enlouquecendo de vez...kkkk...
Ironicamente, de fato Eddie foi o que
me trouxe mais gastos e preocupações. Desde bebê teve mil problemas digestivos
e renais. Foi só quando finalmente descobrimos sua imensa alergia a pulgas que
conseguimos tratá-lo e curá-lo de vez. Episódios como vômitos, perda de pêlos,
urina com sangue e febre foram constantes por vários meses. Hoje em dia nenhum
gato pode sair de casa para passeios, tudo é telado, desinfetei os gatos e a
casa por 6 meses e não entro com sapatos para dentro. Eddie está ótimo! Robusto
macho preto, gentil como um príncipe, reina absoluto entre as meninas que o
adoram em unanimidade plena. Sem dúvida é um dos mais carinhosos, esquenta meu
lado da cama todos os dias, saindo só quando já vou deitar. Sua dedicação é
total, seu carinho infinito. Por vezes acordo pelas 5 da manhã com um gato preto
praticamente colado ao meu rosto, checando minha respiração. Se com a Lolla resolvi
minha necessidade de ser necessária, com a Lana recuperei minha autoestima e
com a Lizzie meu humor, de alguma forma, Eddie me ajudou a fazer as pazes com o
masculino – Sim, porque se um gato macho é capaz de amar assim, certamente
existem machos humanos igualmente preciosos e com coração terno! Eddie também
me deixou mais corajosa para aceitar riscos.
Passamos por poucas e boas, eu e meus 4
gatos. Pessoas entraram e saíram das nossas vidas. Dividimos fartura e
recessão, saúde e doença, alegrias e tristezas. Entre eles se construiu uma
cumplicidade e uma cooperação mútua que só é ameaçada se algum outro gato
aparece no quintal ou algum humano com aura estranha insiste em visitar a casa,
também quando disputam a primazia na ração com caldinho, que todos amam de
forma insana e desesperada. Lembro do dia em que cheguei em casa e não
conseguia abrir a porta de vidro da entrada porque minha ‘gang felina’’ tinha se organizado e arrastado um tapete enorme e
pesado, de pêlo de ovelha, até os degraus da entrada para poderem deitar nele
pegando sol. Basta dizer que aquele tapete é difícil de arrastar até para uma
faxineira forte....Olhei pelo vidro da porta e vi todos lá, deitados folgadamente,
um em cada degrau, jacarezando...rs...
Lara é minha caçula. Foi resgatada
de debaixo do pneu do carro, no estacionamento da farmácia, numa noite de
chuva. Eu e minha mãe a salvamos por uma questão de segundos e um relance. A
ideia inicial era entregá-la para minha sobrinha Beatrice, outra amante de
bichos, mas meu cunhado na época não foi simpático ao plano, já estavam afinal com
2 cachorros. O fato é que Lara veio para casa e, hoje em dia, par de anos
depois, a Bea já está com três gatas...rs...
Lara
é um bocado esquisita. Não gosta muito de carinho, mas adora companhia e atenção.
Não sabe receber carinho sem retribuir, o que rende pra gente umas boas
lambidas daquela língua áspera – tenho a impressão que se preocupa um bocado
com minha higiene pessoal e tem uma predileção pelo cheiro dos meus shampoos.
Adora correr, pular, brincar e caçar. Sofre de insônia e tem repentes no meio
da noite, o que já quase me matou de susto algumas vezes e também já me irritou
bastante. Sofre de ‘Síndrome de Pandora’, o que significa que sente dor nas
patinhas e não consegue usar a caixa de areia, fazendo suas necessidades
elegantemente ao lado da caixa e não dentro. Única criança numa casa de
balzaquianos sofre um pouco por falta de companhia para brincadeiras, algo que
Lizzie em dias bons e Eddie, com sua imensa paciência, tendem a amenizar. Como
cresceu um bocado e é agora uma das maiores da casa, sofre com alguns chiliques
da Lana e está sempre tendo que disputar espaço, coisa essa que enfrenta com
galhardia, mas que a aborrece visivelmente. Lara persiste e nunca perde sua
alegria natural. De certa forma, sua presença me ajuda a enfrentar as
frustrações devidas à imperfeição da vida, com suas infinitas lutas para se
conquistar e se manter relações, com todos os esforços hercúleos para evitar e
sobreviver a intrigas e invejas, com a necessidade constante de se reinventar
para poder simplesmente ‘aproveitar o dia’. Lara também tem uma tara por iogurtes, especialmente os gregos...
É indizível a alegria que sinto ao
despertar de manhã e arrumar a cama com meus gatos se enroscando nos lençóis,
fazendo sua costumeira algazarra matutina, pedindo ração, se estendendo ao sol
em seu ‘alongamento’, me ensinando que a vida é muito gostosa e que para
conseguir saboreá-la basta se soltar um pouco das amarras que criamos para nós mesmos.
Existem dias em que enrolo na cama um pouquinho mais só para poder acariciá-los
e aprender com eles a mágica desse pleno ‘carpe diem’.
Gosto muito de cães também. A
fidelidade incondicional deles me emociona, mas, também me constrange. Sei que
não importa quem eu seja ou como os trate, serão leais. Os gatos são fiéis
também, leais aos seus donos mesmo que isso os leve à selvageria, porém são
ainda mais fiéis a si mesmos. Gatos tem autoestima, eles te amam se são amados.
Um dos humanos do filme comenta que gatos tem a consciência de que existe um
Deus acima de nós, os cães não, os cães acham que os humanos são deuses. Seja
como for, me sinto mais confortável entre os gatos, sua resposta afetiva é
sempre honesta e espontânea, são donos de seu próprio destino e se nos deixam
cuidar deles é porque conquistamos isso de fato.
O documentário também fala que um
humano que nunca amou e se deixou amar por um animal tem uma experiência de
vida incompleta. Não poderia concordar mais com uma ideia. O que um animal nos
oferece é um portal para tudo aquilo que nossa alma intui, mas nossa razão
desconhece. Poderia passar a vida explicando as benéfices e o crescimento
pessoal que minha relação com bichos me deu e me dá, mas sei que minhas
palavras só vão encontrar eco dentro daqueles que de alguma forma já chegaram
neste lugar de simplicidade e assombro.
Ser uma ‘Crazy Cat Lady’ só me fez ser
melhor, no amor, na vida, nas buscas por transcendência, na simples capacidade de
gozar as alegrias de um dia. Retomando a frase de Neruda na epígrafe deste
texto, um gato não quer ser nada mais do que ele mesmo. Quiçá tivéssemos essa
mesma liberdade. Se pudéssemos apenas nos livrar de todos os complexos, invejas
e ilusões que nos consomem e limitam nossa existência, nos enfiando em toda
sorte de busca vazia, certamente sobraria tempo, espaço e energia para que pudéssemos
de fato SER.
Manoel de Barros, em ‘Memórias Inventadas’, diz achar que
“...o quintal onde a gente brincou é maior do que toda a cidade” e que só se
descobre isso depois de grande”. Os gatos me lembram disso todos os dias e,
graças a eles, me permito viver essa grandeza, com o rosto descoberto, os olhos
abertos e a alma iniciada.
Amei o texto, sei exatamente como se sente! Sou amante dos animais, mas tenho um amor incondicional por meus gatos. São meus companheiros, e entendem exatamente como me sinto!!!
ResponderExcluirAh, que legal! Fico tão contente quando encontro pessoas que conseguem ter essa experiência. Beijo grande para toda família.
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