A pele que habito

A pele que habito

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Anna olhou o próprio reflexo pelo retrovisor pela enézima vez. De onde saíra essa pequena ruga entre as sobrancelhas? Notou o taxista observando sua expressão no espelho e desviou o olhar, meio embaraçada, ela precisava apenas acalmar-se, tudo daria certo, tudo ficaria bem no final...

Tentando mudar o foco de seus pensamentos, acabou perplexa e outra vez sentada sobre uma montanha de sonhos falidos, em vão tentando afastar a sombra de seus fracassos, resgatar a esperança na vida e em si mesma, vasculhar seu interior e sua história em busca do que REALMENTE lhe dava prazer e sentido na vida.

Sempre soube que amava ler e escrever, aprender e ensinar! Adorava descobrir o potencial das pessoas e ajudá-las a encontrar o caminho até ele. Sempre tão boa nisso, por que não conseguia simplesmente fazer o mesmo por si mesma? Até que ponto sua autoconfiança fora atingida por todas as confusões que se sucederam? Como se perdera a ponto de não conseguir mais, sequer se reconhecer? Releu tantas vezes seus diários mais antigos e, em tudo que lia, era como se não tivesse vivido aquela vida ali relatada. Sentia-se um mero simulacro, uma persona mal arranjada, um personagem secundário na própria vida.

Conhecer as pessoas de perto tinha sido no passado sua grande motivação, gostava de olhar para elas e entrar por aquela brecha pequena que nem todos conseguem notar. Adorava perceber o detalhe específico que tornava cada pessoa única! Não sabia viver sem esse contato, sem essa relação de troca profunda e secreta. Decidiu então que fosse qual fosse o preço disso, e ainda que houvesse perdido tanto de sua sensibilidade, de sua percepção, seguiria estudando, ensinando e aprendendo sobre as pessoas! Desejava também ter mais tempo dentro da vida, tempo para cuidar de sua casa, para tratar de si mesma, para fazer novos amigos e esquecer os antigos, tempo para ler mais, para ouvir mais, para sentir mais, para crescer mais...


Aquela coisa continuava em germinação dentro de seu peito, algo se proliferava, a semente de algo maior, mais pleno, mais vivo. Em alguns momentos achava que explodiria, coisas sem nome cresciam em sua alma, coisas subterrâneas e ainda misteriosas demais, coisas que só surgem quando se passa por situações de limite absoluto, quando tudo começa a ser questionado e tem-se então uma segunda chance de viver, de escolher.

Lia muitos escritores japoneses naquela época, seus textos fortes e sensíveis passaram a despertar uma nota oriental dentro dela, nada sobre deuses coloridos e mantras, mas algo sobre a beleza da simplicidade, sobre o culto à harmonia, sobre a busca do equilíbrio, da leveza, da suavidade e da delicadeza das formas. Passou a sentir dentro de si todo um respeito por tudo que fosse mais antigo, apreciava a sutileza dos aromas, o diáfano dos sons, a luminosidade das cores e dos ambientes, acima de tudo, apegava-se a coisas sobre a saúde, sobre a higiene física e mental. Encontrou nessa outra forma de ver o mundo a libertação de toda sujeira, a imundície que haviam lhe imposto nos últimos tempos. Passou a adotar cores mais claras em seu modo de vestir e abandonar os hábitos notívagos, uma nova pessoa nascia.

Sempre que notava algo ou alguém novo, todo seu ser se acendia e uma estranha curiosidade se expandia em várias direções, se atentava ao que existia de belo ali, de puro, de rico, de único, fazia tudo com uma paciência e num ritmo lento antes desconhecido. Depois listava mentalmente tudo o que podia ser ainda melhor e pensava em estratégias para que fosse alcançado. Ainda que não encontrasse nenhuma perfeição em si mesma, vivia esse novo dom de catalisar o aperfeiçoamento no outro e retirava desses processos um prazer recém descoberto.

Após tamanha tormenta e tanto sofrimento uma paciência e uma capacidade de reflexão passara a nortear todos os seus momentos, acabava se surpreendendo consigo mesma e passava horas encantando-se com essa nova habilidade que a desafiava a tentar fazer as coisas com calma, inspirando e expirando, sentindo, refletindo, vivendo. As falsas idéias de pouco sentimento ou perda da sensibilidade a irritavam, pois agora que se conhecia melhor sabia que toda essa disciplina objetivava manter em silêncio seu turbilhão interior, acalmar a dor do vazio infinito que habitava seu peito sem prazo para retirada.

Sua sede incessante por sanidade era seguidamente frustrada por essa vida de metrópole insone, essa psicose urbana com suas noites selvagens e seus dias furibundos, a cada dia mais se sentia constrangida por seu povo cinza decadente. Vivia aborrecida com a sujeira, com a pressa e falta de jeito das pessoas ao seu redor, odiava seu charme sujo e sua escuridão. Amava a cidade onde nascera, mas não podia mais viver nela ou com ela.

A tal curiosidade insaciável fazia com que olhasse as pessoas nos metrôs, trens e praças, e em qualquer lugar tudo o que antevia era dor, cansaço e confusão, talvez uma projeção de si mesma, talvez não. O ritmo acelerado daquela vida a obrigava a viver na margem de tudo, já não era capaz de inserir-se no todo, vivia na beirada dos sentimentos, na superfície de todas as coisas, de todas as pessoas. Apenas seguia não vendo, não penetrando, não sentindo, na opção de uma quase não-existência.

Sempre que um grito interior a fazia parar em meio ao turbilhão, a ansiedade tomava conta de tudo. Desacostumada a pensar, durante seus meses de recuperação, almejando apenas paz e tranqüilidade para se refazer, tinha pânico, tinha medo, tinha frio, tinha sono, tinha fome, demandas infinitas sem resposta...Aquele vazio no ventre que nada preencheria!

Percebeu naquele instante, dentro do táxi que a levava ao aeroporto, que mesmo com tanto medo, e em meio a uma onda de 20 metros de indagações, estava se lançando na maior aventura de sua vida! Fazia isso sem qualquer reflexão, apenas movida por um desejo profundo de sair, sair, sair, sair, sair, sair de todas as confusões em que sua vida se tornara e por um sonho antigo de ser verdadeiramente útil de fazer alguma diferença neste mundo, sonho de adolescente sendo experimentado na vida adulta.

Ao atravessar o hall do aeroporto apenas com as coisas que eram exclusivamente suas, sem deixar rastros e sem ninguém de quem se despedir, sabia que sua alma desértica não seria facilmente administrada, sabia que não poderia prever quando haveria um oásis ou a próxima tempestade de areia! A única certeza que carregava era a de que, em alguns momentos da vida - ou a mudança é radical ou se sucumbe a um estado sombrio de sobrevida - seu desejo era mais uma vez vicejar e esquecer que no momento era apenas uma sobrevivente.

Ao seguir em frente pelo corredor de acesso ao avião teve uma breve recaída, lembrou-se do tempo em que não precisava tentar decidir quem era antes de tomar qualquer decisão, quando havia uma cartilha para tudo, um verdadeiro manual do que era esperado dela. Nessa época a realidade era a que se apresentava, bastava que assumisse o papel esperado e aceitasse as possibilidades que se lhe apresentavam. Agora que o impossível lhe acontecera não havia mais regras e o medo do desconhecido por vezes a paralisava. O céu era seu limite, mas inúmeras vezes, não conseguia fazer nada, além de se esconder embaixo da cama e chorar como uma criança assustada. Diante de tantas possibilidades de vida, quase sempre a dúvida a impedia de viver ao menos uma. Bons tempos em que tinha UMA única vida para viver!

A cada passo lembrava e se despedia de seus amores ardidos, quase como queimaduras, alguns deles haviam sido fogos rápidos, falsos e belos como os de artifício, outros foram extensos e perigosos, como imensas queimadas que ao se alastrarem destruíam tudo, deixando apenas cinzas. Nunca experimentar nada como o fogo eterno de Héstia* (escrever roda pé), caloroso e contínuo, iluminando, aquecendo, gerando e mantendo a vida.

Ia diante da certeza de que ainda tinha muito a mudar em si mesma, estava em plena transição, jamais seria quem havia sido um dia! A pessoa que encontraria em si mesma no final, não seria nem de longe a que julgou ser um dia. Completamente livre dos sonhos mentirosos, das ilusões mesquinhas, do passado nebuloso e das histórias vividas sozinha, sentia-se livre e pronta para descobrir o que queria, para construir algo novo, maior e melhor! Ainda assim o frio na espinha da beirada do abismo se estendia, o constante tremor no peito permanecia, assim como o receio do que nunca vira antes. Por sua própria experiência, sabia que apenas um passado tenebroso tornava possível apostar o presente e mergulhar às cegas no futuro.

Enquanto se dirigia à porta do avião, passou a empacotar simbolicamente tudo o que não mais lhe pertencia ou interessava: Aquele amor destruído do passado, o outro que foi um natimorto, todos os dias de trabalho infrutífero, todas as angústias sem reflexão, todas as dúvidas sobre seu valor e beleza, todas as mentiras que dissera a si mesma sobre seu potencial e capacidade, todas as pessoas que vampirizaram seu élan vital, todas as casas em que odiou morar, as roupas que odiou vestir, os abandonos e injustiças do caminho, as indisciplinas sem objetivo, as disciplinas castradoras, os erros impensados, os acertos indesejados, as regras de morte, os rancores divinos. Embrulhou todo aquele enorme volume e deixou do lado de fora daquele avião. Decolou sabendo que nada daquelas coisas de seu passado se adaptariam na nova vida que almejava construir para si, reconhecia que ter uma segunda chance é um privilégio e decidira firmemente não desperdiçar nada! Escolheria conscientemente cada centímetro de sua vida, pagando e gozando as conseqüências de cada escolha.

Dentro da cabine, sentia o peso de metade de uma vida vivida em hibernação afetiva ou nadando no mar revolto de paixões enlouquecidas, recebendo vez por outra um chamado de despertar ou uma bóia salva-vidas lançada por outra pessoa.

Inspirou fundo e soltou o ar devagar, percebeu que tinha seu próprio barco agora, desejou intensamente momentos de águas serenas e luminosas, clima ameno, sol de fim-de-tarde acariciante, tudo para que pudesse se refazer, tornar-se inteira, talvez pela primeira vez.

Surpreendeu-se com o fato de que num momento tão assustador, tudo o que desejava era estar sozinha, e então compreendeu que aquele era um momento unicamente seu!

Fechou os olhos e encostou a cabeça no banco, peito ansioso, de uma ansiedade alegre e bondosa. Ria de si mesma, mão fria de tensão, contando cada segundo para a saída, despedindo-se de tudo como se fosse morrer, uma morte temporária e necessária, morte de crisálida que dá origem à borboleta.

Seu coração não pedia por nada e por ninguém, um véu grosso se interpunha entre ela e seu passado, como a preservá-la de qualquer distração inútil. Um ano após o ocorrido teria vida, vida real, sem mentiras, loucuras ou obsessões, sem entorpecentes psíquicos, sem masturbação mental. Vida real, vida simples e com objetivos sólidos, uma verdade que parecia sonho, estava muito, muito ansiosa, com um medo gelado, mas continuava estranhamente em paz...

Quando mesmo tinha ganhado aquela pequena ruga entre as sobrancelhas?

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