A pele que habito

A pele que habito

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A Mulher Esqueleto...

"...para começar a cura, pare de se iludir com a idéia de que um pequeno paliativo irá consertar uma perna quebrada. Seja franco frente às suas feridas, e assim terá uma imagem correta do remédio necessário. Não jogue no vazio o que for mais fácil ou estiver mais disponível. FAÇA QUESTÃO DO MEDICAMENTO ADEQUADO. Você o reconhecerá porque ele irá fortalecer sua vida, em vez de enfraquecê-la."
Clarisse Pinkola Estés

Dia desses me peguei surpreendida pela constância e intensidade com as quais nos apegamos a coisas verdadeiramente prejudiciais, apenas pelo conforto de um falso sentimento de segurança que coisas ruins, desde que velhas conhecidas, nos transmitem. Passamos dias, meses e anos chafurdando em auto-boicote com medo apenas de atravessar a porta e sair pela vida em busca de algo que nos faça BEM, nos condenando à uma vida miserável de mesmice e de correr atrás do próprio rabo, nos conformando com esse rápido alívio de quando desistimos de um novo desafio, de uma saída para algo novo e melhor, esse pequeno suspiro de - Ufa, escapei de mais uma, posso continuar criança para sempre!

Bastante cômica essa decisão de perpetuar nossas covardias, se pensarmos que viver nas mesmas dores de uma doença emocional crônica é muito mais doloroso do que tentar ser feliz de alguma forma. Passei um longo tempo em hibernação afetiva: me protegendo de novas feridas, cicatrizando as antigas, fugindo de coisas que temia me fazerem mal, tudo isso para descobrir, ou melhor, para admitir, que nunca sofri tanto na vida do que nesse período em que supostamente estava me preservando!

Sabemos do que precisamos para ser feliz e mais completos! Muitas vezes está diante de nós, basta o esforço de estender a mão e pegar, aquele algo que nos fará ser o melhor nós mesmos que poderíamos ser...

Quando olhamos para esse algo, que alguns chamam de alma-gêmea e eu chamo apenas de: parceiro certo de viagem (seja uma pessoa, um trabalho, um sonho...), um medo estranho nos acomete, sabemos que nossa vida nunca mais será a mesma! A primeira reação é fugir, colocar na balança tudo o que teremos que abrir mão para seguir esse algo, ficamos apavorados porque não conhecemos o resultado disso, apostamos em nossas falhas, damos todas as desculpas esfarrapadas possíveis, tememos perder nossa liberdade, nossa autonomia, nossa integridade, nossos valores e, na verdade, ao abrir mão desse algo, nos condenamos à uma meia-vida perene, à uma angústia profunda que nos incomodará pelo resto da vida.

Clarice Pinkola, em sua obra "Mulheres que correm com os lobos", compara nosso encontro com o amor com um encontro com "A Mulher Esqueleto", segue o conto e alguns trechos da autora, uma psicóloga Junguiana e também contadora de histórias:

" Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que tinha sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio pescar. ..Ele não sabia que ninguém vinha pescar ali com a alegação de que aquela enseada era mal-assombrada!
O anzol do pescador desceu pela água e prendeu-se logo nos ossos da costela da mulher esqueleto. pensou ter pego um peixe-grande e, enquanto lutava com o enorme peso no anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas óribitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
- Agh! - gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. - Berrava, soltando-a da proa com o remo e começando a berrar ainda mais loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
- AAAaaaaggghhhh! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou...O tempo todo ela continuou atrás dele, até que ele entrou desesperado em seu iglu, ofegante e soluçante, ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, agora estava seguro!
Momentos depois, quando acendeu a lamparina, ali estava ela - aquilo - jogada num monte no chão, toda embaraçada, ele nunca soube o que aconteceu, talvez a luz tivesse suavizado suas feições, talvez fosse o fato dele ser um homem solitário, mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza e falando baixinho, como uma mãe que fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar, trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que seus ossos eram como os de um ser humano. Aumentou o fogo da lareira e ficou olhando para ela de vez em quando, enquanto enrolava a linha em sua vara de pesca. E ela, dentro das peles, não dizia uma palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando de vez todos os seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, enquanto dormimos, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que, ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A mulher esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar os dois lados do coração e então, seu corpo passou a se revestir de carne, de tudo que todas as mulheres precisam.
Quando estava pronta, despiu o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro e devolveu a ele seu grande tambor, acordaram assim abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, do jeito bom e duradouro.

" Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria vem da mulher-esqueleto. Como vemos na história, se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisaremos encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza da vida-morte-vida. Quando temos esse tipo de relacionamento, não saimos por aí à caça de fantasia, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento. Quando encaramos a mulher-esqueleto, aprendemos que a paixão não é alguma coisa que se vai obter, mas sim, algo gerado em ciclos e distribuído. É a mulher-esqueleto que demonstra uma vida compartilhada, nos fluxos e refluxos, em todos os finais e reinícios, é o que cria um inigualável amor de devoção."

"Esse poder do conhecimento da natureza da vida-morte-vida aguarda os amantes que superam a fuga, que se esforçam para ultrapassar o desejo de se sentir em segurança. Os antigos que procuravam esse conhecimento da vida e da morte chamavam-no PÉROLA DE GRANDE VALOR, de TESOURO INIMITÁVEL. Segurar os fios desses mistérios e desembaraçá-los gera um poderoso CONHECIMENTO DO DESTINO E DO TEMPO, TEMPO PARA TODAS AS COISAS, TODAS AS COISAS A SEU TEMPO, ROLANDO NO ÁSPERO, DESLIZANDO NO LISO. Para o amor não há conhecimento mais revigorante, mais benéfico, mais protetor do que esse."

"Dentro de um único relacionamento existem muitos finais. Mesmo assim, de algum modo e em algum ponto nas delicadas camadas do ser criado quando duas pessoas se amam, existe um coração e um alento. Enquanto um lado do coração se esvazia, o outro se enche. Quando uma respiração termina, outra se inicia."

"Ficar deitado inerte, apenas sonhando com um amor perfeito, é fácil. É uma espécie de anestesia da qual talvez não nos recuperemos nunca, a não ser para agarrar impiedosamente algo de valor, apesar de estar além de nossa percepção. Para os ingênuos e os feridos, o milagre dos caminhos da psique está em que, mesmo que você não se empenhe muito, que você seja irreverente, que não tenha essa intenção, que realmente nem esperasse por isso, que não queira, que não se sinta digno, que não se sinta pronto, você de qualquer jeito irá topar, por acaso, com o tesouro. Depois, cabe à sua alma a tarefa de não ignorar o que veio à tona, de reconhcer o tesouro pelo que ele for, não importando o quanto sua apresentação for inusitada, e de refletir com cuidado acerca do que fará em seguida."


Esses são só uns trechos, se quiserem comprem o livro, tem várias histórias legais e enriquecedoras, foram feitas até pesquisas sobre leitores do livro que mudaram radicalmente seu rumo após a leitura...

Um comentário:

  1. Dani, esse texto ficou lindo, que ponto de vista real e maduro sobre o amor, sem deixar de ser bonito! Clara

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